Unicamp
Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 15 de outubro de 2012 a 21 de outubro de 2012 – ANO 2012 – Nº 542Sem arranjo,
não há saída
Tese propõe alternativas para evitaro colapso do sistema de saúde brasileiro
No Brasil, os planos de saúde não podem mais ser caracterizados como uma atividade supletiva. Hoje, eles competem diretamente com o Sistema Único de Saúde (SUS), visto que ambos têm a mesma base de prestação de serviços. Esta é uma das constatações da tese de doutorado do economista João Fernando Moura Viana, defendida recentemente no Instituto de Economia (IE) da Unicamp, sob a orientação do professor Pedro Luiz Barros Silva. De acordo com o autor do trabalho, a falta de regulação entre o público e o privado e alguns outros problemas enfrentados pelo sistema de saúde no país, como o aumento dos gastos com a assistência devido ao envelhecimento progressivo da população, podem aprofundar as iniquidades presentes no setor, caso não sejam devidamente enfrentados.
Em sua pesquisa, intitulada “Saúde supletiva: Estado, famílias e empresas em novo arranjo institucional”, Viana tratou não apenas de diagnosticar as dificuldades enfrentadas pelo sistema de saúde brasileiro, mas cuidou também de propor alternativas para superá-las. O economista explica que o chamado setor de saúde suplementar opera no Brasil desde meados da década de 1960. Somente no final da década de 1990, porém, é que começou a tramitar no Congresso Nacional projeto de lei para regulamentar a atividade. A matéria chegou a ser aprovada pela Câmara dos Deputados, mas foi posteriormente barrada no Senado.
Na oportunidade, o ministro da Saúde era José Serra, que entabulou uma negociação com os senadores com o propósito de ver o projeto finalmente aprovado. “Em razão dessas conversações, o texto sofreu mudanças em alguns pontos. Um aspecto fundamental do acordo foi o compromisso assumido por Serra de editar uma medida provisória caso a matéria passasse pelo crivo dos parlamentares. Ao cabo de tudo, a matéria foi aprovada e o ministro Serra cumpriu a promessa. Ocorre que a medida provisória determinou que as operadoras passassem a oferecer o chamado plano de referência, ou seja, um plano completo, que cobriria todas as doenças. Assim, o que deveria ser suplementar passou a oferecer cobertura total, da mesma forma como o SUS já fazia. Estabeleceu-se, desse modo, um sistema duplicado, no qual as partes passaram a competir entre si”, sustenta Viana.
O economista detalha melhor esse aspecto. Segundo ele, com o advento da medida provisória os planos de saúde não se tornaram nem suplementares e nem complementares. “O termo suplementar indica a agregação de algo. Ou seja, em tese o consumidor poderia optar por um plano que oferecesse um quarto particular, para ficar em um exemplo. Já o termo complementar sugere a oferta de serviços adicionais, como cobertura de transplantes. Como os dois sistemas passaram a oferecer tudo, eles tornaram-se competidores, uma vez que atuam sobre uma mesma base de prestação de serviços”, reforça o autor da tese.
As implicações dessa duplicidade, conforme Viana, são diversas. Uma das mais importantes, e que impacta diretamente os usuários, é o fato de os planos de saúde terem passado a competir com o SUS em situação de vantagem, visto que remuneram melhor os diversos procedimentos médicos e hospitalares. “Como a base é a mesma, insisto, isso cria um sério problema. Essa situação indica claramente que as relações entre o setor público e o privado ainda carecem de regulamentação”, considera o economista. Em sua pesquisa, ele foi ainda mais fundo nos problemas enfrentados pelo sistema de saúde brasileiro.
Na visão de Viana, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), órgão vinculado ao Ministério da Saúde responsável por regulamentar essas atividades, dispõe de uma agenda, mas esta não tem contemplado aspectos que ele entende como cruciais para o enfrentamento dos atuais e futuros entraves do sistema de saúde do país. Um deles, destaca o economista, é o acelerado processo de envelhecimento da população. De acordo com projeções do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 10% da população brasileira tem atualmente mais de 60 anos. Em 2030, esse contingente subirá para 20% e em 2050, para 30%. “É justamente na faixa etária mais elevada que as pessoas, principalmente as pertencentes à classe média, passam a ganhar menos, em razão da aposentadoria, e a pagar mais pelos planos de saúde”, assinala o autor da tese.
