Edição nº 538

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 03 de setembro de 2012 a 16 de setembro de 2012 – ANO 2012 – Nº 538

Um celular na mão
e o flagrante na cabeça

Para especialista francês, linguagem verbal está
sendo substituída pela visual

 

Em junho de 2009, manifestações populares contra o regime ditatorial no Irã ganharam repercussão mundial e se transformaram no histórico estopim de uma revolução sem precedentes nos países árabes. As imagens impactantes das revoltas e até da morte brutal de uma jovem de 16 anos, Neda Soltani, transformada em símbolo do protesto reformista, não foram, contudo, geradas pela imprensa. As restrições impostas pelo governo iraniano ao trabalho de jornalistas foram inúteis diante de um surpreendente e avassalador fenômeno de comunicação: o de vídeos produzidos e divulgados na internet por uma legião de cinegrafistas amadores. Gravadas pela população por meio de telefones celulares, as cenas da conflagração inundaram os portais de vídeo na web e permitiram ao mundo assistir àquilo que a ditadura desejava ocultar. Mais tarde, imagens e relatos deram origem à comovente coletânea Iranian Stories, também disponibilizada pela rede mundial de computadores.

A telefonia móvel disponibilizou às pessoas comuns uma poderosa ferramenta para a produção e disseminação instantânea de vídeos sobre tudo o que esteja ao alcance das minúsculas objetivas instaladas na grande maioria dos aparelhos celulares. Seja os sangrentos protestos da denominada “Primavera Árabe”, seja o flagrante da devastação causada pela irrefreável força de um tsunami no Japão, seja o drama dos alunos de uma escola no Rio de Janeiro invadida por um tresloucado atirador. Ou ainda a aprazível viagem a um recanto turístico e até mesmo um despretensioso almoço dominical da família. Hoje, as mais diferentes, inusitadas e cotidianas situações são documentadas e compartilhadas por meio de imagens em movimento.

Para Roger Odin, professor emérito de ciências da informação e de comunicação na Universidade Paris III – Sorbonne Nouvelle, vivemos a era da linguagem cinematográfica. Convidado pelo professor Fernão Ramos, do Centro de Pesquisa de Cinema Documentário (Cepecidoc), do programa de pós-graduação em Multimeios do Instituto de Artes (IA), Odin esteve na Unicamp para falar dos estudos que desenvolve na área do cinema documentário e no campo do cinema e do vídeo amador, onde se insere seu atual interesse pelas produções audiovisuais tomadas com telefone portátil.

“Estamos testemunhando uma grande revolução, em que a linguagem cinematográfica tornou-se um meio de comunicação usual, cotidiano. Com frequência cada vez maior as pessoas se comunicam por meio de pequenos filmes que fazem com seus celulares, substituindo a linguagem verbal pela linguagem visual”, declarou Odin ao Jornal da Unicamp.

“Câmera-caneta”

De acordo com ele, a familiaridade do público, mesmo que de maneira rudimentar, com determinadas técnicas e jargões da produção audiovisual – como primeiro plano, close e panorâmica, entre outros – proporcionada, sobretudo, pela televisão (“um ótimo professor de cinema”, comenta), levou até mesmo a uma banalização do uso da linguagem cinematográfica.

“A imagem ocupou o lugar da palavra. Se, num passado mais recente, alguém descreveria ao telefone o local onde se encontrava ou alguma situação que estivesse vivenciando, hoje essa pessoa utiliza o aparelho para mostrar o que deseja comunicar”, ilustra o docente, que vê nesse fenômeno a manifestação do conceito evolutivo da linguagem cinematográfica que Alexandre Astruc (proeminente diretor e crítico francês de cinema) abordou em 1948 no antológico documento La Caméra-Stylo (ou câmera-caneta), ao defender o clássico conceito de que um diretor deve empunhar sua câmera como um escritor utiliza a caneta.

“Servimo-nos da linguagem cinematográfica do mesmo modo como utilizamos a caneta para expressar ideias”, afirma Odin.

Conforme ele destaca, os celulares colaboraram para dar uma dimensão totalmente nova à produção cinematográfica planetária, não apenas colaborando para o incalculável crescimento do gênero classificado como filmes de família, mas também impulsionando a realização de longas-metragens, a partir de avanços tecnológicos que aprimoraram a definição das imagens geradas pelas câmeras que esses aparelhos trazem embutidos e baratearam substancialmente a produção. A Nigéria (África), segundo Odin, é exemplo de país com larga escala de longas de ficção realizados nesse tipo de suporte.

“Há uma produção local muito forte e uma grande popularização da arte cinematográfica. Os filmes não são exibidos no circuito comercial, mas comercializados em DVDs por preços muito baixos e as pessoas os assistem em casa”, explica o teórico da comunicação. Ele cita ainda a Europa, a Ásia e a China como outros centros com expressiva produção cinematográfica baseada em telefones móveis, embora pondere que no continente chinês isso se tornou uma alternativa à censura que limita a produção audiovisual em circunstâncias normais.

“O telefone celular é o instrumento ideal para documentários em condições de clandestinidade”, ressalta.

