- Vamos embora?
- Não podemos.
- Por quê?
- Estamos esperando Godot.
Para Ítalo Calvino, clássico é "um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. A consciência de que há sempre algo a aprender é uma das lições aprendidas pelos alunos do Programa de Formação Interdisciplinar Superior (ProFIS) da Unicamp ao estudarem textos fundamentais da literatura ocidental. Ao conhecerem autores antigos e contemporâneos, eles deixam de lado parte de suas certezas e percebem que a vida é cheia de conflitos que nem sempre têm solução.
O ProFIS é um curso de Ensino Superior da Unicamp voltado a estudantes egressos do Ensino Médio em escolas públicas de Campinas e que se destacaram no Enem. Ao concluírem o programa, eles podem ingressar diretamente em cursos de graduação da Unicamp sem o vestibular.
Entre as obras estudadas por eles, Esperando Godot, de Samuel Beckett, é uma das que mais suscitam questionamentos. Nela, dois maltrapilhos, Vladimir e Estragon, conversam sobre suas dores e contentamentos enquanto aguardam a chegada de Godot, uma entidade indefinida, mas em quem depositam todas suas esperanças. Na obra de Beckett, Godot nunca chega. Uma metáfora do messianismo, ou talvez uma crítica à apatia das pessoas. Para os alunos do ProFIS, foi a oportunidade de conhecer uma das peças mais importantes do teatro contemporâneo na releitura feita pelo Teatro Oficina. No dia 12 de junho, eles estiveram em São Paulo para assistir a uma montagem dirigida por José Celso Martinez Corrêa.
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Certezas em xeque
A preparação para o espetáculo fez com que os estudantes amadurecessem do ponto de vista cultural e humano. Ao mesmo tempo em que ampliaram seu repertório artístico discutindo aspectos da obra e comparando-a com outros textos, eles buscaram em si mesmos os sentidos contidos nos diálogos de Beckett. "Li o texto e, no começo, foi um choque. Pensei: 'não entendi nada'. Senti como se fosse um dos personagens da peça, esperando o significado da obra", revela Giulia Jacobucci (17). Para a jovem, assistir à montagem é uma forma de ter contato com novas interpretações. "Por meio da arte dramática, dá para estabelecer novas conexões com meu próprio repertório. Acredito que será possível extrair novos sentidos”.
"A peça apresenta uma visão problemática da existência humana e um desafio cognitivo, porque não é um texto convencional", avalia Marcos Lopes, docente do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) e professor da disciplina no ProFIS. Segundo ele, a suspensão do conflito, que não chega a algo concreto, revela facetas da experiência humana. "O texto de Beckett é, talvez, um dos que colocam em questão a condição humana da forma mais contundente. São dois personagens que esperam um terceiro, cujo significado não se conhece. É uma espera frustrada, marcada pela repetição. Nada acontece no primeiro ato, nem no segundo, exceto a espera dos personagens", comenta.
Na busca por um desfecho, os jovens leitores se colocam na posição de Vladimir e Estragon. Mas o happy ending não vem, o que pode ser desconcertante, principalmente para quem está no início da vida adulta. "Eles estão em uma fase em que sua percepção como indivíduos, como sujeitos do mundo, está latente. Textos que colocam em questão os valores que eles têm sobre si mesmos podem causar desconforto, mas provocam amadurecimento", afirma Ana Maria Côrtes, doutoranda em Teoria e História da Literatura e monitora da disciplina.
"A espera nunca acaba, fica um conflito não resolvido. Para mim é angustiante, não há um desfecho como estamos acostumados”, reflete Angélica Guimarães (18). “É algo que dialoga com o mundo atual, achamos que as coisas vão se resolver, mas elas só pioram. Para mim, o sentimento que fica é que os conflitos não têm fim. Acho isso bem humano".
