Unicamp
Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 25 de abril de 2016 a 01 de maio de 2016 – ANO 2016 – Nº 653As pontes da cartografia social
Dissertação analisa as conexões entre saúdee arquitetura em territórios habitacionais
Localizado em Campinas, o loteamento da Vila Esperança estende-se junto aos eixos das Rodovias Anhanguera e D. Pedro I, da qual está muito próximo. Situado ao norte do Jardim São Marcos, vizinho ao Ceasa e nas proximidades da PUC-Campinas e da Unicamp, foi projetado pelo Programa de Combate às Enchentes (Procen). A maioria dos seus moradores são reassentados da ocupação que se localizava à margem do Córrego da Lagoa e de outras áreas de risco. Até 2010 foram entregues pela Companhia de Habitação de Campinas (Cohab) cerca de 1.200 habitações que hoje chegam a 1.300 com os apartamentos recém-construídos.
Foi nessa área que se centrou a tese de doutorado da arquiteta Mirela Pilon Pessatti, orientada pela professora Silvia Aparecida Mikami Gonçavez Pina, da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC) da Unicamp. Nela a pesquisadora aborda a intercessão arquitetura e saúde e discute a potencialidade dessa forma de intervenção como contribuição para o aumento dos graus de qualidade de vida em territórios habitacionais de interesse social.
Considera-se hoje que habitação e saúde são duas das necessidades mais básicas para a sobrevivência dos indivíduos e indissociáveis para uma vida com qualidade. As observações e conclusões do estudo, realizado no bairro de Vila Esperança, de alta vulnerabilidade e risco social, podem ser extrapoladas para muitas outras áreas com problemas similares, tanto no Estado de São Paulo como no Brasil.
O escopo do trabalho fundamenta-se na hipótese de que os aumentos nos graus de qualidade de vida de um determinado território avançam desde que as estratégias utilizadas nas intervenções sejam pautadas por um fazer articulado entre os saberes da arquitetura e da saúde, incluídos nas discussões e decisões, moradores e usuários desses espaços. Para a pesquisadora essa tarefa vai além da prescrição de soluções para o ambiente construído.
Com significativa parte dos seus 20 anos de experiência profissional dedicados à resolução de problemas envolvendo arquitetura e saúde e praticando uma arquitetura para e com as pessoas, Mirela sempre se sentiu acolhida por profissionais dessa área. Essa experiência consolidou-se na sua dissertação de mestrado, desenvolvida junto à Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, quando teve a oportunidade de abordar “A intercessão arquitetura e saúde: quando o problema é a falta de espaço, qual é o espaço que falta?” Nesse trabalho ela aposta que discutir, intervir e projetar para instituições de saúde envolve a produção de um espaço que não se separa das ações de saúde e de subjetividades inerentes a um determinado território e defende o compromisso ético, estético e político do arquiteto nas intercessões arquitetura e saúde que, além de tudo, deve ser permeável a interferências de outros saberes.
Por ocasião da apresentação dessa dissertação ela foi provocada a estender esse debate para além dos serviços de saúde, ampliando-o para o universo das cidades. Despontou-lhe, então a questão de habitação, em especial para a população de baixa renda, e sua relação com a atenção básica de saúde, com o território que ocupa e com a qualidade de vida. Propôs-se então a investigar e discutir o alcance de um modo de intervenção baseado na intercessão da arquitetura e saúde capaz de contribuir para o aumento dos graus de qualidade de vida da população que vive em situação de alta vulnerabilidade social em territórios habitacionais de interesse social.
Na tese de doutorado ela aposta em estratégias articuladas e inclusivas, pautadas por um modo de “fazer com” e não de “fazer para”, uma vez que considera que essa tarefa, que vai além de prescrever soluções para o ambiente construtivo, prima por um modo de fazer que inclua os usuários do espaço no seu processo de construção que, sem prescindir do saber do arquiteto e urbanista, permita tanto a interferência dos profissionais de saúde, em especial dos agentes comunitários, quanto dos moradores, de modo a despertar na comunidade o desejo de cuidado com o seu território, o que pressupõe a ideia de coprodução.
O estudo
No estudo, que contou com apoio da Capes e CNPq, Mirela adotou como metodologia de pesquisa-intervenção a cartografia social, que favorece a exploração do território, a construção de percursos investigativos, análises e proposições para o campo problemático em questão. A cartografia como método de pesquisa-intervenção não se vale da forma prescritiva, que utiliza regras predefinidas, nem se estrutura com base em objetivos previamente estabelecidos e, nem por isso, está desprovida de direção, pois se alicerça em pistas que orientam o percurso da pesquisa. Essas pistas podem constituir estratégias e diretrizes tanto para o campo da arquitetura quanto da saúde, mas, especialmente, para a atuação conjunta e intercessora com vistas a um objetivo comum: o aumento nos graus de qualidade de vida nas comunidades estudadas.
Com base nessa metodologia, diferentemente da poesia sugerida pela inspirada composição homônima de Adoniran Barbosa,
Vila Esperança, foi lá que eu passei
O meu primeiro carnaval
Vila Esperança, foi lá que eu conheci
Maria Rosa, meu primeiro amor
Como fui feliz, naquele fevereiro
Pois tudo para mim era primeiro
Primeira rosa, primeira esperança
Primeiro carnaval, primeiro amor criança,
não é poética a visão que moradores têm do bairro quando, durante a realização de oficinas, realizadas com hipertensos e diabéticos usuários do Centro de Saúde São Marcos, estes são instigados a falar sobre problemas que enfrentam e qualidade de vida:
“Aqui tem muito pó de terra, que faz mal (...) minha filha é alergia, eu sou alérgica...”