Ademais, prossegue Viana, dois outros pontos fundamentais a serem considerados são a incorporação tecnológica e os hábitos de consumo na área da saúde. O pesquisador esclarece que a primeira questão está ligada aos crescentes gastos feitos pelo sistema para a adoção de novas tecnologias. “Em outros setores, a incorporação tecnológica tende a reduzir custos. Normalmente, os computadores e outros equipamentos vão se tornando mais baratos com o tempo. No caso da saúde ocorre o contrário. Normalmente, os equipamentos novos custam bem mais do que os das gerações imediatamente anteriores”, diz.
Quanto aos hábitos de consumo, Viana diz que o usuário, num momento de doença, obviamente tende a querer usar todos os recursos disponíveis para alcançar a cura. “Os dois fatores contribuem para a ampliação dos gastos do setor. Ocorre que, a persistir essa tendência, vai chegar o momento em que será impossível pagar por tudo isso, o que colocará o sistema de saúde sob o risco de um colapso”, adverte. As alternativas mais frequentes para enfrentar quadros como este têm sido, conforme o economista, o aumento do preço dos planos ou a geração de filas. “Aqui, as filas não devem ser entendidas apenas como uma ala de pessoas em pé à espera de atendimento, mas também como a demora cada vez maior para a marcação de consultas, exames e cirurgias”.
Saídas
Como não se limitou somente a diagnosticar as mazelas do sistema de saúde brasileiro, o autor da tese faz algumas proposições no seu trabalho, como forma de estimular o diálogo com vistas à formulação de políticas públicas mais efetivas para o setor. Assim, ele aponta opções às medidas convencionalmente adotadas para fazer frente aos problemas que se apresentam. Seguindo o que sugere o título do seu trabalho, Viana defende a elaboração de um novo arranjo institucional que envolva o Estado, as famílias e as empresas. É a partir desse modelo, acredita o economista, que será possível ao país adotar ações para vencer os desafios mais urgentes.
Viana adianta que não acredita que o imbróglio possa ser resolvido pela via da ampliação do financiamento. “Nesse aspecto, vejo pouca margem de manobra. Penso que a alternativa mais viável é a redução de custos”, sinaliza. Segundo o economista, é preciso atuar no sentido de tornar o processo de incorporação tecnológica mais rigoroso. Atualmente, diz, os gastos nessa área são feitos sem tanto controle. “Muitas vezes, são usados recursos desnecessários. Há casos em que são utilizados stents [tubos de metal que têm a função de aumentar o calibre dos vasos sanguíneos] que custam R$ 20 mil, quando existem similares no mercado que custam quatro ou cinco vezes menos”, exemplifica.
Uma sugestão dada por Viana que pode soar polêmica aos usuários de plano de saúde é a instituição do gasto compartilhado. O modelo prevê que os consumidores paguem um valor além da mensalidade para ter acesso a determinados procedimentos médicos e/ou hospitalares. “Isso faria com que as famílias controlassem melhor o uso dos planos”, cogita o autor da tese. Para não sobrecarregar demais os usuários, o economista recomenda a ampliação das deduções tributárias, notadamente do Imposto de Renda, tanto de pessoas acima de 60 anos quanto de empresas que têm elevado número de empregados e que arcam parcial ou integralmente com os custos dos planos de saúde destes.
A ideia, nesse caso, é que esses segmentos específicos possam deduzir do IR um índice superior àquele que normalmente teriam direito. “No caso dos idosos, esse seria um mecanismo compensatório para um momento em que a mensalidade do plano de saúde sobe e a renda cai. No caso das empresas, a compensação seria um estímulo para que continuem bancando a assistência médica de seus funcionários, principalmente em períodos recessivos”, acredita Viana, que faz questão de ressaltar que tais propostas não têm a pretensão de resolver todos os problemas do sistema de saúde brasileiro. “A tese pretende apenas abrir o debate em torno de temas tão relevantes para a sociedade”, ratifica.
Publicação
Tese: “Saúde supletiva: Estado, famílias e empresas em novo arranjo institucional”
Autor: João Fernando Moura Viana
Orientador: Pedro Luiz Barros Silva
Unidade: Instituto de Economia (IE)