Unicamp
Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 16 de maio de 2016 a 29 de maio de 2016 – ANO 2016 – Nº 656Dez visões sobre o impasse político
Se os aspectos legais e éticos do processo movido contra a presidente afastada Dilma Rousseff ainda inspiram controvérsia, tanto entre o público quanto no meio acadêmico e intelectual, a crise política parece ter produzido pelo menos um consenso: o de que tempos difíceis e perigosos aguardam o governo Michel Temer e, em consequência, o Brasil. Isto é o que se depreende da série de depoimentos colhidos pelo Jornal da Unicamp junto a dez intelectuais de destaque da cena nacional.
Foram ouvidos, ao longo das últimas semanas, Antonio Marcio Buainain, do Instituto de Economia (IE) da Unicamp; o poeta, tradutor e escritor Augusto de Campos; Cícero Romão de Araújo, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP; Eduardo Fagnani, do IE-Unicamp; Francisco de Oliveira, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e da FFLCH-USP; José Arthur Giannotti, do Cebrap e da FFLCH-USP; Leandro Karnal, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp; Rogério Cezar de Cerqueira Leite, engenheiro, físico e professor emérito da Unicamp; Simon Schwartzman, do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade; e Walquíria Leão Rego, do IFCH-Unicamp.
Os depoimentos foram dados num período conturbado, ao longo do qual ocorreram eventos dramáticos como o afastamento do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, por decisão unânime do STF, a breve reversão do processo de impeachment por seu sucessor, Waldir Maranhão e, por fim, o afastamento da presidente eleita pelo Senado, no último dia 12. Algumas das falas reproduzidas abaixo refletem o calor dos acontecimentos.
A reportagem perguntou aos entrevistados sua opinião sobre a natureza do processo contra a presidente e suas perspectivas para o futuro do país. Confira, abaixo, as respostas:
Como o sr(a). vê, tanto do ponto de vista legal quanto do impacto institucional, o processo de impeachment conduzido contra a presidente Dilma?
Antonio Marcio Buainain
Minha visão é de que houve transgressão inequívoca da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), por meio das pedaladas, ou créditos suplementares, ou como se queira chamar essas manobras que ferem o espírito e o texto legal. E essa lei é muito importante para a República, porque coloca limites para as ações dos governantes, tem o objetivo de impedir que decisões de gasto sem lastro deixem heranças malditas para os governantes e gerações futuras. Se a LRF tivesse sido observada em todos os níveis, federal, estadual, nos municípios, nas empresas e autarquias, o Brasil não estaria na crise em que se encontra hoje. Portanto, considero que houve crime de responsabilidade: há uma lei, uma lei importante, que foi violada pela Presidência da República.
Argumentar que ela apenas assina decisões técnicas, chanceladas por pareceres do seu staff, significaria aceitar que o presidente não é responsável por nada, uma vez que toda decisão, antes de chegar à mesa presidencial, é precedida de um processo técnico e avaliativo longo e complexo. Mas quem toma a decisão é o chefe do Executivo, e não seus assessores.
Infelizmente, tenho a impressão de que essa percepção da importância da lei da responsabilidade fiscal não é compartilhada pela população em geral, que não tem consciência da importância de se respeitar o orçamento. Nesse quesito, o governo tem uma certa razão ao tentar minimizar o ocorrido, uma vez que, aos olhos da população, o desrespeito desta lei é mesmo pouco relevante. E a verdade é que a própria oposição não se preocupou em mostrar à população a gravidade do crime representado pela violação da LRF, e preferiu construir o caso pelo impedimento em cima da notória incompetência da presidente, e da corrupção que envolve lideranças importantes dos partidos da base aliada, que são fatos graves, mas que, em nosso ordenamento, não suficientes para justificar o impedimento.
E a oposição não se preocupou em esclarecer a população sobre a natureza do crime contra a responsabilidade fiscal porque não é do interesse dos políticos em geral difundir a boa prática de que gastar irresponsavelmente é crime. Vai que pega a moda de respeitar orçamentos e regras! Dá para imaginar um mundo no qual as universidades estaduais tivessem que aceitar a dotação de recursos definida pelas regras da autonomia, e os limites para o pagamento da folha de pagamento?! Eu não consigo!
Então, temos um paradoxo: para o impedimento vale o crime fiscal, um crime que a presidente de fato cometeu, mas para a população ela está sendo impedida por “crimes” que de fato não cometeu, porque ser incompetente e colocar o país na maior crise já vivida não é, em nossa legislação, crime.
Augusto de Campos
Eu expressei várias vezes, desde meados do ano passado, em várias entrevistas e manifestações públicas, a minha convicção de que não há base legal para o impeachment. Acho que é uma armação, onde apenas se dá aparência formal à deposição da presidente legítima. Posso falar com alguma autoridade porque, além de poeta e escritor, com mais de 65 anos de atividade, fui também procurador do Estado durante quase 40 anos, e trabalhava justamente na área de interpretação da Constituição em relação às leis vigentes. Acho que é totalmente inconsistente o pretenso fundamento do impeachment — prática costumeira, de natureza operacional-financeira, utilizada pelos governantes que precederam o atual, e ainda corrente em vários Estados da Federação.
E considero contrária aos princípios do direito e da ética a votação que acolheu a iniciativa do processo, e que envergonhou o país pelas demonstrações de ignorância e primitivismo dos deputados favoráveis ao impedimento, as quais chegaram a incluir o louvor à tortura, ferindo os mais comezinhos princípios dos direitos humanos.
Assim como muitos juristas e intelectuais, considero esse impeachment um golpe indireto, um golpe branco, com as aparências formais de legalidade. Aos 85 anos, depois de ter vivido os tempos execráveis do golpe da ditadura militar, não esperava ter que assistir ao espetáculo deplorável da farsa política com que agora nos defrontamos.
Cícero Romão de Araújo
Eu acho que o que estamos vivendo hoje não é uma simples crise de governo, é uma crise de regime. Não significa que a democracia esteja em questão. Há uma crise de regime porque há sinais claros de que o sistema político, como um todo, está desgastado e sob enorme pressão. Não está conseguindo produzir alternativas que, relegitimando o conjunto, conduzam a uma saída para as várias crises sobrepostas que o país está vivendo, especialmente a relacionada ao desgaste interno do sistema partidário-eleitoral. Agora, o fato de haver uma crise de regime não significa que a democracia esteja em perigo. Há uma polarização enorme, mas as principais forças políticas do país não querem partir para outro jogo, senão os compatíveis com a própria democracia. Por isso não acho o termo “golpe de Estado” adequado para descrever o que está acontecendo.
A rigor, um golpe de Estado visa mudar a natureza do regime, liquidar as liberdades democráticas e instituir um regime autoritário. Isso não está posto. O que não significa que tudo esteja correndo normalmente: ao contrário, é uma situação muito anômala. Um regime democrático pode produzir decisões equivocadas e até muito injustas: “golpes abaixo da cintura”, como se diz (o que é diferente de golpe de Estado), medidas sórdidas – por exemplo, essa sucessão de coisas a que estamos assistindo neste momento.
Acho que a justificativa do pedido de impeachment é frágil, jurídica e politicamente muito frágil: de fato, a debilidade de um governo, sua baixa popularidade, a crise econômica, etc., não justificam, no presidencialismo, um pedido de impeachment. E as razões que foram alegadas no processo iniciado na Câmara dos Deputados – as tais pedaladas fiscais etc. –, parecem antes um pretexto para justificar a derrubada do governo por uma maioria antigovernista ocasional. Não me parece um bom presságio para o que virá a seguir.