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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 22 de agosto de 2016 a 28 de agosto de 2016 – ANO 2016 – Nº 666Elevação do nível dos mares
é ameaça para grupo de anfíbios
Cientistas avaliam impacto de perdas de áreas costeiras para a sobrevivência de sapos, rãs e pererecas
A elevação do nível dos mares, prevista para ocorrer ao longo deste século, representa uma ameaça até agora negligenciada para os anfíbios anuros, grupo de animais que inclui rãs, sapos e pererecas. Esses anfíbios já constituem um dos principais alvos da preocupação de cientistas e ativistas envolvidos com a preservação da biodiversidade. Dois artigos recém-publicados em periódicos internacionais, derivados de tese de doutorado defendida no Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, lançam um esforço pioneiro para entender o impacto da perda de áreas costeiras para o oceano na sobrevivência desses animais.
“A maioria das espécies que prevemos ter algum problema com o aumento do nível do mar no futuro, hoje não são consideradas ameaçadas”, disse o professor do IB Felipe Toledo, orientador da tese “Análise de múltiplas ameaças à conservação e diversidade de anfíbios”, defendida por Igor Soares de Oliveira e coautor, com Oliveira e outros, dos artigos. “Não há nenhuma bandeirinha de risco nessas espécies, mas verificamos que, certamente, terão uma ameaça iminente. Talvez agora, com esses trabalhos, possamos reavaliar a condição de conservação desses animais e colocá-los como ameaçados, provavelmente como vulneráveis à extinção”.
“Dados de grupos muito conceituados afirmam que a elevação oceânica é uma das consequências mais certas do aquecimento global”, acrescentou Oliveira. “Acho que esse nosso trabalho serve como um ponto de partida para que se olhe para essas espécies que têm sofrido com uma certa negligência”, disse. “Algumas foram descritas há muitos anos e não foram mais estudadas. Esperamos que a elevação oceânica passe a fazer a parte da agenda de discussão das estratégias de conservação. Acho que esse alerta é um dos pontos principais do nosso trabalho”.
Modelos
Um dos artigos, publicado no North-Western Journal of Zoology, trata do impacto da elevação do nível do mar e dos efeitos da mudança climática em geral sobre os anfíbios das zonas costeiras de todo o mundo. O outro, publicado em Studies on Neotropical Fauna and Environment, trata especificamente das espécies da Mata Atlântica. Em ambos os casos, os autores se valeram de dados sobre a distribuição dos anfíbios em zonas costeiras ou de baixa altitude em relação ao nível do mar e em projeções de como ficará o desenho dessas zonas costeiras e baixadas litorâneas em diferentes cenários de elevação do nível do mar entre 2080 e 2100.
Em seu quinto relatório de avaliação, publicado entre 2013 e 2014, o Painel Intergovernamental para a Mudança Climática (IPCC) da ONU destaca que “a elevação do nível do mar não será uniforme em todas as regiões”. O relatório afirma que “ao final do século 21, é muito provável que o nível do mar tenha subido em mais de 95% da área oceânica. Cerca de 70% das zonas costeiras do mundo deverão experimentar uma mudança de nível do mar dentro de 20%, para mais ou para menos, da média global”.
Os artigos de Oliveira e Toledo trabalham com perspectivas mais radicais do que a média do IPCC, que estima uma elevação de menos de um metro até 2100. O trabalho sobre impacto nos anfíbios costeiros em escala global pondera que “diversos estudos apresentam cenários mais pessimistas, com a elevação do nível do mar podendo chegar a seis metros nas próximas décadas”. Os artigos levaram em conta cenários de elevação do mar de 1, 2 e 3 metros (no trabalho global) e de 3 ou 6 metros (no estudo específico para Mata Atlântica).
“Acessamos uma base de dados de um grupo que estuda só derretimento de calotas e projeções de elevação oceânica, o Center for Remote Sensing of Ice Sheets”, disse Oliveira. “Fizemos isso com bastante cuidado, porque a gente estava trabalhando numa escala geográfica muito grande. Como o relevo litorâneo da terra é muito heterogêneo, a gente não sabe a magnitude do avanço horizontal do mar, especificamente, em cada local. Pegando esses modelos de 3 metros ou mais, bem acima do previsto pelo IPCC, a gente tentou visualizar os efeitos de intrusões marinhas, por exemplo”.
