Edição nº 658

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 03 de junho de 2016 a 12 de junho de 2016 – ANO 2016 – Nº 658

De Dante a Ridley Scott


O que é o inferno na vida das pessoas senão o aqui e o agora? A questão existencial tratada de várias formas nas artes inspirou o pesquisador Paulo de Tarso Coutinho Viana de Souza na dissertação “As novas topografias do inferno: de Dante a Blade Runner”, defendida no Instituto de Artes (IA) da Unicamp. O trabalho procura mostrar, como escreve o autor no resumo da dissertação, que “ao contrário do que se pensa o inferno não desapareceu, ele continua sendo representado por roteiristas, diretores de cinema, desenhistas de quadrinhos e game designers. Sua representação mudou. O inferno deixou de ser um lugar para onde se vai e passou a ser aquele onde se está”.

Ridley Scott, diretor do cultuado filme Blade RunnerO Caçador de Androides soube como poucos eleger as imagens mais fidedignas das profundezas. Um cenário de horror foi projetado pelo cineasta, há 34 anos, para descrever o futuro (agora bem próximo) de 2019. Seres humanos e replicantes viviam o colapso da civilização na cidade de Los Angeles, então irreconhecível. Um lugar onde as pessoas não são pessoas, onde o sol não brilha e onde o ar é impossível de se respirar e que é alimentado pelos desastres do mundo moderno. “Desordem genética, poluição, sujeira e escuridão fazem parte das alegorias do inferno de hoje”, complementa.

Arquiteto de múltiplos interesses, Paulo de Tarso voltou à universidade 30 anos depois de ter se formado. Estava em dúvida quanto ao tema da pesquisa: se analisava os anúncios de acompanhantes que coleciona há décadas, ou se partia para o inferno. Escolhida a segunda opção, foi buscar as raízes do projeto na obra A Divina Comédia, de Dante Alighieri. 

A primeira parte da série de poemas do século 14, denominada mesmo de Inferno, descreve em detalhes a tal topografia das profundezas, dividida em nove “círculos”. O matemático Antônio Manetti e o cientista Galileu Galilei posteriormente ocuparam-se de fazer as operações que determinassem o local exato da queda de Lúcifer. De acordo com Dante, a queda do anjo traidor abre o gigantesco funil cuja boca corresponde ao diâmetro da terra e o final, que corresponde ao nono ciclo do inferno, ao centro do globo.

“A construção de Dante é tão monumental que ainda que os críticos falem sobre o purgatório e o paraíso, o inferno é uma obra-prima e se tornou um grande paradoxo para nós porque é um lugar que não existe controlando a vida das pessoas de um lugar que existe”. Sem esconder a ironia, Paulo de Tarso afirmou que até se deu o trabalho de calcular o número de corpos que cabem no inferno: 9 sextilhões, ou seja, nove seguido de 23 zeros. Segundo ele, ainda em tom jocoso, “há espaço suficiente para acomodar toda a Humanidade e com mais conforto térmico que o céu, uma vez que, levando em conta as descrições de temperatura, o clima das trevas seria mais ameno que o do céu, mais próximo do sol”.

Inferno no cinema
De Dante ao cineasta Ridley Scottt, a escolha de Blade Runner tem a ver com a simbologia nada óbvia, para o pesquisador, do processo de entender a culpa e o pecado. “O diretor do filme tem uma forma de ver o mundo que é semelhante à de Dante. Ambos consideram que existe um lugar onde você vai pagar, vai penar por atos que você cometeu”. A diferença entre os dois é que o cineasta, ao contrário do poeta, não acredita na redenção.

O filme teve como inspiração o livro Androides sonham com ovelhas elétricas?, de  Philip K. Dick. Mas Paulo de Tarso afirma que há muito pouco em comum entre filme e livro. Este é o ponto de partida para as análises que o pesquisador faz das “camadas de significado” presentes no filme. “A história do livro se passa em São Francisco, enquanto em Blade Runner tudo acontece em Los Angeles, que é a ‘cidade dos anjos’, ou dos anjos caídos, como Lúcifer”.

