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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 04 de abril de 2016 a 10 de abril de 2016 – ANO 2016 – Nº 651A viagem ficcional de
Joaquim Manuel de Macedo
Pesquisa de historiadora destaca facetas desconhecidas do autor de ‘A Moreninha’
Tese de doutorado analisando o livro A carteira do meu Tio contraria a visão difundida pela história literária de que Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882) era um escritor menor, cuja produção se limitava a romances melodramáticos como A moreninha, que o tornou conhecido. A historiadora Carollina Carvalho Ramos de Lima, orientada pelo professor Jefferson Cano, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), apresenta a faceta satírica de Macedo, que recorre à literatura de viagem e a uma linguagem ácida para apontar os vícios da classe política brasileira. A autora da tese propõe, ainda, a reinterpretação de um período importante para a construção do Estado imperial, quando se implantou o Ministério da Conciliação, com a missão de apaziguar as divergências entre liberais e conservadores.
Carollina de Lima lembra que A carteira do meu Tio é um livro de viagem ficcional, com cunho de sátira política, publicado de forma seriada no jornal carioca A Marmota, em 1855. “Meu interesse por literatura de viagem vem do mestrado e fiquei apegada a esse texto sobre um jovem que pretende ser político e é obrigado pelo tio mantenedor a viajar pelo país para conhecer a realidade brasileira, como uma etapa na sua formação para a vida pública. O sobrinho é o narrador extremamente debochado, que faz uma série de críticas ao sistema político do segundo reinado.”
Dividindo o trabalho em três capítulos, a pesquisadora começa perguntando por que Macedo, já famoso pelos romances de amores impossíveis, optou por fazer este tipo de literatura. “Quando me deparei com A carteira, vi que não era o Macedo que li no colégio, e sim um autor ácido, que constrói um personagem sarcástico, amoral e que adota como mestres os políticos que seguem a ‘cartilha do eu’ e sequer se preocupam com um discurso ideológico como pano de fundo. O sobrinho viajante me remete a Brás Cubas, de Machado de Assis, que muito provavelmente teve em Macedo uma referência.”
Carollina abordou a recepção no país aos textos produzidos por viajantes estrangeiros e como esta literatura consolidou um público regular, aproveitando-se também da bagagem trazida do mestrado, quando levantou a produção até a década de 1830 e a sua importância para a criação de uma imagem de Brasil. “Entendo que no período de Macedo há um momento de inflexão da literatura de viagem, pois os críticos dos anos 40 e 50 já se mostram bem avessos aos textos de estrangeiros, por conta de erros grosseiros sobre a realidade brasileira; há certa defesa dos autores nacionais.”
Ainda no primeiro capítulo da tese, a historiadora especula sobre os autores que Macedo teria lido e as pessoas para quem escrevia, bem como a relevância de seus textos para a formação do leitor enquanto um tipo de literatura que permite divertir instruindo. “Eu utilizo o conceito da teoria literária de ‘horizonte de expectativas’, de Robert Jauss, em função de obras que estavam em debate na época do escritor e promoviam este casamento entre literatura de viagem e sátira política, como Viagens de Gulliver [de Jonathan Swift], Cartas Persas [Montesquieu] e Cartas Chilenas [Tomás Antônio Gonzaga], e que certamente serviram de referencial para ele.”
Carollina de Lima faz no segundo capítulo uma análise comparativa entre A Carteira do meu tio e as crônicas do Jornal do Commercio, procurando demonstrar que Joaquim Manuel de Macedo conhecia os gostos literários de seus leitores, formatando seus textos pensando em quem os leria. “É um escritor que produziu muito. Ao mesmo tempo em que o livro era publicado em série no A Marmota, ele estava escrevendo crônicas no jornal sobre os mesmos temas, mas em linguagens diferentes, visando um leitor mais politizado, que acompanhava as discussões veiculadas durante a semana, como as críticas à Política de Conciliação e a defesa das reformas eleitoral e judiciária.”
No A Marmota, um aspecto que intrigou a pesquisadora foi que, embora houvesse um espaço reservado para romances (o rodapé), A Carteira ganhava destaque na parte superior da página, por tratar de um tema relevante para a nação. “Creio que o editor do jornal, Paula Brito, fazia distinção entre esta série e o romance, até porque estava editando Vicentina (do mesmo Macedo) no rodapé. Minha conclusão é de que A Carteira, por ser um texto ficcional, mais ameno e divertido, atraía um público jovem e não necessariamente imbuído das discussões políticas, mas que ficaria inconformado com a desfaçatez do sobrinho e dos políticos brasileiros em geral.”
