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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 11 de março de 2013 a 17 de março de 2013 – ANO 2013 – Nº 553De corpo e alma
A educadora e fotógrafa Paula Cabral: “A intençãonunca foi ilustrar o trabalho de Hilda, mas sim
conversar com o trabalho dela”
“Avassalador.” Assim a educadora e fotógrafa Paula Cabral define o encontro com o texto da escritora e poetisa brasileira Hilda Hilst durante sua pesquisa de mestrado, intitulada “Imagens da Poesia Erótica de Hilda Hilst”. O diálogo com a poesia de Hilda, presente no livro Do Desejo (2004), resultou em produto poético-fotográfico construído a partir de divergências, convergências, fusões e confusões entre os motivos pertinentes da obra da escritora e os da leitora. “A intenção nunca foi ilustrar o trabalho de Hilda, mas sim conversar com o trabalho dela, aproximando-me de seus temas”. A produção experimental dialoga diretamente com fragmentos da poesia hilstiana e com as ideias e as construções sobre o desejo apresentadas por ela no livro.
A paixão pela força das palavras da escritora fez com que Paula mudasse o foco da pesquisa, que inicialmente seria um estudo sobre a relação entre texto e fotografia, com base na obra de outra escritora brasileira. A sugestão do orientador, Joaquim Brasil Fontes, foi imprescindível para que o trabalho extrapolasse a análise e despertasse, a cada poema composto por Hilda, o desejo de produzir imagens fotográficas que dialogassem com elementos e fragmentos dessa poética. “A obra provocou um turbilhão de sentimentos.” E o envolvimento foi inevitável, segundo Paula.
Ao longo do conteúdo até as reflexões finais sobre a relação entre autora e leitora, nota-se não somente o desejo de fazer poesia em fotos, mas o de fazer poesia em texto, como neste trecho da introdução: “Desejava-se o casamento entre fotos e palavras. Um casamento, entretanto, que fosse intenso, apaixonado, com direito a todos os binômios que a paixão carrega. Enfim, para que se pudesse estabelecer uma conversa entre fotografia e literatura de forma expressiva, criativa e honesta, era preciso movimento interno. Fazia-se necessário que a palavra escrita explodisse durante a leitura, no desejo de ser também imagem. O boom fazia-se necessário, o caos, a desestabilização. Ora, não se queria algo morno. Depois de conhecer o inferno, o morno torna-se muito pouco.”
Paula esclarece que a pesquisa dialoga não somente com o livro, mas com a própria Hilda – seus amores, temores e dores –, porém, não é na organização poética hilstiana que a pesquisa se identifica para a produção de imagens, mas sim na desorganização. “Quando quebro seus poemas e sua lógica é que me encontro expressivamente.” Segundo a autora, ao partir de fragmentos do pensamento e de sentimentos próprios da poetisa, sua poética ganha força e se constrói.
O olhar fragmentado encontrou fundamento na filosofia alemã do romantismo do primeiro período, já que os representantes dessa época defendem a fragmentação como forma de expressão poética, com foco no ser humano desorganizado diante do caos social, cultural e pessoal.
Paula permitiu-se “profanar” a escritura de Hilda. Não no sentido de desrespeitar, mas sim de apresentar suas próprias questões ao dialogar com algo que pertence ao mundo sagrado dos grandes escritores. “Giorgio Agambem define a profanação como uma situação de restituição ao uso humano de algo que antes que só pertencia ao mundo dos deuses. É nesse sentido que me senti profanando a obra de Hilda”, explica Paula.
O texto de George Bataille na obra “O erotismo” (1957) ajuda a compreender a lógica que perpassa os temas do livro e a poética do desejo de Hilda, segundo Paula. A pesquisadora percebe em sua poesia um conflito e uma complementaridade entre o “erotismo dos corpos” e o “erotismo sagrado”, categorias definidas pelo teórico. Essas categorias são pontos centrais na análise de Paula.
