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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 22 de agosto de 2016 a 28 de agosto de 2016 – ANO 2016 – Nº 666Diálogos entre diferentes
Estudo aborda processos de (re)negociaçãocultural em colônia de holandeses no Paraná
Arapoti, Paraná, é um município ondem vivem cerca de 30 mil habitantes. Nele também residem praticamente 100 famílias holandesas em uma colônia fundada em 1960. Ályda Henrietta Zomer é brasileira por parte de mãe e holandesa por parte de pai. Mora nessa colônia de imigrantes desde criança. Cedo, sentiu que se diferenciava de seus amigos holandeses e também de seus amigos brasileiros, o que fazia com que questionasse muito o seu pertencimento à colônia de Arapoti.
Em sua dissertação de mestrado, desenvolvida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), ao estudar as (re)negociações culturais e as memórias dos holandeses e brasileiros de Arapoti/PR, Ályda chegou à conclusão de que é necessário olhar mais longe para entender o que está em jogo nessa relação: olhar para as diferenças culturais como diálogos que estão sempre em negociação e entendê-los como processo pois, se forem olhados como produtos, não será possível enxergar as tessituras dos discursos.
Esse entendimento foi fundamental porque, segundo ela, geralmente se pensa que, numa comunidade de imigrantes, eles são todos iguais. “As pessoas pensam e agem diferente. Mas nosso estudo aponta que existe sim um processo de renegociação cultural entre holandeses, entre brasileiros e entre holandeses e brasileiros.”
A pesquisadora conta que uma vez não foi convidada para um aniversário de uma amiga, filha de um casal puro (termo usado pelos holandeses para se diferenciar de casais mistos – brasileiros e holandeses), porque era filha de um casal misto. Outra situação envolveu o primeiro jogo de futebol em que Ályda jogou no Zeskamp [olimpíadas intercoloniais que acontecem todo ano no Brasil]. Ela teve que apresentar identidade para comprovar que descendia de holandeses.
Desde a graduação, amadureceu esses questionamentos e trabalhou no mestrado com narrativas orais num trabalho etnográfico. Os dados foram gerados mediante entrevistas, diário de campo e de suas próprias memórias. Utilizou ainda fotografias e objetos para estimular as narrativas de 13 participantes, holandeses e brasileiros em um trabalho feito entre 2014 e 2015.
Orientada pela docente do IEL Daniela Palma, a mestranda, que é linguista aplicada, observou os sujeitos que falam de lugares diferentes, mesmo pertencendo à mesma colônia, à mesma cidade. Viu como é a (re)negociação das diferenças culturais entre os próprios holandeses na colônia, pensando em casais mistos também e os que não são da colônia.
“É isso que me faz pensar em cultura – um conjunto de costumes, práticas e ideologias que faz com que um se diferencie do outro. É quando sujeitos falam desses lugares diferentes que chamo de renegociação cultural ou diálogo intercultural”, explicou. “As narrativas orais trazem fatos do passado que são renegociados no presente.”
Negociações
Os holandeses vieram ao Brasil dez anos após o fim da II Guerra Mundial. Eles ainda tinham consequências econômicas e sociais no seu país. Vieram porque apostaram em uma nova vida. Desembarcaram de navio em Santos após 17 dias de viagem. Chegaram a Arapoti de ônibus no dia 9 de junho de 1960. Atualmente, a colônia tem 56 anos. É a mais nova do Brasil (há outras cinco: Holambra 1, Holambra 2, Castrolanda, Carambeí e Não-me-Toque).
No início, os holandeses puros eram impedidos de contrair casamentos mistos. Não casavam e pronto. Com o tempo, repensaram essa prática “Não significa que toda colônia os aprove. Até permite-se o casamento, porém muitas vezes deseja conduzir essa hibridação cultural, mesmo sabendo que não consegue controlá-la. Renegociações como o casamento são feitas ‘na’ e ‘pela’ linguagem”, sugere a linguista.
Quando a colônia surgiu, três instituições foram postas como pilares: a cooperativa, a igreja e a escola. A cooperativa era relevante como atividade econômica, a religião (em geral a evangélica reformada) para exercício da fé e a educação por causa do conhecimento.
Na década de 1960, o ensino era em holandês. O português foi introduzido aos poucos. Apesar disso, em muitas casas, só se falava holandês. O primeiro pastor brasileiro era da década de 1990. Ainda há cultos em holandês, mas já se percebem (re)negociações culturais na igreja.
Além da oralidade, a mestranda também verificou os gestos, as imagens e as diferentes linguagens. Com isso, chegou ao futebol e à alimentação como práticas sociais, como linguagem. A divisão dos times de holandeses contra brasileiros e a própria camisa da seleção feminina de futsal podem representar as diferenciações culturais, que também entravam em campo, garante ela.
Na casa da sua avó brasileira, a mesa era farta. Tinha três tipos de tortas doces, dois tipos de tortas salgadas, pães, suco, chá, café, refrigerante. Tudo ficava sobre a mesa. As pessoas se serviam. Na mesa holandesa, tinha só café com leite e bolo. Em geral, não havia repetição e exagero.
“Olhando para esse gesto de colocar tudo sobre a mesa, nota-se uma diferença em relação ao costume dos holandeses de colocar pouca coisa em um pratinho de bolo e uma xícara de café com leite sobre a mesa. Os diálogos interculturais também estão sentados à mesa”, constata ela.
