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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 03 de dezembro de 2012 a 09 de dezembro de 2012 – ANO 2012 – Nº 548Para além da
partitura
Meninos e meninas socialmente invisíveis, sem sentimento de posse por deixar na porta de entrada todos os seus pertences (roupas, sapatos e todo o pouco que tinham), vendo-se como ninguém em seus próprios discursos. Diante desta realidade, observada em 1997, quando desenvolveu trabalho de canto coral dentro do Projeto Guri, em uma unidade da Febem, em São Paulo, o músico José Fortunato Fernandes se deu conta de que o profissional precisaria de conhecimentos extramusicais relacionados à sociologia e à psicologia para obter um resultado bem-sucedido com adolescentes em medida socioeducativa. “Lá, eles vivem uniformizados, usam roupa igual e chinelos. Falta essa coisa de sentimento de posse, evidente na criança, que não gosta de emprestar”, exemplifica.
Ao voltar à unidade correcional em 2010 para um estudo de campo para sua tese de doutorado, Fernandes certificou-se de que esses fatores socioculturais inerentes aos adolescentes devem ser de conhecimento do educador musical para que o processo de ensino e aprendizagem seja eficaz. Além do estudo de caso, que trouxe resultados importantes para a atuação de quem pretende dedicar-se à educação musical, foi fundamentada em pesquisa bibliográfica.
“Eles não têm nada que os diferencie dos outros. Há uma uniformidade. A questão da música começa a dar identidade porque começam a se posicionar em relação à pasta de música, colocam nome nas partituras, preocupam-se com os exercícios para dicção, com a ressonância e se sentem importantes quando percebem que a voz está mais bonita”, testemunha Fernandes.
Ao fazer entrevistas com os alunos, o educador percebeu que se apropriam de termos como agudos e graves (específicos de música). Ao ser convocados para apresentação, perguntam ao educador se ele arrumaria camisa melhor, preocupados com a maneira como apareceriam diante dos outros.
Os mais variados aspectos, tanto de comportamento quanto de aprendizado da música, que devem ser levados em conta neste tipo de atividade passaram a ser identificados somente quando Fernandes começou a ler autores da área de sociologia. “Por entrar sem preparo, em 1997, tive problemas com indisciplina, falta de motivação, pois não sabia como lidar com adolescentes, escolher conteúdo adequado. Isso falta na formação. Ao mesmo tempo, queria proporcionar algo diferente àqueles adolescentes”. Ele explica que a licenciatura aborda apenas as fases de desenvolvimento psicológico do aluno, não enfocando problemas de indisciplina ou motivação, que, em sua opinião, são pontos básicos.
A dinâmica do canto coral naturalmente contribui para desenvolver a socialização, a sensibilidade, a troca, o respeito pelo outro, mas para que isso aconteça, o maestro ou educador musical precisa de um tempo maior com seus educandos e condições de trabalho favoráveis, além de uma formação plena. Mas, como não foi possível conciliar os horários do músico com os da instituição, os encontros foram restritos a uma vez por semana.
Durante sua estada na unidade, Fernandes percebeu que a credibilidade com os adolescentes somente seria conseguida por meio de uma relação dialógica e com o estabelecimento de um vínculo afetivo, porém, o pouco tempo de convívio entre educador e educandos impediu também que isso acontecesse. A falta de vínculo afetivo, por sua vez, impediu a tentativa de usar a música como formação de bom caráter, ainda que Fernandes tentasse estabelecer uma relação de conquista por meio de um repertório adequado à realidade dos alunos. “Busquei abordar um repertório eclético que favorecesse o crescimento musical com letras capazes de formar bom caráter, mas o pouco tempo não favoreceu o vínculo afetivo”, explica.
Apesar da facilidade em apreender ritmos, os adolescentes, principalmente os meninos, tinham dificuldade com o canto, segundo o autor. Além disso, o maestro tem de levar em conta a fase de mudança de voz para os garotos. “O educador ainda precisa ter conhecimento eclético em música. Não tinha ninguém para me auxiliar na Fundação Casa, nem mesmo a figura do pianista. Assim, a estrutura acaba sendo mais bem-cuidada.”
Outra orientação válida a quem pretende trabalhar com esses adolescentes é a preocupação com o grau de dificuldade. “Temos de colocar objetivos fáceis; não podemos ter objetivos artísticos muito altos, senão eles se assustam”. Em 1997, quando ainda era Febem, apesar de fazer arranjos para funk e rap, refinou o repertório aos poucos, com peças de Antonio Carlos Jobim, Marisa Monti, Antonio Calado, Taiguara. “Terminamos com músicas de Chiquinha Gonzaga”, relembra.
