Edição nº 561

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 12 de maio de 2013 a 19 de maio de 2013 – ANO 2013 – Nº 561

A integração da AS é possível?

Livro de doutorando do IG aponta fatores que podem favorecer ou inviabilizar diálogo regional

Vitor Stuart Gabriel de Pieri espera defender o doutorado pelo Instituto de Geociências (IG) até o final do ano, orientado pela professora Claudete Vitte. Mas o tema de sua pesquisa já embasou o livro Seguridad y Defensa em Sudamérica: entre la cooperación y el conflito lançado pela Eudeba, da Universidade de Buenos Aires, uma das principais editoras em língua espanhola do mundo. O livro aparece dentre os destaques na 39° Feira do Livro de Buenos Aires. Nele, o autor procura levantar, sistematizar e analisar os diferentes vetores que, por um lado, contribuem para a convergência de agendas entre os países da América do Sul, e por outro, impossibilitam um diálogo regional amplo no âmbito político, econômico, social, cultural e ambiental.

“A ideia do livro surgiu de alguns dados levantados na época em que atuei como pesquisador do Gabinete Estratégico Militar do Estado Maior Conjunto das Forças Armadas Argentinas. São questões que estão por trás de acordos como Mercosul [Mercado Comum do Sul], Alba [Aliança Bolivariana para as Américas] e CAN [Comunidade Andina de Nações]. A tendência é que esses acordos acabem tendo menos relevância do que a Unasul [União das Nações Sul-Americanas], que possui uma perspectiva acima de tudo política e em escala subcontinental de integração”, explica Vitor de Pieri.

O levantamento é minucioso, trazendo dados e análises sobre o que o pesquisador denomina conflitos “intermésticos” (interestatais e domésticos) envolvendo temas como delimitações fronteiriças – um dos vetores de fragmentação na política de integração da América do Sul – e sobre uma política conjunta de defesa dos recursos naturais – vista como vetor convergente. “As estratégias de defesa e segurança regional são primordiais para um subcontinente caracterizado por importantes reservas de recursos naturais e um enorme potencial de produção de alimentos, frente a um mundo marcado por crises nos países centrais e exponencial aumento da demanda por commodities.”

Vitor de Pieri avalia que os vetores convergentes para a integração sul-americana estão todos atrelados aos recursos naturais, classificados como ativos estratégicos comuns. “Esse termo surgiu em reunião dos ministros de Defesa dos países da região em 2008, em meio às discussões sobre a formação do Conselho de Defesa Sul-Americano no âmbito da Unasul. Ativos estratégicos são as fontes de recursos naturais transfronteiriças, como por exemplo, a Amazônia, que transcende o território brasileiro e se estende por mais oito países; o Atlântico Sul, com as reservas do pré-sal e o conflito em torno das Malvinas; e as reservas de petróleo da Venezuela, já constatadas como as maiores do mundo.”

Os dados coletados pelo autor mostram que a América do Sul concentra 40% da biodiversidade do planeta, considerando os aquíferos (reservas sub-superficiais de água) que ocupam enorme extensão da região, bem como as geleiras continentais entre a Argentina e o Chile, que também representam reservas de água doce. “Uma tabela sobre a oferta sul-americana de recursos naturais estratégicos traz minuciosos percentuais como de água, floresta, pesca, petróleo e minerais, nos níveis dos territórios nacional, continental, regional e mundial. Os recursos naturais surgem como vetor convergente de integração regional, através do Conselho de Defesa Sul-Americano, braço importante da Unasul.”

Na opinião de Pieri, alguns números chamam a atenção, como os referentes aos minerais, além da água e da biodiversidade. “A Bolívia possui 49% da reserva mundial de lítio, matéria-prima estratégica, utilizada na produção de baterias, enquanto o Brasil detém 96% do nióbio, que é fundamental na tecnologia da informação. Outra tabela interessante é sobre terras aptas para a agricultura: 33% do território argentino, que é o sexto do mundo, pode ser cultivado sem necessidade de qualquer preparo; o Brasil tem 9% do território nas mesmas condições, área maior do que de países como a França e Itália juntos.”


Conflitos "intermésticos"

Se acordos como a Unasul parecem plausíveis no papel, Vitor de Pieri aponta os vetores divergentes que dificultam esta integração na prática. Ele mapeou os principais conflitos “intermésticos” na região, desde a Guerra do Pacífico no final do século 19 até a desavença entre Venezuela e Colômbia em 2010: são conflitos por demarcação de fronteiras, ambientais, energéticos, agrários e geopolíticos. “Aponto os Estados envolvidos, o período de máxima tensão, nível atual de tensão e o grau de instabilidade (se há declaração formal de guerra, disputa sob arbitragem internacional ou ruptura de relações diplomáticas).”

As instabilidades políticas em países como Venezuela e Bolívia são exemplos de conflitos domésticos mencionados pelo autor do trabalho, que procurou apontar as principais motivações e atores. “Não se sabe o que vai ser dos venezuelanos com a morte de Hugo Chávez e sua sucessão por Nicolás Maduro. Temos também a ‘guerra civil’ colombiana; a oposição acirrada da Igreja, meios de comunicação e ruralistas a Cristina Kirchner na Argentina, etc. Esses conflitos geram instabilidades no campo econômico, afastando investidores da região e criando desequilíbrios nas contas nacionais desses países.”

Os conflitos identificados como interestatais, segundo Vitor de Pieri, são reflexos de conflitos clássicos como a Guerra do Pacífico (ou Guerra do Salitre), causada por questões fronteiriças e que confrontou o Chile contra uma força conjunta de Bolívia e Peru, entre 1879 e 1883. A vitória foi do Chile, que anexou áreas ricas em recursos naturais dos dois países rivais, sendo que a Bolívia ficou sem saída para o Pacífico e o Peru sofreu com perda de território marítimo para o Chile. “Persistem até hoje diversos problemas no âmbito diplomático entre esses três países, inclusive com cortes de relações diplomáticas em diversos momentos da história contemporânea.”


Recursos naturais em jogo

O pesquisador acrescentou em seu levantamento os recursos naturais em jogo nesses conflitos, como o petróleo na Guerra do Chaco, ocorrida de 1932 a 1935 entre Paraguai e Bolívia, resultando em dezenas de milhares de mortos por conta das eventuais reservas naquela região. “Também verifiquei o envolvimento direto ou indireto de terceiros atores (internacionais) e, no caso do Chaco, havia o interesse da americana Standard Oil e da holandesa Dutch Shell pelo território. No começo dos anos 2000, tivemos a criação do Plano Colômbia de combate ao narcotráfico, uma cooperação militar sob a influência direta dos Estados Unidos.”

Vitor de Pieri afirma que outro conflito demonstrando a fragilidade nas relações entre os países da América do Sul é a crise das “papeleras” (indústrias de papel e celulose), entre Argentina e Uruguai, que vem desde 2003. Tudo começou com um protesto de cunho ambiental, por cidadãos argentinos, contra a construção pelo Uruguai de duas usinas de celulose na fronteira traçada pelo rio La Plata: eles passaram a bloquear o acesso às pontes que ligam a cidade uruguaia de Fray Bentos à argentina Gualeguaychú, prejudicando a circulação de turistas e de mercadorias entre os dois países. “O que era um conflito local, tornou-se nacional e depois mundial, indo parar na Corte Internacional de Haia.”

O Brasil não ficou livre de conflitos no período abordado pelo autor do livro, que começa registrando a disputa pelo Acre com a Bolívia entre 1899 e 1903, envolvendo revolta armada de colonos brasileiros que ocuparam o território até então pertencente ao país vizinho, declaração formal de guerra e muita diplomacia – motivo: a abundância de seringueiras em pleno ciclo da borracha. O levantamento inclui os atritos com Argentina e Paraguai em torno da Usina de Itaipu, entre fazendeiros paraguaios e brasiguaios, e o recente massacre de Albina, em dezembro de 2009, quando garimpeiros brasileiros foram atacados com facões e pedras por quilombolas da pequena cidade do Suriname.


Pendências diversas

A conclusão de Vitor de Pieri é que a integração está complicada do ponto de vista geopolítico e geoeconômico, mas vem se criando um diálogo do ponto de vista geoestratégico, especialmente a partir do debate sobre os ativos estratégicos comuns. “Ainda não podemos pensar em colocar os presidentes da Bolívia e do Chile lado a lado, imaginando que se tornem amigos imediatamente, pois há muitas pendências a serem resolvidas. Mas espero que este livro, ao sistematizar os obstáculos existentes para a integração entre os países, contribua de alguma forma com os estudos relacionados à segurança e defesa regionais. Não se pode dizer que está tudo bem na América do Sul.”

Grupo prepara outro livro O doutorando Vitor de Pieri faz parte do grupo de pesquisa “Geografia das Relações Internacionais: Estado, Economia Território e Integração Regional”, coordenado pela professora Claudete de Castro Silva Vitte. Ao abordar em suas pesquisas os fenômenos geoeconômicos e geopolíticos na América Latina, o grupo pretende contribuir na discussão sobre as principais transformações do papel do Estado e das atividades econômicas, com suas consequências territoriais e sociais. Pretende, também, discutir os diversos processos de integração em curso no subcontinente, observando os principais atores (governos, empresas, sociedade civil, organizações internacionais). O grupo está elaborando o livro América do Sul: Estado, Economia, Território e Integração Regional, com previsão de lançamento para setembro deste ano pela Cenegri Edições.

Serviço

Obra: Seguridad y Defensa em Sudamérica: entre la cooperación y el conflito
Autor: Vitor Stuart Gabriel de Pieri
Editora: Eudeba