LUIS
SUGIMOTO
No
Brasil, as atividades de prospecção, exploração,
armazenamento e transporte de gás natural (denominadas
upstream) eram monopólios da Petrobrás até
1997. Inspirado no processo de reformas em países
como Estados Unidos, Inglaterra e Canadá, o governo
Fernando Henrique Cardoso promulgou a Lei 9.478/97, retirando
legalmente o monopólio da empresa na execução
destas atividades e criando a ANP (Agência Nacional
do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis)
para regular, fiscalizar e monitorar o mercado. Um dos objetivos
da lei era a promoção de investimentos e de
competição no setor.
Passados 12 anos, pouco avanço foi conseguido neste
sentido. A Petrobrás e suas subsidiárias continuam
dominando as atividades usptream, sendo que a empresa também
controla, majoritária ou totalmente, a distribuição
e comercialização para o consumidor final
(atividades downstream) em quase todos os estados federativos.
As exceções são Rio de Janeiro e São
Paulo, onde atuam as antes estaduais e hoje privatizadas
CEG (Companhia Distribuidora de Gás Natural) e Comgás
(Companhia de Gás de São Paulo), dentre outras
distribuidoras.
"Nos últimos 20 anos, inúmeros países
vêm promovendo reformas estruturais na indústria
do gás natural, buscando a eficiência e a racionalidade
econômica através da introdução
da competição em determinadas etapas da cadeia.
A Lei 9.478 fracassou nesse objetivo, até porque
foi idealizada para o petróleo - tanto é que
se discutia uma lei específica para o gás
nos últimos quatro anos ", afirma Paulo Henrique
de Mello Sant'Ana, engenheiro mecânico com mestrado
e doutorado em planejamento de sistemas energéticos
pela Unicamp.
A "Lei do Gás" (nº 11.909/09) acabou
publicada em 5 de março deste ano, vinte dias antes
de Sant'Ana defender a tese intitulada Desenvolvimento da
competição e da infraestrutura na indústria
de gás natural do Brasil, junto à Faculdade
de Engenharia Mecânica, com orientação
do professor Gilberto de Martino Jannuzzi e co-orientação
do professor Sérgio Valdir Bajay. "A publicação
da lei, que não repercutiu devidamente na mídia,
pegou de surpresa inclusive os pesquisadores da academia
envolvidos com o tema".
Entretanto, o autor já acompanhava os debates em
torno do projeto da Lei do Gás, ao mesmo tempo em
que promovia a revisão crítica da lei anterior
e uma análise das reformas implantadas em outros
países. "A previsão de que o Brasil disponibilizará
para as distribuidoras perto de 135 milhões de metros
cúbicos de gás natural por dia em 2013, quando
hoje há algo entre 40 e 45 milhões, torna
mais premente o desenvolvimento de mecanismos de flexibilização
de oferta e demanda. A própria Petrobrás já
se preocupa com a falta de flexibilização
da demanda, que poderia reduzir o preço para o consumidor
final, criando e expandindo mercados".
Na opinião de Paulo Sant'Ana, a indústria
de gás natural no país ainda não está
tão madura quanto à da energia elétrica.
Nesta forma de organização, a Petrobras produz
(ou importa), comercializa e transporta o gás através
de seus dutos para as distribuidoras nos estados, que por
sua vez vendem e utilizam suas tubulações
para levar o produto até o consumidor final. "Trata-se
de uma indústria de rede, com etapas da cadeia que
são monopólios naturais, notadamente o transporte
e a distribuição. Já as atividades
de produção e comercialização
oferecem espaço para incremento da competição".
Ressaltando o modelo de regulação nos Estados
Unidos, o pesquisador recorre à comparação
com uma ferrovia que atravessa o país. "É
mais viável economicamente que uma única empresa
cuide da operação, ao invés de instalar
novos trilhos em paralelo para alimentar a competição
- o mercado ficaria dividido e os custos seriam maiores,
refletindo em tarifa mais alta para o consumidor. Contudo,
haveria margem para introduzir a competição
na produção de vagões e na comercialização
de passagens".
O estudo registra que o Brasil consumiu quase 23 bilhões
de metros cúbicos de gás natural em 2007,
sendo que 40% foram para o setor industrial e 25% para o
setor de transformação (geração
de eletricidade e produção de derivados de
petróleo). Quanto ao consumo domiciliar, é
marginal e não passa de 1%. "Isso porque a infraestrutura
do GLP [gás liquefeito de petróleo] está
consolidada. A Comgás vem penetrando somente em edifícios
e outros bolsões residenciais, graças à
economia de escala. Este mercado será interessante
quando a rede de distribuição estiver madura
e a tarifa mais baixa".
Termoelétricas
Paulo Sant'Ana recorda que o maior incremento à
indústria de gás natural veio com o Programa
Prioritário de Termoelétricas (PPT), que levou
à construção do gasoduto Brasil-Bolívia
(Gasbol). "O PPT não deu certo principalmente
por causa da flutuação do dólar e da
commodity do gás, que tornou caro o seu uso para
gerar energia elétrica. Como o contrato com os bolivianos
é do tipo take-or-pay (consumindo ou não,
se paga), este produto precisou ser comercializado".