“O pó entra e fica preso na casa. Daí eu não abro, deixo tudo fechado.”
“Qualidade de vida para mim é morar em outro lugar.”
“Aqui a minha pressão é sempre alta e tenho muito medo.”
“Os carros correm muito, não dá para ficar na rua.”
“Qualidade de vida é boa moradia, família unida, não passar nervoso.”
“Não tem como caminhar, não tem calçadas e as ruas são cheias de buracos.”
Segundo Mirela, para entender a dimensão dos problemas enfrentados por esses moradores de baixa renda é imperioso primeiramente incorporar as condições físicas e sociais em que vivem, daí a metodologia por ela adotada. “Quando se parte do pressuposto de que saúde não é somente ausência de doença, mas ter condições de trabalho, de moradia, de sociabilidade, de tudo que contribua para uma vida adequada em determinado território, não se pode ignorar a interação com os moradores, que sabem de suas necessidades, dos seus desejos e do contesto que afeta suas vidas muito mais que o médico, o enfermeiro, o arquiteto”, esclarece.
A área destinada ao loteamento, considerada de alta vulnerabilidade, diferentemente do seu entorno, despertou a atenção da pesquisadora. Incrustada entre a Fazenda Santa Genebra, que a doou para a implantação do PROCEN, e o Córrego da Lagoa, ela se liga ao norte do Jardim São Marcos por uma única ponte, que permite a entrada dos ônibus e de veículos, e por pinguelas construídas pelos próprios moradores, com vistas à facilitação do acesso. Ruas sem calçadas, sem asfalto e tomadas pelo mato se estendem por terrenos com muita inclinação, o que dificulta a circulação dos moradores que preferem muitas vezes pegar o ônibus no Jardim São Marcos a fazê-lo na via que circunda o bairro, na época da pesquisa a única com asfalto. Depois de 19 anos da implantação do loteamento e de muita luta começavam a ser asfaltadas as demais ruas. Os moradores têm ainda acesso restrito a Campinas. Para eles é mais fácil chegar a pé à Unicamp do que utilizar o transporte coletivo até o Terminal Central de Campinas, de lá embarcar em outro ônibus que os leve a Barão Gerado e em seguida em outro para o campus, trajeto que demanda cerca de duas horas.
Fisicamente o projeto de unidades habitacionais da Vila Esperança segue o padrão dos chamados embriões, com área de 25 m2 - que corresponde à área para estacionamento paralelo de dois carros, dispostos em terrenos de 7x18 m (126 m2 ), compostos por cozinha, banheiro provido de aquecedor solar e ambiente de sala e quarto conjugados, o que compromete a privacidade dos moradores. O projeto prevê a ampliação, por parte dos habitantes, segundo uma única planta básica, que não se atém às diferentes necessidades das famílias, constituídas em média de quatro a seis pessoas. No empreendimento foram construídos também, em menor número, casas com dois dormitórios, tendo como base o embrião comum, e sobrados.
Uma única ponte de acesso contribui para o isolamento da comunidade e gera insegurança. Ruas íngremes e mal cuidadas dificultam a acessibilidade e a ausência de asfalto levam os moradores a manter janelas e portas fechadas para evitar a poeira, tornando o ambiente das casas insalubre e propício a doenças das vias respiratórias. O medo, o lixo acumulado nos terrenos vazios, os buracos e o matagal que invade as vias mantêm os moradores reclusos. Ampliações e puxadinhos realizados nas residências sem orientação agravam a circulação do ar e a entrada do sol. Em consequência é alto o índice de pessoas afetadas pela dengue, pela tuberculose, por doenças respiratórias como bronquite e asma. As condições higiênicas facilitam também a Hanseníase.
Conclusões
As oficinas realizadas no Centro de Saúde e as observações colhidas com o auxílio da agente comunitária, que permitiram a Mirela romper aos poucos o clima de desconfiança com que foi recebida, levaram-na a concluir que quanto mais protagonismo e participação tiverem os moradores na construção de seu território maior o grau de qualidade de vida, porque eles se sentem motivados a incorporar as questões de saúde no sentido mais amplo. “Na minha vivência de arquiteta ligada a questões de saúde sempre me chamou a atenção de que muito do que chega ao hospital tem a ver com o território. Mas o problema não se resolve apenas com o envolvimento das comunidades. Trabalhar com os moradores de forma mais protagonista, mais participante tem efeitos, mas tem limites, pois depende também de ações públicas”, diz ela. A começar pela definição do local de implantação e de como é definido o plano de loteamento, de forma que não fique apartado da cidade, como é comum observar-se em territórios habitacionais de interesse social, gerando os problemas já mencionados.
Cabe ainda às políticas públicas planejar os embriões com a consciência de que serão ampliados pelos moradores segundo suas necessidades. Mas para isso eles devem contar com apoio técnico. É responsabilidade também dos agentes públicos garantir o saneamento básico, asfalto e o mais amplo acesso à cidade através do transporte coletivo.
A autora se declara incomodada com a submissão de arquitetos a projetos que não contribuam para a qualidade de vida e dificultam o trabalho de agentes comunitários. Entende que arquitetos e urbanistas não podem se eximir de suas responsabilidades.
Publicação
Tese: “Intercessão arquitetura e saúde: múltiplas vozes na composição de territórios habitacionais”
Autora: Mirela Pilon Pessatti
Orientadora: Silvia Mikami Gonçalves Pina
Unidade: Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC)