Unicamp
Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 10 de dezembro de 2012 a 16 de dezembro de 2012 – ANO 2012 – Nº 549Quando
a arte liberta
Bailarina desenvolve trabalho com internasda Fundação Casa para fundamentar estudo
Em 2009, ao iniciar suas aulas de dança e teatro na Fundação Casa, unidade de Guarulhos, a bailarina Tatiana Molero Giordano ouviu do diretor que a chamara a sua sala: “Se essa casa virar, quero ver você conseguir dar suas aulinhas de dança e teatro”. Ao registrar a observação em seu caderno de anotações, ela acrescentou: “Por esse motivo quero ensinar dança e teatro para esses meninos, pois sei que isso pode evitar que a casa vire”. Para ela, as rebeliões podiam ser evitadas e reafirma essa convicção, na introdução da dissertação de mestrado resultante de seu trabalho na Casa, por meio de uma frase de Bertold Brecht: “Todas as artes contribuem para a maior de todas as artes, a arte de viver”.
A Fundação Casa é o órgão responsável pela execução das medidas socioeducativas no Estado de São Paulo. Vinculada à Secretaria de Justiça e da Defesa da Cidadania, tem como objetivo primordial aplicar no Estado as diretrizes e as normas dispostas no Estatuto da Criança e do Adolescente e no Sistema Nacional de Medida Socioeducativa, promovendo estudos e planejando soluções direcionadas ao atendimento de adolescentes autores de ato inflacional. A Fundação atende às necessidades dos adolescentes quanto ao ensino formal, educação profissional e às atividades esportivas e culturais e o faz através de convênios com órgãos públicos e ONGs.
Por ocasião da pesquisa de mestrado, Tatiana foi encaminhada pelo Centro de Documentação da Fundação Casa (CPDOC) às unidades de internação femininas, denominadas Complexo Chiquinha Gonzaga, embora preferisse executá-la na mesma unidade em que inicialmente trabalhara em Guarulhos. Foi lá, então, que desenvolveu, entre 2011 a 2012, a dissertação em que se prepusera investigar por meio da observação participante as oficinas de artes aplicadas a adolescentes que cumprem medidas socioeducativas.
Tatiana conta que, anteriormente, depois de pesquisar sobre coreodramaturgia em trabalho de pós-graduação desenvolvido com grupos de estudantes, em que procurava delinear um caminho de integração, criatividade e libertação através da dança, vislumbrou a possibilidade de aplicação da arte no apoio às vítimas de violência doméstica e sexual.
Posteriormente, em 2009, atuando como professora de dança e teatro no atendimento de adolescentes internos da Fundação Casa I Guarulhos, percebeu os benefícios significativos decorrentes da combinação de diferentes técnicas corporais, que define como “todo e qualquer movimento corporal e as suas relações intrínsecas com a cultura”.
Em decorrência, ela passou a considerar que as técnicas corporais podem ser compreendidas como parte da educação humana, ou seja, como a forma pela qual o homem aprende a utilizar seu corpo na sociedade em que está inserido. Daí adveio sua reflexão sobre a importância da arte na formação e treino dos jovens para o exercício da cidadania, enquanto postura e atitude social, além da percepção do papel da mesma como processo socializador, criando o espaço necessário de comunicação e possibilitando formas pacíficas de expressão cultural capazes de evitar conflitos e violências.
Para ela, a dança e o teatro se constroem em relação ao meio. Recorrendo a um dos autores mencionados em sua dissertação, ela afirma que o trabalho corporal possibilita o caminho de reconhecimento do corpo como testemunha de uma história individual e coletiva.
Com efeito, como bailarina, ela enxerga a arte, a dança e o teatro como comunicação, como processo de reconhecimento de si e de troca com o meio. E afiança: “A arte permite de uma maneira saudável exorcizar os mais terríveis fantasmas interiores. Mais do que isso, ela possibilita a compilação das mitologias, pessoal e universal. Esse olhar sensível permite verificar que o corpo da adolescente em estado de interdição – que corresponde ao internamento para o cumprimento das medidas socioeducacionais – comunica esse ‘aprisionamento’ e também comunica a sua ‘libertação’ no decorrer das oficinas de arte, especialmente as oficinas de dança e teatro. É na declaração de seus sentimentos que elas percebem a mudança na sua postura física e comportamental”.
Fundamentos
Introduzida na Antropologia da Performance pela sua orientadora, professora Francirosy Campos Barbosa Ferreira, do Instituto de Artes (IA) da Unicamp, ela utiliza esse instrumento de pesquisa, focando principalmente as etapas propostas por Victor Turner, para a compreensão do cenários socioeducativo e do processo dramático percorrido pela adolescente.
Segundo a autora, a pesquisa etnográfica com jovens infratoras permitiu-lhe observar, descrever, documentar de forma audiovisual e analisar a postura, a capacidade de comunicação, de expressão cênica e de fluência dos movimentos corporais, levando em consideração a noção de performance e as propostas teóricas de Victor Turner e o conceito de “comportamento restaurado” de Richard Schechner.
A performance dessas adolescentes foi investigada tanto durante as oficinas de teatro, ensaios e apresentações públicas quanto nas situações posteriores dentro e fora das unidades, através dos seus gestos e posturas ritualizados do corpo. Em decorrência, diz ela, “esse processo sugere um trabalho artístico que permite reler, construir e desconstruir personagens utilizando suas histórias de vida como suporte para criação de narrativas e improvisação cênica”.
