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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 23 de junho de 2013 a 29 de junho de 2013 – ANO 2013 – Nº 566Retrato do artista quando trabalhador
"O trabalho artístico é constantemente idealizado, mas sua realização concreta inscreve o artista no mundo do trabalho e dos seus constrangimentos. Ele é um trabalhador”, afirma a professora Liliana Rolfsen Petrilli Segnini, coordenadora de um grupo que tem o trabalho artístico como objeto de pesquisa, formado há dez anos na Faculdade de Educação (FE) e no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH). A proposta institui um campo de pesquisa na história recente da sociologia do trabalho no Brasil, com a seguinte justificativa: se a sociologia e a história, sobretudo da arte e da cultura, já elaboraram relevantes contribuições analíticas, a especificidade do enfoque deste grupo está em compreender o trabalho artístico a partir das relações e condições de trabalho e da sua vivência profissional.
Em relação aos desafios colocados aos trabalhadores das artes nos dias de hoje, Liliana Segnini destaca dois aspectos. “É certo que o trabalho artístico é feito de incertezas, observadas em diferentes períodos históricos, quer seja na Corte – tal como descrito por Norbert Elias ao analisar a vida de Mozart – ou submetido às regras do mercado capitalista e do Estado. No entanto, comparando em nossas pesquisas as relações de trabalho no campo artístico no Brasil e na França, é possível evidenciar a frágil condição do artista brasileiro, submetido à aguda competição das políticas de curta duração, no mundo dos editais e dos cachês, das regras das leis de isenção fiscal.”
Na opinião da professora da Unicamp, buscar políticas de Estado (não de governo) que possibilitem trabalhos de longa duração é um dos desafios a ser apontado para os trabalhadores da arte no presente. “Uma segunda dimensão refere-se às desigualdades observadas nas relações de gênero. As dificuldades vividas no mundo da arte são intensificadas quando analisamos as trajetórias de mulheres artistas, inclusive na dança, único campo onde são predominantes.”
Liliana Segnini afirma que seu grupo já produziu resultados sob a forma de relatórios, artigos, trabalhos de conclusão de curso, dissertações de mestrado, teses de doutorado e pós-doutorados. A partir de 2006 foi criada uma disciplina tanto no programa de pós-graduação da FE como no doutorado do IFCH. Segundo ela, este objeto de pesquisa nasceu de uma demanda do Ministério do Trabalho e Emprego: redescrever, depois de duas décadas, a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) de 2002, atendendo exigência da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A docente da FE ficou responsável pelas áreas de Ciências e de Artes na pesquisa nacional, contando com uma equipe de doze professores e doutorandos.
“As discussões realizadas nos diferentes grupos profissionais, durante três dias, foi traduzida em uma planilha descritiva necessária para informar políticas públicas e estatísticas nacionais. A CBO 2002 nos possibilitou compreender que o artista é um trabalhador”, atesta Liliana Segnini, ressaltando que a linha de pesquisa iniciada há dez anos possui outra natureza e objetivos. “A pesquisa sociológica acadêmica é muito mais ampla e permite analisar a história do trabalho artístico no Brasil: mudanças nas relações e condições de trabalho, nos processos de formação profissional, nas formas de financiamento, nas políticas públicas, nas estatísticas do mercado de trabalho e na vivência do fazer artístico. São dois universos diferenciados.”
BRASIL E FRANÇA
Esta constatação levou a docente a coordenar um projeto temático Fapesp – “Trabalho e profissão no campo da cultura: professores, músicos e bailarinos” – abordando duas profissões, música e dança, em dois países, Brasil e França. “O projeto considerou que no contexto da mundialização, no qual o mercado e sua lógica comercial assumem importância jamais observada anteriormente, o setor cultural das artes e dos espetáculos está submetido, também, a mudanças econômicas e sociais. A arte como objeto de marketing e o seu financiamento pelas empresas indicam a influência do mercado na definição das expressões e objetivos artísticos.”
Liliana Segnini informa que o projeto Fapesp procurou analisar as mudanças traduzidas no mercado de trabalho, nas relações de trabalho e na formação profissional no mundo das artes e dos espetáculos, notadamente em música e dança, clássica e contemporânea, comparando Brasil e França. “A pesquisa privilegiou, nos dois primeiros anos, as orquestras e companhias de dança vinculadas a teatros subvencionados pelo Estado: Teatro Municipal de São Paulo e Ópera Nacional de Paris. Em seguida, analisou as múltiplas formas de trabalhar (e sobreviver) no campo artístico, sobretudo o trabalho intermitente, realizado de cachê em cachê. Neste projeto foram entrevistados 68 artistas no Brasil e 24 na França.”