A autora da tese define Macedo como um homem de letras típico do seu tempo, que além de literato, jornalista, médico e professor, foi um político atuante, a exemplo de José de Alencar e outros contemporâneos. “Ele assumiu na Assembleia Provincial no ano anterior ao da publicação d’A Carteira, sendo que suas falas registradas nas atas da casa, da Câmara e do Senado me ajudaram bastante na interpretação do livro. Foi um liberal convicto, que não mudou de partido, como fizeram pessoas muito próximas a ele – é possível reconhecer no livro críticas a Torres Homem, seu parceiro na edição de A Nação e que migrou para os conservadores em 55.”
Política de Conciliação
No terceiro capítulo, Carollina de Lima trata de três temas que julga fundamentais na obra: a Política de Conciliação implementada em 1853, a inaplicabilidade da Constituição de 1824 e o caráter corrompido dos políticos. “Há todo um debate historiográfico em torno do chamado Ministério da Conciliação, que tinha à frente o Marquês de Paraná. Autores como Sérgio Buarque de Holanda e Roderick Barman veem uma demonstração de poder do imperador, adotando o discurso de que liberais e conservadores deveriam colocar as diferenças partidárias de lado em prol de uma política apaziguadora; outros, como José Murilo de Carvalho, veem uma manobra dos conservadores para implantar seu projeto de Estado.”
A pesquisadora afirma que a maior crítica de Macedo à Política de Conciliação era por facilitar a troca partidária, sem necessidade de maiores justificativas, o que considerava péssimo para um sistema representativo, onde deveriam existir uma oposição e o debate. “Concluí que a Conciliação mostrava, sim, uma interferência do imperador para a discussão das reformas judiciária e eleitoral, mas que não foi determinante, pois a primeira reforma não foi aprovada e a segunda não passou da maneira que o monarca esperava. Entendo ainda que, embora a política interessasse aos conservadores, não era visando um projeto de Estado, mas para resolver problemas internos de um partido à beira do racha em 52 – o próprio Macedo, editando A Nação, anunciava como iminente o surgimento do Partido Parlamentar, originado deste racha.”
Mesmo os liberais como Macedo, segundo Carollina, ainda que não concordassem com a Conciliação, viam nela a possibilidade de conquistar mais cadeiras nas assembleias e fazer passar os dois projetos que modernizariam a estrutura política do Brasil. “A reforma judiciária previa a incompatibilidade de magistrados concorrerem a cargos eleitorais e a reforma eleitoral estabelecia eleições por distritos, permitindo a ascensão de candidatos locais e anônimos, quando a esfera política era sempre ocupada pelas mesmas pessoas devido às relações de apadrinhamento. O personagem d’A Carteira apresenta-se apenas como o sobrinho do tio e declara que no Brasil não é preciso ter nome, bastando ter um padrinho.”
A inaplicabilidade da Constituição de 1824 também é avaliada pela historiadora, que recorda a passagem do livro em que o tio anuncia ao sobrinho que terá uma companheira de viagem, a “Defunta” (a Carta), para que compare o que diz a lei e o que vê na prática.
Finalmente, a respeito do caráter corrompido dos políticos, Carollina de Lima conta que, ao ler o livro de Joaquim Manuel de Macedo pela primeira vez, teve a sensação de estar diante de um conteúdo bastante atual. “É inevitável que o leitor contemporâneo constate que pouca coisa mudou no sistema político brasileiro, onde persistem as relações de apadrinhamento dentro da esfera pública; a política do ‘eu’ ao invés da política de Estado; a troca partidária, tão comum e nem um pouco ideológica e sempre pragmática. Em minha opinião, A Carteira do meu Tio deveria entrar para a lista de livros obrigatórios dos vestibulares, por ajudar o jovem a pensar a política.”
Publicação
Tese: “A carteira do meu tio, de Joaquim Manuel de Macedo: literatura de viagem e sátira política em tempos de Conciliação”
Autora: Carollina Carvalho Ramos de Lima
Orientador: Jefferson Cano
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)