O público alvo da pesquisa era constituído por adolescentes do sexo feminino, na faixa etária de 12 a 18 anos, atendidas de acordo com o chamado Modelo Pedagógico Contextualizado. As adolescentes da Casa Chiquinha Gonzaga, localizada na Zona Leste de São Paulo, onde as experiências foram vivenciadas, provinham de duas de suas unidades: a Unidade de Internação Provisória (UIP), em que a permanência e de 45 dias, e a Unidade de Internação (UI), onde permanecem pelo período de seis meses a três anos, conforme a idade e a gravidade do ato infracional cometido, que pode ser assalto, agressão física, porte de drogas, entre outros.
Nas entrevistas com adolescentes da Casa a autora constatou a preocupação da instituição de produzir um discurso de reabilitação decorrente da privação da liberdade, identificada em frases como “deixei essa vida, senhora”, “parei com as drogas”. Já as adolescentes participantes do grupo de teatro revelam uma percepção mais ampla do seu percurso “performando” essas questões de maneira mais dramática por meio do teatro. Isto é, através dos registros audiovisuais de suas performances, a pesquisadora considerou possível identificar um processo transformador que transcende a opressão institucional e se revela como forma de elaboração frente ao percurso imposto no cumprimento da medida socioeducativa. “O relato das histórias de vida nas oficinas de teatro testemunha o resgate de suas individualidades”, constata ela.
Desenvolvimento
Ao partir para a análise da Antropologia da Performance, Tatiana considera o ser humano inserido em seu contexto social e utiliza os conceitos de Turner e particularmente o de Drama Social de Schechner, pois enxerga no processo de interdição das adolescentes todas as etapas propostas pelo autor. A performance resulta da exteriorização por parte do individuo dos comportamentos sociais esperados dele.
Mas existe também um processo de restauração de comportamento que permite que o indivíduo entenda sua performance. Do papel desempenhado pelo ator no teatro, ele vai se remeter ao ator social que também desempenha um papel. É o Drama Social visto de uma forma antropológica. Através das artes, da dança, do teatro, o adolescente encontra uma forma de expressão para suas sensações e sentimentos desvinculados das regras sociais estabelecidas, deixando de ser oprimido por elas.
Por outro lado, é convidado a refletir sobre seus atos, direitos e deveres enquanto cidadão, questionando a si mesmo sobre sua maneira de agir, sobre o ato infracional cometido e como ele pode ser protagonista de sua história sem se tornar opressor. “Ele consegue um espaço lúdico em que pode brincar de ser ele mesmo”, afirma ela, com humor.
Enquanto pesquisadora, Tatiana assumiu nas oficinas um papel de observadora. Mas no decorrer dos trabalhos se integra ao grupo acompanhando construção de peças, ensaios, apresentações internas e externas à unidade, documentando-os através de áudio, vídeos e fotos. Nesse trabalho observa principalmente as diferenças entre os corpos que entram e que saem da sala.
O corpo que chega é tenso, acostumado a uma disciplina inclusive corporal, com dificuldade de comunicação. O corpo que sai é aquele capaz de produzir narrativas, de brincar com a troca de papeis sociais, como os que reproduzem a dinâmica da relação mãe e filha. Isso leva a alterações nas formas de caminhar, de falar, de dramatizar, melhora a articulação de palavras, a capacidade de comunicação, diminui a agressividade, pois conduz à reflexão diante das abordagens de agentes de segurança ou autoridades.
Ela se deu conta do alcance e extensão desse comportamento ao saber que as adolescentes que participaram das aulas de teatro atuaram como mediadoras por ocasião da intervenção da tropa de choque solicitada pela diretora que tinha sido ameaçada de morte por uma das internas. Ela destaca também o progressivo abandono da linguagem de sinais, chamada de telegrafar, que as internas utilizam para ludibriar a rigidez da disciplina imposta pelo sistema de reabilitação.
Concluindo, Tatiana enfatiza alguns pontos. Primeiro, o teatro constitui um modo de lidar com situações de intervenção e conduz ao protagonismo, a uma postura de resposta consciente aos atos cometidos e de como a situação criada pode ser revertida. Segundo, as adolescentes partem de seu próprio corpo para narrar suas histórias. As aulas de teatro possibilitam que elas entendam o contexto social de que vieram, o que as levou a cometer o ato infrator e como podem deixar de ser oprimidas sem se tornarem opressoras.
Terceiro, e o que ela acha mais significativo, as oficinas de teatro utilizam uma série de técnicas que ajudam a melhorar a capacidade de expressão, de externar sensações e emoções e, embora não sejam um psicodrama, contribuem para a resolução de conflitos internos pessoais e para a aquisição de maior controle sobre as emoções e o próprio corpo. Por fim, a iniciativa não deve ser vista como uma panaceia que resolve todos os problemas, mas como um estímulo ao diálogo que pode ajudar no redesenho do Modelo Pedagógico Contextualizado. Ela encerra convicta: “Vejo a arte como a oportunidade de intervenção que produz resultados melhores do que a repressão”.
Publicação
Dissertação: “O corpo e a CASA: etnografias de jovens infratores no contesto socioeducativo”
Autora: Tatiana Molero Giordano
Orientadora: Francirosy Campos Barbosa Ferreira
Unidade: Instituto de Artes (IA)