Segundo Fernandes, muito de sua formação pedagógica foi obtida na experiência dentro do Projeto Guri, pois quando se formou, seu foco era o bacharelado em piano, apesar de a Universidade do Rio de Janeiro (Unirio) oferecer o curso de licenciatura. O projeto, em sua opinião, oferece excelente capacitação, mas faltava a teoria da universidade. Durante as atividades, começou a analisar atitudes que fazem parte do cotidiano dos alunos.
Professor também em outros polos do Projeto Guri, Fernandes acrescenta que os problemas são muito parecidos, como situação de risco, desestruturação da família, mas o desenrolar é que faz a diferença. Em outras unidades, o tempo com as crianças também é maior. A maior razão de um menino cumprir medida socioeducativa é a desestruturação da família.
O musicista afirma que, se de um lado o educador chega com o desejo de levantar a autoestima dos adolescentes para que façam na vida algo melhor que ser um criminoso, por outro, vê sua energia esfriada pela falta de apoio e investimento de órgãos competentes. Se em 1997 o apoio político possibilitava levar os adolescentes para fazer a abertura do Festival de Inverno de Campos do Jordão, na pesquisa de campo, em 2010, a falta desse mesmo apoio minou a expectativa do grupo de fazer até mesmo uma apresentação interna para pais e funcionários, pois não havia servidores para acompanhar os adolescentes. A camisa melhor foi deixada de lado, a vontade de se apresentar para a família com uma roupa diferente e um sorriso no rosto e todo o projeto de meses, intenso, a duras penas, ficou contido na frustração dos alunos e do educador.
Na avaliação de Fernandes, a figura do professor de música é muito importante na vida de uma criança e, mesmo com as dificuldades colocadas em sua trajetória com os adolescentes de instituição corretiva, vez e outra ele recebe uma grata surpresa. Uma delas foi o encontro com um ex-interno que, assim que deixou a Fundação Casa, procurou imediatamente o coro de sua cidade, no interior de São Paulo. “Fiquei muito contente por saber que, apesar do pouco tempo que tínhamos juntos, o estimulei a fazer algo melhor que viver na criminalidade. Às vezes o encontro já na fase adulta, casado e com filhos.”
“Oi, prô”, disse-lhe certa vez uma menina, efusiva. Tentando recordar aquele rosto, logo concluiu que seria uma das meninas com as quais trabalhou num polo da capital paulista. “Deve ter tido uma experiência positiva comigo e é importante saber que deixamos alguma marca boa nas pessoas”, contenta-se Fernandes. Em suas considerações finais, Fernandes reflete sobre a falta de textos para educadores musicais. “A musicoterapia difunde para capacitar educadores que trabalham com pessoas com deficiência física e mental, mas não ter material escrito para esses profissionais que trabalham com deficientes sociais”, pondera.
A profissão do educador é malvista, pois muitos acreditam que a escolha pela educação é feita pelo fato de o profissional não ter conseguido ser grande instrumentista, na opinião de Fernandes. “Mas para ser bom professor, tem de ser bom músico. Senão, como identificará as necessidades do aluno?”
“O que a música pode fazer? Percebemos a carência desses adolescentes, e a música lida com afetividade, trabalhando a sensibilidade. Ela pode provocar sentimentos nobres no adolescente que pode estar mais endurecido com sua realidade. O educador tem de ter essa perspectiva de educação mais humana. Não é só habilidade motora.” Hoje, Fernandes é professor universitário, mas confessa vislumbrar a possibilidade de trabalhar com coro infantil em comunidade carente. “A música tem de ser um meio de conquistar, mostrar que são capazes de cantar e tocar e que as habilidades deles vão além daquele mundinho que frequentam”, reforça.
Publicação
Tese: “Educação musical de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa através do canto coral”
Autor: José Fortunato Fernandes
Orientação: Aci Taveira Meyer
Coorientação: José Roberto Zan
Unidade: Instituto de Artes (IA)
Comentários
Alice, belissima materia!
Alice, belissima materia! Adorei!
Música e perspectivas
Parabéns, prof. José Fortunato,
Certamente, você e a música fizeram a diferença na vida de muitos adolescentes em medida socioeducativa.
O trabalho com a música em instituições como a Fundação Casa deveria ser prioridade das autoridades aos meninos e meninas que precisam de boas perspectivas, outro olhar para a vida e o mundo.
Boa sorte em seus próximos projetos!
Para além da partitura
Parabéns pela iniciativa!! Tens toda razão quanto a necessidade de mais tempo junto a eles e a música é um meio maravilhoso de tocar esses corações jovens e buscar uma transformação!