“Buscamos identificar geograficamente esse tipo de efeito, e isso acho que foi uma ideia acertada, porque recentemente vi um artigo no qual se relata a primeira extinção de um mamífero pela elevação oceânica numa ilha da Austrália, a Ilha de Bramble Cay”, acrescentou ele. Essa extinção foi noticiada em diversos veículos de divulgação científica, como a revista Scientific American Brasil e a coluna Telescópio do Jornal da Unicamp.
“Os autores alertam justamente para esses fatores que apontamos: as intrusões marinhas e as mudanças de maré e tempestades. Por isso que a gente selecionou esses modelos: embora tenhamos trabalhado com valores médios de aumento do nível do mar, devido ao próprio formato da Terra, às características geofísicas do planeta, à forma como ele gira, à distribuição das massas continentais, as elevações não serão todas iguais à média prevista em todas as zonas costeiras mundiais”.
Toledo lembra, ainda, que a maioria das espécies de anfíbios, mesmo se tratando de animais que passam parte de suas vidas na água, não tem tolerância ao ambiente salobro. “Quando um sapo entra no mar, ele morre por não tolerar a água salgada. Fizemos então essa subtração: qual a área potencial para o animal no futuro, baseado em modelos de nicho climático, menos a área perdida com a previsão de aumento do nível do mar, restando então somente a área que ele vai ter”.
Previsões
O levantamento feito pelos autores sobre a distribuição dos anfíbios anuros pelo mundo revelou que cerca de 2% das espécies conhecidas habitam exclusivamente áreas abaixo da marca de 60 metros acima do nível do mar. Dessas, 86% deverão sofrer algum impacto negativo da elevação do nível do mar, e impactos ainda mais severos de outros efeitos da mudança climática, como mudanças no regime de chuvas ou na temperatura média anual.
“Descobrimos que a ecorregião da Australásia abriga a maioria das espécies que sofrem o impacto duplo da elevação do nível do mar e da mudança climática”, diz o artigo. “Com base nesses resultados, defendemos a inclusão dos possíveis impactos futuros do nível do mar nos planos de ação para conservação, antecipando e evitando perdas de biodiversidade”, prossegue o texto.
No caso das espécies costeiras da Mata Atlântica, a previsão é de que 15% das 19 analisadas sofram algum tipo de perda de hábitat por conta da elevação do nível do mar e dos demais efeitos da mudança climática. Em alguns dos cenários analisados, a previsão foi de que a área habitável para algumas espécies poderia até mesmo aumentar com os efeitos da mudança climática. Mas a boa notícia é apenas aparente.
“Quando a gente fala em áreas adequadas, quer dizer simplesmente que, no futuro, haverá alguns locais com clima favorável à espécie. Mas esse é um fator de preocupação: como essas espécies vão chegar a esses locais com clima favorável?”, questiona Oliveira.
Toledo acrescenta: “Esses sapinhos pequenos andam muito pouco. E às vezes o clima favorável vai aparecer no meio de Ubatuba, por exemplo. A gente não considerou ocupação urbana. É difícil, ainda, os animais migrarem em pouco tempo. Porque o clima vai mudar rapidamente, daqui a 50 anos, e em 50 anos as populações provavelmente não vão mudar a sua distribuição”.
O orientador lembra que ainda há muito a aprender sobre esses animais: a descrição de novas espécies aparece frequentemente na literatura, por exemplo. “Temos uma expectativa bem conservadora de que pelo menos 20% desses animais da Mata Atlântica ainda não foram descritos”, exemplifica. “Então tem muita espécie nova sendo descrita, a toda hora. Tem gente no Brasil inteiro descobrindo bicho novo. Algumas espécies que podem perder áreas por alagamento talvez nem tenham sido descritas. Podemos perder espécies que nem nome têm ainda”.
Publicação
Tese: “Análise de múltiplas ameaças à conservação e diversidade de anfíbios”
Autor: Igor Soares de Oliveira
Orientador: Felipe Toledo
Unidade: Instituto de Biologia