‘Godot morreu!’ e novas possibilidades de ação
Fundado em 1958, o Teatro Oficina é hoje a companhia teatral com mais tempo em atividade no país. Sob a direção de José Celso Martinez Corrêa, o grupo reúne a tradição de seus mais de 60 anos com a inovação constante, refletida na estrutura da casa, que recusa o palco italiano, e em elementos como a irreverência e a ironia de suas influências tropicalistas.
Tal herança cultural não poderia deixar o texto de Beckett sem alguma transformação ou diálogo com a cultura brasileira. No caso de Esperando Godot, poucos elementos fugiram do original. Vladimir e Estragon continuam em sua espera indefinida, Pozzo e Felizardo (adaptação da montagem para Lucky) ainda são alegoria de um poder opressor e sedutor que submete o mais fraco, e um mensageiro ainda surge ao fim de cada ato, avisando que Godot não vem hoje, mas amanhã virá. As subversões do Oficina foram simples, mas significativas: no lugar de um menino como mensageiro, aparece Exu, divindade das religiões de matriz africana que faz a ponte entre o humano e o divino. Ao final da peça, sua mensagem ganha um tom diferente: Godot não virá mais, está morto.
"Exu é um mensageiro, nada começa sem ele”, explica Tony Reis, intérprete do personagem. “É importante sua presença na montagem, porque ainda há muito preconceito contra ele, que é associado ao diabo. Fala-se de todos os orixás, menos de Exu. Trazer isso para o texto de Beckett é transformador", reflete.
A morte de Godot na montagem do Teatro Oficina abre uma nova perspectiva para a obra. No lugar de um ser humano inerte frente ao mundo em crise após a Segunda Guerra Mundial, há uma provocação para assumirmos o controle da nossa própria existência e agirmos, mesmo que em uma realidade ainda crítica. O texto de José Celso vai direto ao ponto: não há mais o que esperar, é preciso seguir em frente. "Somente Zé Celso teria autoridade para matar Godot. É uma transgressão acabar com o processo de imobilidade que temos enquanto humanidade. É isso que queremos combater em nossas vidas e na comunidade", pontua Ricardo Bittencourt, que interpreta Pozzo.
"Às vezes esperamos que os outros nos façam felizes, que o trabalho, a família nos façam felizes. Isso acontece no campo amoroso, econômico, político. No fundo, a vida é um caminho solitário. Precisamos ter coragem e contar com nossa força interior. Não existe salvador da pátria. Temos que fazer nosso próprio caminho", comenta Alexandre Borges, intérprete de Vladimir.
A atualidade do texto de Beckett se revela em outras interferências sutis postas em cena, como a mala trazida por Felizardo para servir Pozzo. Na montagem do Oficina, ela é uma mochila térmica utilizada por entregadores por aplicativos, uma referência à precarização do trabalho. Essa atualidade também aparece em menções à existência paralela nas redes sociais. São releituras que aproximam o espetáculo da realidade brasileira e facilitam as conexões com o repertório do público.
"A forma com que a peça foi interpretada mostra o quanto ela é atemporal”, reflete Gabriel Silva (19), aluno do ProFIS, que percebe por que o texto é um clássico. “As críticas ao capitalismo, às mudanças que estão ocorrendo na política, mostram o quanto o texto estava inserido na vida do Beckett e o quanto está também em nossa".
Apesar da morte de Godot, a decisão dos dois personagens é a mesma no fim do espetáculo:
- Vamos embora?
- Vamos!
Não dá para saber se Vladimir e Estragon foram mesmo embora. O que ficou bem claro para os alunos do ProFIS, assim como para o público do Oficina, foi o convite para aprender a conviver com seus próprios Godots, não permitindo que a espera controle sua existência. Deixar a inércia de lado e construir suas histórias, com base não em expectativas, mas em ações.
Leia artigo das doutorandas em Teoria e História Literária Ana Maria Ferreira Côrtes e Gabriela Vescovi: O vazio beckettiano em Esperando Godot