Paulo de Tarso chama a atenção para a primeira cena do filme, outra lembrança que remete a Lúcifer. “Vemos inúmeras tochas de usinas, refinarias, o fogo que representa o anjo que transporta a luz”. Outro sinal é o nome da maquete que aparece no início do filme, nomeada de Hades, ou seja, o inferno para os gregos, segundo o pesquisador. Os balões de propaganda para que as pessoas deixem a Terra também são vistos por Paulo de Tarso como indícios de que a história se passa no inferno.

Outra questão é a citação de três zonas no filme: três, cinco e nove. “Em Dante, o terceiro círculo é o dos glutões, que comem em excesso. A segunda cena do filme é personagem de Harrisson Ford aguardando para ser chamado para comer. Ele diz que quer dois, o chinês retruca ‘um é o suficiente’. Eles estão na zona três. A zona cinco corresponde ao quinto círculo de Dante, dos avaros e dos pródigos, e é onde está sediada a empresa que é a dona dos androides”.

Também a batalha final do filme ocorre na zona nove, correspondente do nono círculo em Dante, que é dos traidores. “A gente sabe que uma das colocações do diretor foi a de que, provavelmente, o personagem de Harrison Ford era um replicante que matava outros replicantes e, portanto, um traidor da própria raça”, observa o autor da pesquisa.

No Inferno de Dante, o último círculo é coberto de gelo formado pelas lágrimas daqueles que sofrem nos círculos anteriores. Não por acaso, afirma Paulo de Tarso, a última cena do filme faz referências às lágrimas na chuva. Há ainda uma única aparição suspeita do sol, se pondo a oeste, em uma construção egípcia. “Na cultura egípcia, que foi a que mais desenvolveu o conceito de pós-morte, o inferno ficava onde o sol se punha. Tudo isso não está no filme ao acaso. O diretor não constrói um edifício com características egípcias, e põe uma personagem do lado de uma figura egípcia à toa. Ele faz aquilo para te dar pistas, indícios”.

Para o pesquisador, o diretor de cinema tem um objetivo claro. “Ridley Scott diz que o filme é um bolo de 700 camadas de significação. É disso que eu fui atrás. Na tese mostro que a ideia dele era criar o inferno na Terra em 2019, que os erros que nós estamos cometendo agora nós pagaremos no futuro com o inferno na Terra”, reflete.

O pesquisador justifica que precisou construir uma história do inferno para entender os enigmas do filme de Ridley Scott. “Há uma grande questão ontológica que permeia toda essa discussão que é de onde vim e para onde vou. Todo artista tenta dar alguma explicação que possa aplacar essa dúvida. Eu procurei entender o impacto da ideia de inferno na vida das pessoas, minha ideia era uma escavação para chegar à origem desse lugar tão terrível que fomos capazes de criar. Se o inferno não existe porque eu estaria tão preocupado com ele?”

A curiosidade de Paulo de Tarso agora o leva de volta ao Inferno de Dante. Ainda falta calcular como passar de um círculo para outro. O pesquisador mostra o quadro de Sandro Botticelli que ilustra a Divina Comédia e que propõe como solução uma escada. O pesquisador chegou a calcular a quantidade de degraus necessários para se chegar ao nono círculo: quatro milhões. Mas ainda não se convenceu. Está em dúvida agora se os pecadores seriam enviados direto para o círculo correspondente às suas principais faltas ou, o mais possível, que o inferno não seja exatamente um funil, mas uma espiral.

Publicação

Dissertação: “Inferno, novas topografias: de Dante a Blade Runner
Autor: Paulo de Tarso Coutinho Viana de Souza
Orientador: Ernesto Boccara
Unidade: Instituto de Artes (IA)