O projeto Fapesp teria duração até 2007, mas surgiu a oportunidade de somar mais três pesquisas realizadas no período de 2008 a 2010, tendo por objeto o processo de formação e trabalho nas narrativas de artistas selecionados nos Programas Rumos Itaú Cultural, incorporando as artes visuais. “Estas pesquisas recorreram ao cruzamento de várias fontes e métodos: dados institucionais (estatísticas, classificação ocupacional, políticas públicas), entrevistas de longa duração, cadernos de campo para captar o não dito nas entrevistas, análise de fotografias. Foram entrevistados 36 artistas da dança, 39 músicos e 44 artistas visuais.”
Outras contribuições
Outra contribuição para maturar o projeto sobre trabalho artístico veio das análises do grupo no âmbito do primeiro Acordo Capes-Cofecub (Comitê Francês de Avaliação da Cooperação Universitária com o Brasil), intitulado “Mudanças nas relações do trabalho, relações profissionais e formação” (2000-2003). O acordo implicou na formação de uma equipe com dois pós-doutores, seis doutores, três mestres e em três trabalhos de conclusão de curso em educação. À produção deste grupo é possível somar o campo da pesquisa de Marina Segnini, L’artiste du spectacle vivant au temps de l’intermittence: plaisir et souffrance au travai, realizada a partir de dez entrevistas com artistas que vivenciam o estatuto “intermitentes do espetáculo”, na França.
Já o acordo Fapesp-CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique), “Qual é o sentido social da modernização no trabalho?” (2006-2009), possibilitou a continuidade e aprofundamento das discussões teóricas e metodológicas em torno do objeto trabalho artístico. O grupo avançou mais um passo com o projeto Capes-Cofecub “Organização e condições do trabalho moderno: emprego, desemprego e precarização do trabalho” (2010-2014), coordenado por Daniéle Linhart, na França, e Aparecida Neri de Souza(FE), no Brasil.
Principais resultados das pesquisas
- O intenso crescimento da população ocupada no campo das artes, muito além do crescimento do número de ocupados no mercado de trabalho, tanto no Brasil como na França.
- O crescimento da incerteza dos estatutos do trabalho por meio da criação de múltiplas formas institucionais de transferência do papel do Estado para o mercado: fundações, organizações sociais, Organizações da Sociedade civil de Interesse Público (Oscips), cooperativas.
- O crescimento das formas intermitentes de financiamento por meio de editais com verbas públicas sob o controle de gestão privada (renúncia fiscal, mecenato);
- A relevância do papel do Estado na desconstrução dos direitos sociais vinculados ao trabalho artístico, mesmo considerando os nomeados corpos estáveis em teatros públicos.
- A vulnerabilidade dos artistas submetidos a constante trabalho intermitente.
- O reduzido número de artistas inscritos nas formas protegidas legalmente de trabalho.
- O elevado índice de escolaridade desse grupo e o permanente processo de formação, que não se encerra. Desde a década de 1990, é observado o crescimento do número de cursos e vagas em arte, sobretudo nas universidades públicas, contrariando o crescimento do ensino superior privado em outras áreas.
- O trabalho artístico constitui um universo predominantemente masculino. É ainda reduzido o número de mulheres no campo artístico, sobretudo em música, quando comparado com o do mercado de trabalho no Brasil (PNAD, 2006). Esta situação é reiterada na França. As mulheres representam 56% da população economicamente ativa brasileira; 42% da população ocupada. No trabalho no campo profissional do “espetáculo e das artes”, elas representam 33% do grupo; considerando somente o trabalho em música, elas são 18%.
- As mulheres musicistas, tal como na população ocupada brasileira, são mais escolarizadas que os homens, mas essa situação positiva não se traduz no mercado de trabalho. Elas precisam mostrar que são ainda mais capazes que os músicos para transpor as barreiras que as impedem de participar, como intérpretes instrumentistas, tanto na música erudita (com maior possibilidade) como na música popular. Elas predominam como intérpretes cantoras, trabalho nem sempre reconhecido como tão qualificado quanto dos instrumentistas.
- No campo da dança essa situação se inverte numericamente, mas os homens continuam a ter maiores possibilidades de trabalho, justificada pela competição pouco expressiva; ao contrário, há o estímulo das escolas e companhias à participação dos homens na dança, sob a forma da remuneração ou possibilidades de participar de espetáculos.
- Em todos os grupos, as trajetórias narradas informam barreiras complexas a serem transpostas pelas mulheres, sobretudo na articulação com a maternidade.
Trabalho artístico, múltiplos olhares
Coordenadora
Liliana Segnini
Pós- doutores
Juliana Maria Coli
Fábio Fernandez Villela
Doutores
Dilma Fabri Marão Pichoneri
Maria Aparecida Alves
Maria Mercedes Potenze
José Humberto da Silva
Cármen Lúcia Rodrigues Arruda
Cacilda Ferreira dos Reis
Mestres
Katiuska Scuciato de Riz
Ricardo Normanha Ribeiro de Almeida
Trabalhos de conclusão de curso
Driely Gomes
Patricia Amorim de Paula