Edição nº 569

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 04 de agosto de 2013 a 10 de agosto de 2013 – ANO 2013 – Nº 569

Airto Moreira

Da bateria á queixada de burro

Na faixa número cinco do cultuado álbum Bitches Brew, de Miles Davis, a cuíca, que é originalmente oriunda do samba, aparece ao lado do trompete e de outros instrumentos. O disco está entre os que inauguraram o jazz fusion, ou a mistura do jazz com elementos do rock que surgiu na década de 1970. Aclamado, Bitches Brew projetou o nome do catarinense Airto Moreira para o mundo. Era ele quem tocava a cuíca. O instrumentista que trabalhava no Brasil com Hermeto Pascoal havia se mudado para os Estados Unidos para construir uma carreira ao lado da cantora Flora Purim, sua companheira. Airto não voltou mais, a não ser para visitar amigos e parentes e fazer apresentações. Para Guilherme Marques, também baterista e mestrando no programa de Música do Instituto de Artes (IA) da Unicamp, o artista é a peça-chave que conecta duas gerações de bateristas brasileiros: aquela ligada à bossa nova e ao sambajazz, e a que se configurou a partir da música instrumental brasileira.

Guilherme aponta em sua dissertação uma série de procedimentos musicais desenvolvidos pelo músico entre 1964 e 1975, que comprovam sua hipótese. “Os parâmetros que ele utiliza nesse período, e que o identificam, já existiam para a geração anterior, mas não da forma como ele manipulava. E o surgimento do trabalho dele faz com os elementos apareçam para a geração seguinte”, assinala o autor. O período de mais de uma década foi dividido em três fases: os anos de 1964 e 1966 identificados com o sambajazz de Airto, 1966 e 1968 como a fase em que o baterista integrou o Quarteto Novo, com Hermeto Pascoal, e participou dos festivais da canção da TV Record, e entre 1969 e 1975 nos Estados Unidos, fase em que o uso da percussão se intensificou “de maneira brutal”, como diz o mestrando.

Na pesquisa, Guilherme transformou a improvisação em partituras em 75 transcrições de músicas completas ou apenas trechos de vários discos analisados. Também estudou 115 páginas de entrevistas que ele fez não só com o próprio Airto, em uma de suas passagens pelo Brasil, mas com outros bateristas que trabalharam com ele, ou no mesmo período, que são Robertinho Silva, Pascoal Meirelles, Nene e Tutty Moreno. “Airto fez muitos trabalhos comerciais, mas no meu mestrado estou preocupado com os quais ele era protagonista, entre eles os cinco discos com o Sambalanço Trio, um com o Sambrasa Trio, um com o Sansa Trio e um do Quarteto Novo”. Os seis primeiros discos solo lançados nos Estados Unidos e outros três importantes na carreira do baterista, entre os quais Bitches Brew, também fazem parte da análise.

Airto Moreira era o talentoso baterista que havia se destacado no inicio dos anos de 1960 com grupos de sambajazz. Integrou o Quarteto Novo em 1966 e passou a se apresentar nos festivais de música da TV Record, que na época revelava os grandes nomes da Música Popular Brasileira. Em 1966, ano em venceu a canção “Disparada”, de Geraldo Vandré e Théo de Barros, Airto tocava um instrumento para lá de esquisito que fazia um efeito sonoro sensacional. Até então ninguém conhecia a queixada de burro, mas a partir daí ela se popularizou na percussão.

A originalidade do baterista tocou os norte-americanos que viam Airto como um músico exótico. “O modo como ele tocava percussão e bateria, lhe deu condições pra lançar carreira solo nos Estados Unidos. O mercado nutria por ele grande admiração em razão de ele tocar instrumentos até então desconhecidos, de um jeito diferente, em um contexto que sequer podiam imaginar”, avalia Guilherme. O pesquisador acredita que dessa forma Airto abriu as portas para muitos músicos brasileiros como, por exemplo, Hermeto, que colaborou nos dois primeiros discos solo do instrumentista.

De acordo com Guilherme, muitas pessoas se aproximaram até mesmo da música brasileira por causa de Airto Moreira. “Ele dá outra dimensão para a percussão na música brasileira. É por isso que considero importante acessar esses músicos enquanto estão ativos. As próximas gerações que não terão contato com eles não vão identificar o processo de desenvolvimento da música que eles impuseram. A pesquisa é fundamental como forma de resgate e construção”.