O místico e o sagrado são enfatizados nos textos do livro, que, na opinião de Paula, pode ser explicado pelas experiências pessoais e religiosas de Hilda na infância e na adolescência, ou até mesmo pela personalidade questionadora. A poética hilstiana, segundo Paula, exprime o desejo de continuidade do ser humano com o sagrado, com o outro e com o universo. Versa sobre a degradação humana a partir da passagem do tempo e sobre a morte, clamando por tal continuidade. Coloca erotismo e sagrado no mesmo lugar e cria figuras e imagens para se referir ao Divino (Tempo, Nada, entre outros). “Por muitas vezes, em entrevistas, Hilda Hilst afirmou que nunca se conformara com o fato de a morte levar a um nada e tudo o que se sentiu, se experienciou e se viveu acabar em pó. Então, é fundamentalmente na percepção de degradação do corpo, da experiência e da vida que nasce a busca-embate da poetisa com e por um Deus que a livre dos males da ausência e dos males do fim. Um Deus que se funde e se confunde com a ideia do erotismo batailliano; uma referência clara na poética de Hilda Hilst”, afirma Paula.
A fotógrafa acrescenta que em algum momento de seu texto, Bataille também afirma que a poesia seria uma substituta para a experiência erótica. “Ele dizia que a poesia leva à eternidade, à morte, à continuidade. Diante disso, pode-se concluir que o sujeito poético hilstiano conseguiu perpassar todas as formas do erotismo de Bataille”, explica Paula.
A maior evidência do sagrado é encontrada no último conjunto poético do livro, “Sobre sua grande face” (1986), em que ela encerra reafirmando o foco de sua poética: [Meu negócio é com Deus]. O desejo, porém, pode não ser interpretado como uma busca por Deus. Até porque Hilda nunca se assumiu em seu eu lírico. Ainda que fosse, Paula prefere deixar claro que a procura transcende qualquer religiosidade. A busca é mais de ordem filosófica e mítica, mas perpassa dores e prazeres carnais.
Em alguns momentos, a escritora cai em outras categorias de Bataille, como o erotismo dos corações, em que o outro é tratado como parte de si mesmo. Quando parte para o erotismo sagrado nunca chega onde deseja, então se rebela e vai para o erotismo físico. Às vezes, assume o papel divino, outras, encontra o divino em seu amante humano, segundo a pesquisadora.
Hilda chama de alma o que Bataille trataria de experiência interior, o mais profundo que há no ser humano. Hilda joga com ambivalências e dualidades. Seu delírio desejante, segundo Paula, consiste na mistura da carne e do espírito, do corpo e da alma, que não se opõem, e sim complementam-se e entrelaçam-se. As construções e as figuras poéticas, porém, obedecem ao repertório cultural erudito e vasto, sendo representadas pela subjetividade e criação simbólica.
O encontro com Hilda foi capaz de mudar alguns valores de ordem literária, ao mesmo tempo em que despertou o interesse por novas linguagens. “Hilda mudou minha relação com a poesia”, reforça a fotógrafa, que confessa nunca ter tido contato com um texto tão forte, denso e provocador.
A Casa do Sol, situada em Barão Geraldo, Campinas, São Paulo, perdeu sua única habitante humana em 4 de fevereiro de 2004. Por um tempo, os habitantes da chácara foram as dezenas de cães e gatos “responsáveis” por sua escolta. Local onde escreveu cerca de 40 livros, a chácara, na qual Hilda Almeida Prado Hilst viveu por 40 anos, hoje funciona como centro cultural. A Casa do Sol passou a ser seu endereço em 1966, quando vivia com o escultor Dante Casarini.
A bela mulher que despertou muitas paixões era graduada em Direito, mas sempre se dedicou à literatura, decisão que lhe rendeu o Prêmio Moinho Santista de 2002, na categoria poesia, e o Grande Prêmio da Crítica da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Também foi agraciada com o Prêmio Pen Club São Paulo pelo livro “Sete cantos do poeta para anjo”, em 1962. “Cantares de perda e predileção” foi contemplado com os prêmios Jabuti e Casiano Ricardo.
Hilda participou, em 1982, do Programa Artista Residente da Unicamp. Em 1994, seu arquivo pessoal foi adquirido pelo Centro de Documentação Alexandre Eulálio (Cedae) da Unicamp.
Publicação
Dissertação: Imagens da Poesia Erótica de Hilda Hilst
Autoria: Paula Cabral
Orientação: Joaquim Brasil Fontes
Unidade: Faculdade de Educação (FE)