Produção doméstica

Autor de vasta bibliografia publicada sobre o cinema documentário, Odin acumula também trabalhos publicados sobre um gênero cinematográfico ao qual, conforme enfatiza, raramente se dá a devida importância: o das produções audiovisuais de família e amadoras.

“Temos uma visão muito reduzida de cinema. Em geral, relacionamos essa arte aos filmes ficcionais, raramente nos lembramos dos documentários e nos esquecemos completamente da produção que é feita por amadores, em família, com celulares e câmeras digitais”, observa o pesquisador francês. Ele prossegue:“Na realidade, se faz no mundo, hoje e já há algum tempo, mais filmes de famílias do que de ficção. E embora esse tipo de cinema seja socialmente mais importante que as produções profissionais, a crítica e os estudos teóricos sobre o cinema ignoram completamente esse universo da produção familiar. Acho isso inaceitável”, condena.

A exceção, pondera, é a História do Cinema Mundial (2000), estudo coordenado pelo historiador e crítico cinematográfico italiano Gian Piero Brunetta, que abordou em suas páginas a importância do formato caseiro como narrativa audiovisual contemporânea. Há também o trabalho pioneiro do premiado documentarista húngaro Péter Forgács, cuja obra reconhecida internacionalmente é composta por vasta galeria de filmes criativamente produzidos a partir de 1978 por meio da compilação de imagens de filmes domésticos e de registros amadores em película realizados em meados do século 20.

Mas por que essa produção é deixada em segundo plano?
“Porque os críticos e teóricos encaram o cinema apenas como arte com ‘a’ maiúsculo”, afirma Odin. “Embora faça parte do cinema, o filme de família desempenha um papel mais de memória social, por assim dizer, do que propriamente de sétima arte. E não deve mesmo ser produzido como arte”, adverte o estudioso, “porque para funcionar na família, esse tipo de filme deve ser malfeito, como geralmente falamos, desprovido de ambições artísticas, para que o olhar de quem o realiza não seja o de um cineasta, mas sim o de um membro familiar”.
O pesquisador francês observa que, assim como Forgács lança mão da produção amadora para resgatar e contar, por meio de diversas histórias de personagens comuns, a pungente trajetória dos europeus em migração no período compreendido pelas décadas de 1920 e 1980, historiadores e sociólogos demonstram atualmente um crescente interesse pelos filmes de família como matéria-prima para suas investigações. Isso ocorre pelo fato de que as imagens desses arquivos familiares constituem não só registros amadores do cotidiano de pessoas anônimas, mas acabam por revelar peculiaridades das sociedades retratadas e por documentar, enfim, a própria história.

 

O contexto é determinante,

explica a semiopragmática

 

Não raro uma produção cinematográfica execrada pela crítica encontra acolhida favorável nas salas de cinema e se torna um sucesso de público. Essa aparente contradição pode ser explicada a partir de uma interpretação semiopragmática, segundo teoria desenvolvida por Roger Odin e apresentada em seminário a alunos e professores da Unicamp como uma ferramenta capaz de ajudar a analisar e a compreender o processo da comunicação.

“A proposta central da semiopragmática é situar o contexto como ponto de partida dessa análise”, explica Odin. “O contexto de cada espectador é o que determina o seu modo dominante de leitura de um determinado filme”, argumenta o professor.

É bastante comum a afirmação, prossegue Odin, de que um filme tem um significado. “Porém, o que a semiopragmática nos apresenta é a idéia de que há diversos sentidos possíveis para um único filme em função dos espectadores que o assistem dentro de um contexto.”

Nessa relação, defende o pesquisador, o mesmo filme pode ser visto com modos de leitura bastante distintos, ganhando, desse modo, inúmeros sentidos e significações, influenciados pela contextualização individual.

“Um filme como Morte em Veneza (drama ítalo-francês dirigido por Luchino Visconti em 1971) pode ser apreciado como a bela obra ficcional que é ou como um documentário sobre a cidade de Veneza”, ilustra Odin. “Alguns poderão ainda, movidos por predileções pessoais, se interessar em fazer uma análise comparativa daquele filme com outros do mesmo realizador, buscando ver seus aspectos estilísticos e artísticos. Em suma, o espectador não é obrigado a respeitar as direções de leitura fornecidas pelo diretor”, pondera.

Portanto, observa Odin, constitui um equívoco a tradicional análise de uma obra cinematográfica que não leva em consideração o receptor e o contexto, como ocorre com a crítica.
“Em geral, o crítico afirma dizer a verdade sobre o filme. Contudo, o que ele faz é dar a sua verdade em função do contexto em que se encontra”, acentua.

Então, fatores como as diferentes formações do crítico, se ele é filósofo, sociólogo ou historiador, suas concepções ideológicas e os vários aspectos de uma produção audiovisual possíveis de serem analisados, conforme o interesse específico de cada julgador, seja a fotografia, seja o roteiro, seja a interpretação, determinarão o seu modo de olhar para a obra.

“Isso fica muito claro quando comparamos diferentes críticas para um único filme e temos a impressão de que os autores não viram o mesmo trabalho. A resposta para essa discrepância está no contexto de cada crítico, que será diferente do contexto daquele espectador que, por exemplo, vai ao cinema pelo simples prazer de degustar a obra”, assevera Odin.