Em sua opinião, isso comporta muitos diálogos interculturais, não como álibi para dizer que não há desencontros, pois estes são parte do processo. Os gestos também contribuem para a compreensão dessas (re)negociações. “Isso é ter a língua como prática social – as diversas linguagens pelas quais nos expressamos.”
Um entrevistado relatou que foi tranquilo receber uma nora brasileira na colônia. A esposa dele, da cozinha, gesticulava que não. Negociavam entre eles: um dizendo sim, outro não. “Por isso o conceito de língua não pode olhar só para o verbal-oral. O gestual, as fotografias e os objetos também são linguagens. Olho para o discurso como prática social localmente situada.”
Ályda optou por enxergar o futebol como linguagem e prática interseccionada por linguagens. Quando os holandeses chegaram a Arapoti, faziam partidas contra os brasileiros. Essa divisão já era uma linguagem sugestiva de uma diferenciação cultural: holandeses de um lado, brasileiros do outro.
Dava a impressão de que o futebol não era uma linguagem em que as diferenciações culturais aconteciam. Era o momento que todo mundo se integrava e que as diferenças não entravam em campo. “Um antigo morador de Arapoti lembra que tinha uma boa relação com os brasileiros coletivamente: no futebol não é preciso falar, é só chutar a bola. O futebol parece então ser uma atividade lúdica, uma integração que não reflete as diferenciações que estão no entorno do campo”, apurou Ályda.
Ela viu o futebol e a alimentação como linguagens nas e pelas quais ocorrem os processos de hibridação. “Não entendo holandeses e brasileiros como uma identidade nacional cunhada no nascimento e sim como pertencimento. Sou brasileira de nascimento e também sou holandesa em muitas práticas, assim como muitos holandeses se sentem brasileiros em momentos específicos.”
Um brasileiro se torna holandês na colônia quando casa. Também existe muita racialização nas falas. “Os holandeses ficavam de um lado, todos altos e brancos. É como se não existissem holandeses não loiros e não altos, e brasileiros não altos e não brancos”, averigua.
Na fala dos entrevistados, as mães brasileiras podem representar um risco para o se tornar holandês, pois ficam mais tempo com os filhos e podem contribuir para que os alunos não aprendam o holandês. “Essa visão de língua e cultura é equivocada. Passa a ideia de que, para ser holandês, é preciso falar esta língua, entendendo-a como só verbal. Ocorre que ela é um dos símbolos que representam a cultura holandesa, não o único.”
Muitos esquecem que seus filhos usam chaveiros de moinho nas mochilas, camisetas de tamancos, camisas da seleção holandesa, linguagens nas quais a cultura holandesa também se dá, pondera a mestranda.
“Eu não imaginava uma colônia a partir do meu pertencimento como um lugar com integrantes tão distintos. Sou filha de um casal misto, não falava o holandês e não ia à igreja. Por isso muitas vezes eu não era holandesa”, relatou. “Quando jogava bem o futebol, daí era. Como criança, isso foi muito difícil. Em troca, eu também segregava os holandeses, como estratégia identitária.”
Desconstrução
Em vários momentos da entrevista, Ályda imaginava as respostas dos participantes, por ser pesquisadora e integrar a colônia. Quando voltava das entrevistas, sofria crises identitárias, pois os entrevistados não falavam o que ela tinha imaginado. “Isso foi um grande desafio”, relata.
Percebeu os holandeses como sujeitos que se sentem pertencentes ao Brasil e à Holanda. Eles mesmos se autodeclaram brasileiros e holandeses. Muitos usam adesivos dos dois países em seus carros. “Então aprendi a ser mais sensível, a pensar nos outros e a ver que eles também têm dificuldades de diálogo com pessoas que falam de diferentes lugares”, diz.
As entrevistas colaboraram para que Ályda revisse suas posições. “Esse exercício nos coloca como um pesquisador não pronto e sujeito sempre em negociação. A Linguística Aplicada está preocupada em olhar para as pessoas nos seus contextos e não tirá-las, a fim de olhar para as identidades pensadas no contexto em que esses sujeitos estão situados. Então não foram objeto de pesquisa. Foram meus companheiros.”
O que mais a surpreendeu foi ouvir dos entrevistados mais velhos que nenhum deles queria voltar à Holanda. Disseram que, se voltassem, sentiriam-se tão imigrantes como quando chegaram aqui. “Eu imaginava a minha colônia homogênea. Não imagino mais”, realçou Ályda.
Sua pesquisa foi feita no Departamento de Linguística Aplicada, na área de Linguagem e Sociedade. “Pesquisar é olhar para o que está acontecendo com mais criticidade. Devo olhar para essas questões na colônia e repensar sobre cada uma delas, levando sempre em conta meu pertencimento, que não pode ser afastado da pesquisadora que tenho me tornado a cada dia.”
Ela buscou construir uma dissertação que mostrasse a ligação com o contexto, a fim de indicar também que o fazer ciência está intimamente ligado às particularidades do pesquisador. Em nenhum momento, a mestranda optou por apresentar as suas (re)negociações entre o ser pesquisadora e integrante da colônia. Pelo contrário, vê isso como uma das maiores riquezas do seu trabalho.
Publicação
Dissertação: “Narrando as (re)negociações culturais: as memórias dos ‘holandeses’ e ‘brasileiros’ de Arapoti/PR”
Autora: Ályda Henrietta Zomer
Orientadora: Daniela Palma
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)
Financiamento: Capes