O lazer como direito social foi incluído
em uma Constituição pela primeira vez no Brasil em 1988,
durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte,
iniciados em 1987. Um estudo de mestrado da Faculdade de
Educação Física (FEF) de autoria de Flávia da Cruz Santos
pôs em dúvida o fato de o lazer ter se constituído direito
social no Brasil, já que muitos estudos indicam que ele
ocupava na nação um lugar secundário. “Era encarado como
supérfluo e não era tido como uma necessidade das classes
populares”, garante a pesquisadora. Mas bem ao contrário
do que ela achava, a pesquisa indicou que não se tratou
de uma contradição, posto que o lazer foi reivindicado como
um direito durante os trabalhos da Constituinte pelos três
atores políticos participantes desse processo: os constituintes,
as entidades da sociedade civil e a população.
Agora, como algo que era tido como “tão
supérfluo e desnecessário” foi entendido como direito social?
A pesquisadora descobriu que a contradição foi apenas aparente.
“Na verdade, ela não existiu. O lazer foi reivindicado,
e algumas expressões utilizadas nos textos das sugestões
e emendas salientaram claramente isso: ele foi requerido
como ‘direito fundamental’ e como ‘necessidade básica dos
cidadãos’”. Então esta forma de compreender o lazer como
direito e como necessidade básica indica que ele ocupava
um lugar destacado na sociedade brasileira daquele momento
histórico.
O assunto se tornou alvo de atenção de
Flávia Santos, que quis compreender melhor o que começou
a incomodá-la quando estudava as políticas públicas de lazer
e de esporte. Foi aos documentos produzidos pela Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-1988 e reconstituiu as presenças
e ausências do lazer nesse processo. Este trabalho de mestrado,
que teve orientação da professora da FEF Silvia Amaral,
buscou reconstituir a trajetória do lazer na Constituinte,
que foi instalada no dia 1º de fevereiro de 1987 e dissolvida
no ato da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de
1988.
A Constituição de 1988 resultou de reivindicações
da sociedade brasileira que vinham desde a década de 1970,
pois a última Carta, que ainda vigia naquele momento, datava
de 1967, construída no e pelo governo Castello Branco, no
início da ditadura militar. Deste modo, considera a pesquisadora,
era uma Constituição que representava os valores e ideais
do regime autoritário.
“As ausências revelaram muito nessa pesquisa”,
situa ela, que percorreu a trilha completa dos documentos
produzidos pela Constituinte, que hoje estão sob a guarda
do Senado e da Câmara e foram disponibilizados on-line.
Além deles, a pesquisadora analisou os documentos que os
antecederam, sempre da década de 1980, que tratam da construção
da Constituinte: mensagem do presidente José Sarney que
propõe a convocação da Assembleia Nacional Constituinte,
emenda Constitucional que a convocou e o seu Regimento Interno.
A professora de Educação Física contou,
além do mais, com uma fonte oral – a entrevista realizada
com José Maurício Linhares Barreto (do PDT), que foi o constituinte
que mais enviou emendas e sugestões versando sobre o lazer,
depois do sociólogo Florestan Fernandes, deputado pelo PT
falecido em 1995. As sugestões populares foram enviadas
via correio através de formulário apropriado, que também
puderam ser encaminhadas através das entidades e dos constituintes.
A ausência de uma definição precisa do
lazer na Constituição de 1988 é um problema na opinião de
Flávia Santos. Está mal-definido constitucionalmente. Figura
no artigo 6º como direito social, ao lado dos direitos à
saúde, à educação e à moradia, mas não foram definidos os
princípios, as diretrizes, os objetivos, os mecanismos e
as regras institucionais que deveriam orientar a concretização
do direito ao lazer, assim como sua fonte de financiamento.
Alguns
constituintes (entre eles José Maurício e Caio Pompeu de
Toledo), descobriu a pesquisadora, reivindicaram financiamento
para o lazer em emendas. O que indica essa presença na Constituinte
seguida de ausência na Constituição? Flávia dá sua explicação.
“Significa que esses constituintes queriam não somente incluir
o lazer como um direito no texto da lei. Desejavam garantir
que ele fosse materializado na vida das pessoas, pois, afinal,
como garantir um direito, como dar a ele concretude, se
não houver financiamento para ele? É impossível”, argumenta.
“Então essa não foi uma reivindicação retórica”, conclui.