Para isso, atenta o pesquisador, a Petrobrás e suas
subsidiárias exerceram papel fundamental, pois assumiram
todos os riscos inerentes ao processo, com investimentos
maciços na infraestrutura. "A Petrobras teve,
tem e certamente terá papel crucial na indústria
do gás natural. Foi a empresa, juntamente com as
distribuidoras, que conseguiu comercializar o produto para
as indústrias, a ponto de há dois anos o consumo
ter atingido seu pico, mesmo com o fracasso do PPT".
Carro-chefe
O aumento do preço do barril de petróleo
nos últimos anos, segundo Sant'Ana, também
influiu decisivamente para que as indústrias, tradicionais
consumidoras de óleo combustível e outros
derivados de petróleo, se tornassem o carro-chefe
da cadeia do gás natural. "Trabalhei na Comgás
como consultor de negócios justamente nesta época,
realizando estudos sobre a viabilidade econômica da
troca de combustível para a indústria, além
de gerir e elaborar contratos comerciais. A conversão
ou troca de caldeiras, fornos e secadores pelo gás
eram realmente compensadoras, por vezes amortizando o investimento
em menos de três meses, dependendo do consumo".
O autor da tese adverte, porém, que grande parte
das indústrias obviamente guardou suas caldeiras
ou queimadores, diante da possibilidade de o preço
do petróleo e derivados cair e o gás se tornar
relativamente mais caro. "É o que está
acontecendo agora, na crise, quando muitas indústrias
voltam para o óleo. O gás natural, diferentemente
da energia elétrica, é facilmente intercambiável.
A Petrobras promoveu um leilão do excedente de gás
no dia 15 de abril, período em que as térmicas
não estão operando. Daí a necessidade
de flexibilização da demanda e de outros mecanismos
para o desenvolvimento de um mercado competitivo, como aponto
na tese".
'Regulação rígida gera descompasso'
O pesquisador Paulo Henrique Sant'Ana afirma que a flexibilização
da oferta e da demanda de gás natural, sugerida em
sua tese de doutorado, implica a criação de
um mercado de curto prazo para viabilizar a comercialização
do produto excedente. "A regulação muito
rígida gera um descompasso, com demora na readequação
de preços: em períodos de pressão de
demanda, com o gás barato, há sobra; em outros,
como agora em que o gás ficou caro, o consumidor
volta para o óleo combustível".
O Brasil, segundo Sant'Ana, deveria criar mecanismos de
flexibilização de demanda como fizeram Estados
Unidos e Reino Unido na década de 1980. "A propósito,
a Petrobras própria já tem condições
de flexibilizar a oferta, graças a duas estações
para armazenamento de gás natural liquefeito (GNL).
Elas foram construídas inicialmente para suprir as
usinas térmicas, mas a empresa poderá armazenar
gás nestas estações em períodos
ociosos para injetá-lo nos dutos em períodos
de pico da demanda".
O autor da tese observa que o leilão realizado recentemente
pela Petrobras já é um primeiro passo, mas
ele defende a criação de uma câmara
formada por vendedores e compradores, nos moldes da Câmara
de Comercialização de Energia Elétrica
(CCEE). "Vale informar que o monopólio da venda
para alguns consumidores finais será quebrado no
Rio de Janeiro já 2009 e, em São Paulo, em
2011. A câmara poderia intermediar leilões
e estabelecer referência de preços spot [de
curto prazo]".
A falta de garantia de acesso aos gasodutos, entretanto,
é um dos obstáculos para estimular a competição
em atividades upstream, como na exploração
e produção de gás natural, na opinião
de Paulo Sant'Ana. "Outras empresas não investirão
na produção sem a certeza de que o produto
chegará ao consumidor final. Como a lei 9.478 não
previa o livre acesso obrigatório aos dutos, elas
dependeriam da boa vontade da Petrobras. A Lei do Gás
avança nesse sentido, mas apenas para os novos gasodutos
concedidos".
É certo que a Lei do Gás abre possibilidade
para que outros agentes invistam em infraestrutura, como
na construção de gasodutos próprios,
mas o modelo híbrido prevendo tanto o contrato de
concessão como a autorização é
alvo de crítica do pesquisador. "Trata-se de
um modelo excessivamente determinativo, que provê
o Ministério de Minas e Energia de um poder discricionário
ao determinar volume de gás, dimensões e traçado
do gasoduto".
Sant'Ana defende que se mantenha apenas o regime atual
de autorização, que considera mais dinâmico,
mitigando-se suas desvantagens como a falta de transparência
de informação. "A autorização
concedida pela ANP para a construção de novos
gasodutos poderia ser vinculada a um parecer da Empresa
de Pesquisa Energética (EPE). A publicidade desta
informação seria importante para evitar assimetrias
de informação, comuns neste tipo de regime.
Os riscos seriam assumidos apenas pelas empresas solicitantes,
sem a participação direta do governo".
Ainda na tese, Paulo Sant'Ana sugere que a Empresa de Pesquisa
Energética (EPE), recém-criada em função
do risco de apagões, coordene um planejamento participativo
do setor de gás natural, envolvendo universidades
e iniciativa privada. "Caberia à EPE realizar
estudos para indicar onde está um mercado potencial
e a evolução de mercados existentes, transmitindo
as informações a todos os agentes. É
importante que o governo planeje, regule, fiscalize e monitore
as atividades do mercado de gás para que não
haja assimetrias de informação e abuso por
parte das empresas dominantes".