Procedimentos

O que levou Guilherme a afirmação que Airto seria um elo entre duas gerações de bateristas foi uma série de cinco procedimentos musicais que o pesquisador descreve na dissertação. O primeiro é o que ele chama de “uso melódico” do chimbal no pé esquerdo. O chimbal é constituído por dois pratos de bateria, dispostos face a face e que pode ter o som acionado por um pedal. “É uma peça que era usada de maneira mais elementar, para o acompanhamento dos cantores e solistas. Airto começa a trabalhar de forma mais livre e interativa, por isso eu chamo de melódica. O chimbal interage muito mais, e além de acompanhar, ele propõe temas para os solistas”, explica.

O segundo procedimento é a adaptação de ritmos nordestinos para a bateria. “Os ritmos ligados ao forró, como baião, coco, xaxado, passam a ser utilizados em um contexto de improvisação”. O terceiro é a modificação das métricas para ímpares em vez de pares. “É o que a gente chama de fórmula de compasso, a métrica básica é o compasso binário, 2 por 4, 4 por 4, que é natural para quem ouve. A partir do Quarteto Novo, começam a aparecer ritmos brasileiros tocados em compassos ímpares, 3 por 4, 5 por 4. Era um dado absolutamente novo”, esclarece Guilherme. A forma e o conteúdo dos solos de bateria constituem o penúltimo mecanismo identificado por Guilherme. “Airto trabalha com os solos dentro das formas das músicas. Até então os solos eram desconectados dessa estrutura e tinham a função de ‘chamar’ os outros instrumentos para retomar o tema principal. Havia uma estrutura já desenhada”.

A ênfase da dissertação é o trabalho de Airto na bateria, mas a feição percussionista não ficou de fora, sobretudo porque, desde que se mudou para os Estados Unidos, o instrumentista foi ampliando esta marca. Por isso a última discussão é como o uso da percussão modifica e altera o jeito do instrumentista tocar bateria. “Ele passa a tocar de maneira muito mais simples para dar espaço para a percussão. Existe um dado técnico que é a sobreposição de camadas de instrumentos que são gravados separadamente. Ele usa efeitos de preenchimento e coloridos sonoros utilizando uma gama gigante de apetrechos como congas, caxixi, pandeiro, chocalho e berimbau”.

Na conversa que teve com Airto, Guilherme também aprendeu que nem sempre o que o pesquisador imagina corresponde ao que houve. No álbum Fingers (1973), por exemplo, a bateria da música “Paraná” é tocada de maneira que Guilherme não pode reconhecer como sendo do estilo do instrumentista. O autor da dissertação desconfiava que não fosse Airto tocando, o que se confirmou. Entretanto Guilherme não imaginava que o artista não gostava do efeito. “A bateria tem um estilo americanizado que, de acordo com o que Airto me disse na entrevista, era o jeito que o mercado aceitava. Eu não achava que ele não gostasse daquilo”.

O trabalho na percussão desenvolvido nos Estados Unidos foi reconhecido, segundo Guilherme, pelos críticos de uma conceituada publicação que é a revista norte-americana Downbeat. A revista criou a categoria “percussão” em sua premiação tradicional dos melhores do ano, em 1973. Airto foi o escolhido pelo público e crítica até 1983, quando outro brasileiro venceu – Naná Vasconcelos. “A conclusão que se delineou com a pesquisa é a de que Airto é um ponto de contato forte entre as gerações de bateristas, mas é um evolucionário e não um revolucionário, no sentido que ele não abandona nada daquilo que existia antes, ou seja, não nega o que os outros bateristas tocavam antes dele, mas propõe novos usos para o que já estava ali de forma mais elementar”, comenta Guilherme.



Publicações
“Misturada – uma análise do solo de bateria de Airto Moreira”. XXII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em Música (ANPPOM) – 2012 (João Pessoa)
“Uso ‘melódico’ do chimbal na performance de Airto Moreira da música Deixa”. XXIII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em Música (ANPPOM) – 2013 (Natal).
Dissertação: “Airto Moreira: do sambajazz à música dos anos 70 (1964-1975)”
Autor: Guilherme Marques
Orientador: Fernando Hashimoto
Unidade: Instituto de Artes (IA)

Comentários

Comentário: 

Parabéns pelo trabalho Guilherme, o Airto ainda é pouco conhecido e cultuado aqui no Brasil! Mas faltou dizer aí também que ele faz um uso único da voz que domina como poucos e em uma vasta tessitura. Foi também pioneiro na forma com que utilizou esse recurso, transcendendo em muito o que se fazia na época. É revolucionário em mais esse aspecto! Eu sou seu fã número um!
Abraços!