Depois isso não ganhou sustentação, avalia
a pós-graduanda, porque o jogo político dentro da Assembleia
Nacional Constituinte ‘ia e vinha’. Ora os constituintes
ganhavam e ora perdiam nas votações. Tratava-se de um jogo
de pressões em que se observavam ausências e presenças –
muitas vezes presenças como essas, seguidas de ausências,
ou ausências, seguidas de presença. O jogo, portanto, tornava-se
nebuloso. A pesquisa mostrou que o que era previsto pelo
Regimento Interno da Constituinte, as etapas e quem deveria
participar de cada uma delas, nem sempre era seguido. “Descobri
muitos documentos e fases dos trabalhos que não estavam
previstos. Eles não deviam existir, o que evidencia que
a dinâmica de funcionamento da Constituinte ainda guarda
mistérios”, comenta.
A autora desmistificou a ideia de que o
lazer era tido apenas como uma forma de controlar a classe
trabalhadora. “Não houve essa evidência da vinculação de
interesses político ideológicos nas reivindicações em torno
do lazer nesse trabalho”, frisa a pesquisadora. O estudo
até revelou partidos políticos, de posições sobremodo divergentes
naquele momento, que reivindicaram o lazer. Foram eles PT,
PMDB, PCB, PDT, PFL, PL, PDS e PDC.
Outra sua constatação foi que existiram
muitas maneiras de compreender o lazer na Assembleia Nacional
Constituinte. Ele foi entendido como uma simples atividade,
e também, de modo mais complexo, como um fenômeno social
e uma ferramenta educacional relevante. Ao mesmo tempo em
que ele era entendido como atividade, era entendido como
uma necessidade básica e como um direito fundamental dos
cidadãos. Um direito fundamental indica o mínimo necessário
para que o cidadão tenha uma vida digna.
A pós-graduanda relata que a compreensão
de lazer mais complexa não foi apresentada pela população,
nem pelas entidades. Foi apresentada pelos constituintes.
Segundo ela, Florestan Fernandes enviou uma sugestão muito
significativa, com dez artigos, todos versando sobre o lazer.
Ele compreendeu o assunto de modo abrangente, como intelectual
que era.
A primeira emenda que incluiu explicitamente
o lazer como direito social no processo Constituinte foi
a 2P02038-1, uma emenda coletiva assinada por 291 constituintes.
Seu texto é idêntico ao texto do artigo 6º da Constituição
promulgada que define os direitos sociais: “São direitos
sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança,
a previdência social, o amparo à maternidade e à infância,
a assistência aos desamparados na forma dessa Constituição”.
Atualmente, esse artigo teve um acréscimo – a moradia.
Entrevista
José Maurício contou que o que o levou
a reivindicar o lazer como direito de todos os brasileiros
foi a sua história como político, muito próxima das camadas
populares no Rio de Janeiro, Estado onde vivia e foi eleito
deputado federal. Foi nesse contato que percebeu que as
pessoas precisavam, necessitavam e queriam ter lazer. Foi
a partir do seu próprio olhar que realizou essas propostas,
uma ‘iniciativa pessoal’, e ele não consultou as sugestões
populares enviadas.
A pesquisadora recorda que a Constituição
de 1988 foi conhecida como a “Constituição Cidadã”. Contudo,
ao analisar os documentos, encontrou vários indícios e vestígios
históricos de que as sugestões populares não foram consultadas
pelos constituintes. “A população não foi de fato ouvida
nesse processo, como se diz que ela foi.”
Na entrevista de José Maurício, ele informou
que muitas emendas eram ‘emendas de corredor’. Fazia-se
uma emenda e contratava-se um funcionário para ficar no
corredor da Câmara coletando assinaturas dos constituintes.
“Ele contou que essa emenda foi ‘de corredor’, subscrita
por 291 constituintes.”
No entender de Flávia Santos, o processo
Constituinte e a inclusão do lazer na Constituição de 1988
ainda permanecem desconhecidos e merecem ser pesquisados.
Seu estudo não se pretende conclusivo. “Essa foi a primeira
pesquisa a investigar a construção histórica do lazer como
direito social no Brasil, os atores políticos e os interesses
envolvidos, despertando muitas outras possibilidades de
estudo, de histórias a serem contadas”, expõe.
A pós-graduanda cursou algumas disciplinas
no Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas (IFCH) e na Faculdade de Educação (FE).
Tal trabalho exigiu até 14 horas diárias de análise documental.
De acordo com a sua autora, alguns documentos chegavam a
reunir mais de 900 páginas. Acontece ainda que cada um deles
somava de dois a quatro volumes, em razão da dinâmica imprimida
pela Constituinte, que envolveu várias etapas e fases.
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■ Publicação
Dissertação: “Procurando
o lazer na Constituinte: sua inclusão como direito social
na Constituição de 1988”
Autora: Flávia da Cruz Santos
Orientadora: Silvia Cristina Franco Amaral
Unidade: Faculdade de Educação Física (FEF)
Financiamento: CNPq