Unicamp
Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 03 de setembro de 2012 a 16 de setembro de 2012 – ANO 2012 – Nº 538A poética de um cineasta celerado
Livro detalha produção de Júlio Bressane no âmbito do experimentalismoO cinema experimental não apenas sobrevive como ocupa páginas densas da história da cinematografia mundial desde o seu nascimento, principalmente na literatura europeia, segundo o professor Francisco Elinaldo Teixeira, do Departamento de Cinema do Instituto de Artes (IA) da Unicamp. Entre os representantes da produção experimental brasileira no mundo está o cineasta Júlio Bressane, cuja obra é analisada por Teixeira no livro recém-lançado O cineasta celerado: a arte de se ver fora de si no cinema poético de Júlio Bressane. A obra é resultado dos estudos para sua tese de doutorado, defendida na Universidade de São Paulo (USP).
A produção do cineasta que reagiu com desenvoltura experimental à chamada “morte do cinema brasileiro”, com o fim da Embrafilme, é constante. Este ano, Bressane lançou o filme Rua Aperana 52 na mostra Spectrum, dentro do 41º Festival de Roterdã, na Holanda, num nicho intitulado “Grandes Mestres do Cinema Experimental”. O filme pode ser classificado como um documentário com linguagem experimental, na opinião de Teixeira. “A produção tem um ponto de partida no documentário, mas Bressane, com sua busca incessante, vai usar com tranquilidade a linguagem experimental”, reforça.
Bressane sempre teve projeção internacional, mas ao apresentar Dias de Nietszche em Turim, em 2002, num festival de cinema de Turim, vê escancararem para si as portas da cinematografia mundial. De imediato, ganha um número da revista Cahiers du Cinéma, na França, e participa de uma grande mostra na Itália. “Ele chega com este filme no festival em Turim e é como se o mundo se abrisse para ele. O cinema dele foi cada vez mais interessando aos europeus”, conta Teixeira. Hoje, segundo o professor, Bressane está no contexto da história audiovisual mundial tal qual Glauber Rocha esteve na década de 1980 no cenário internacional do cinema político.
“Nem experimental, nem marginal, nem udigrudi, nem maldito, nem do lixo, nem de invenção: cinema de poesia.” É assim, segundo a tese de Teixeira, que Bressane define sua produção. O cineasta começa sua trajetória com uma produção experimental e segue dando complexidade ao fazer experimental até realizar seu primeiro trabalho ligado à literatura, com a tradução do livro Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, em 1985. É neste momento que ele define seu trabalho como cinema de poesia, ou mais especificamente, como intersemiótica do cinema. “É a ideia de que o cinema não é uma mídia isolada, mas sim que trabalha com literatura, artes plásticas, música, poesia. O cinema está sempre fazendo traduções, e não adaptações”, enfatiza Teixeira.
Ele esclarece que a adaptação se tornou um tema mais reservado ao trabalho da televisão, como uma mídia de massa, enquanto o cinema, à medida que foi se especializando, foi se tornando uma mídia mais de câmara – tal como se diz de “música de câmara” – e não de massa.
Outros trabalhos marcam o encontro de Bressane com as letras. Depois de Machado de Assis, ele traduz uma série de textos dos Sermões, de Padre Vieira. No começo dos anos 1990, ao lado do poeta concretista Haroldo de Campos, Bressane dá contribuição importante, segundo Teixeira, para o campo da videoarte, ao traduzir o livro de poemas de Campos intitulado Galáxias. “Num momento em que todos falavam da morte do cinema, ele vai fazer suas experimentações”, relembra Teixeira. Neste momento, o cantor carioca Mário Reis (1907-1981) torna-se personagem do cineasta em 1995, quando lança O Mandarim.
A ideia da poética presente em Bressane reflete a preocupação com a produção, a criação, os processos em si mais do que com a comunicação com o espectador. Daí a fidelidade do domínio experimental em manter um público especializado, atuando como um cinema de câmara. O livro Poetika Kino, publicado em 1926 pelas vanguardas formalistas russas e construtivistas, lança as bases dessa poética do filme. Na verdade, carregam o conceito da literatura para o cinema. Para Teixeira, o cinema é uma mídia muito mais mental que visual. “Arte é pensamento”, reforça o professor.
Estimulados pelo lastro dessas vanguardas, artistas plásticos e pintores deram origem a outro foco da experimentação no final dos anos 1970 e 1980: o cinema de artista. “Este movimento tem a forte presença de pintores, artistas plásticos, músicos, que viam seus campos esgotados e buscavam o cinema como uma mídia instigante e inspiradora”, informa. Ao mesmo tempo, observa-se um forte impulso no âmbito do experimentalismo superoitista.
Rupturas
Teixeira ressalta que a história do cinema é marcada por reiterações e rupturas. No livro Documentário no Brasil: tradição e transformação, lançado em 2004, Teixeira organizou uma primeira história que inicia dos anos 1920, com filmes do cinegrafista de Rondon, Major Luís Tomás Reis, até a produção atual de Eduardo Coutinho. Em 2003, publicou o livro O terceiro olho: ensaios de cinema e vídeo (Mário Peixoto, Glauber Rocha e Júlio Bressane), resultado de seu pós-doutorado em semiótica na PUC-São Paulo, como primeira tentativa de traçar uma história do domínio experimental no Brasil. “Começo com Mário Peixoto, lá na década de 1930, mas passo pelo cinema novo, cinema marginal”, esclarece. “É uma produção bem rarefeita se comparada com a produção industrial, mas de grande peso nas transformações e experimentações da linguagem cinematográfica”, complementa.
O filme Limite, de Mário Peixoto, produzido entre 1930 e 1931, no Rio de Janeiro, era até recentemente o único filme brasileiro figurando na história das vanguardas mundiais. “Infelizmente, por não conseguir verba mobilizatória para filmar outros desdobramentos deste filme, acabou ficando somente com este título em sua filmografia”, revela Teixeira.
Durante muito tempo, Limite esteve reservado apenas aos olhos do restrito público do cinema experimental, mas quando é restaurado, na década de 1970, encanta principalmente a historiografia de cinema mundial. Esta obra, na opinião de Teixeira, opera como uma espécie de síntese bem particular, no plano estético-formal, da linguagem do que as vanguardas (expressionistas, impressionistas, dadaístas, surrealistas e formalistas) vinham fazendo ao longo dos anos 1920 na Europa.
No calor das sinfonias urbanas europeias, no final dos anos 1920 e começo da década de 1930, surge também São Paulo, A Sinfonia da Metrópole, de Rodolfo Lustig e Adalberto Kemeni, considerada uma das primeiras obras na área de experimental no Brasil, segundo o professor. “A forma experimentadora renasce com força nos anos 1970, depois de um intervalo de dez anos, se tomarmos como referência o filme O Pátio de Glauber Rocha, ao lado de um desenvolvimento grande do experimentalismo superoitista no Brasil”.
Na década de 1960, as produções se atêm mais à “estética da fome”, mas mesmo assim, segundo o especialista, o cinema envolve muita pesquisa, experimentação com os modos de construir as imagens. A volta das experimentações audiovisuais coincide com o período de restauração do filme Limite, que será tomado como uma baliza disso nos anos 70. Neste contexto, o cinema marginal compõe uma história particular com Rogério Sganzerla, Júlio Bressane e Andrea Tonacci, entre os nomes que garantem que o experimental volte fortalecido.
Com a criação de novas técnicas e equipamentos, o cinema brasileiro é influenciado por um quarto elemento importante: a imagem vídeo, que surge, em meados dos anos 1970, no segmento da emergência da mudança de suporte no cinema. “Já vivemos na atualidade a quarta, quinta geração de videastas, pois houve, desde aquele momento, um senso muito grande de experimentação por ser uma mídia acessível, democrática e barata. É muito propensa a experimentações e renovações de linguagem”, enfatiza.
Segundo Teixeira, uma gama muito grande de filmes documentários com esse forte senso de experimentação da linguagem surge desde os anos de 1980, mas é preciso distinguir o que realmente é arte de uma produção tecnicamente efeitista, marcada por um certo senso de fetichismo técnico dado o acesso das novas mídias. “O número de artistas é muito maior, o número de espectadores com acesso à arte é muito maior. Eu acho que isso se realiza plenamente com a cultura digital, mas com todos os problemas também que isso significa. Fica muito mais difusa a noção do que é arte, os critérios para se avaliar o que de fato é artístico. Porque uma boa parte dessa produção é descartável, é efeitista, é uma espécie de deslumbramento, de fetichismo com a técnica”, acrescenta Teixeira.
Outra questão importante a ser discutida dentro da literatura cinematográfica é a indiscernibilidade entre os domínios ficcional, documental e experimental. Para Teixeira, há uma intensa troca entre documentário e experimental, a ponto de cineastas como Bressane transitarem nos dois, três domínios ao mesmo tempo, porém, nem todo documentário é experimental, por não apresentar o rigor estético comum a este tipo de produção. Um dos aspectos pontuados em um curso intitulado “Documentário e Experimental: Passagens”, oferecido por ele em programas de pós-graduação, é a intensa troca entre os domínios documentário e experimental dentro da cultura audiovisual contemporânea. “Eu alterno os domínios. Em um semestre falo sobre documentário. Em outro, sobre experimental, até chegar nos pontos comuns entre eles”, explica.
Para Teixeira, o filme Cinema Falado, lançado em 1986 por Caetano Veloso, é um dos mais representativos dentro do que se define como um processo de produção experimental no cinema brasileiro dos anos 1980. A produção, porém, sofreu duras críticas, foi retirada por Caetano, e voltou reeditada em DVD em 2005. As críticas teriam partido de integrantes de uma vanguarda que vinha dos anos 1970, mais relacionada com o artista plástico Hélio Oiticica, cujos trabalhos eram considerados revolucionários.
Para Teixeira, Oiticica marcou muito uma geração com suas proposições dos anos 1970. “Foi muito próximo do Júlio Bressane, mas foi muito próximo também do Arthur Omar, que nos anos 1980 era um dos que mais se destacavam como cineasta experimental.”
Teixeira observa a presença forte de pessoas oriundas de escolas de cinema brasileiras no campo documental, experimental e ficcional na década de 2000. Entre esses cineastas nascidos na academia, ele cita Kiko Goifman, mestre pela Unicamp, com o filme 33, e Sandra Kogut, com a produção Um passaporte húngaro, por introduzirem uma estilística diferenciada, considerada por Jean-Claude Bernardet como documentário de busca. A busca fracassada das duas produções reflete uma estilística na qual se cria um dispositivo de busca de algo que não se sabe, de partida, onde vai dar. “Este objeto pode ou não se encontrado, mas não é isso que importa. O que importa é percorrer, desenvolver o processo de criação. Este é o senso de experimentação mais forte nesse momento”, explica.
SERVIÇO
Título: O cineasta celerado: a arte de se ver fora de si no cinema poético de Júlio Bressane
Autor: Francisco Elinaldo Teixeira
Páginas: 501
Editora: Anablume
Preço: R$ 70,00