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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 26 de agosto de 2013 a 01 de setembro de 2013 – ANO 2013 – Nº 572Peregrino da América’ leva alegoria
medieval ao Brasil do século 18
O “Compêndio Narrativo do Peregrino da América”, publicado originalmente em 1728, põe a estética literária a serviço da doutrina católica da Contrarreforma, ao descrever uma peregrinação fictícia, marcada por alegorias de fundo religioso, entre a Bahia e as minas de ouro de Minas Gerais. Um grande sucesso na época de seu lançamento, passando por quatro reedições entre 1731 e 1765, a obra caiu rapidamente no esquecimento, até ser relançada, com uma segunda parte inédita, já no século 20.
Tratado por muitos críticos, desde então, como obra “intragável”, cujo valor para o público moderno estaria restrito ao caráter histórico da descrição da vida brasileira durante o ciclo do ouro, o livro voltou, recentemente, a despertar interesse como peça de literatura “que pertence à tradição das narrativas alegóricas medievais e dos desenvolvimentos que elas conheceram”, explica José Adriano Filho, autor da tese de doutorado “Combate ao Mundo e Conquista do Paraíso: Ficção e Alegoria no Compêndio Narrativo do Peregrino da América”, defendida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp sob orientação do professor Alcir Pécora.
Em entrevista concedida via e-mail ao Jornal da Unicamp, Adriano diz que essa interpretação do livro, visto no contexto de sua época, oferece “outra perspectiva, ao demonstrar que a presença do alegórico tem um papel fundamental no desenvolvimento do Peregrino da América, na medida em que estabelece a ligação entre doutrina e estética”.
Muito pouco é conhecido sobre o autor da obra, Nuno Marques Pereira – nem mesmo se era brasileiro ou português, mas apenas que, se não nasceu no Brasil, aqui passou parte da infância. Não era sacerdote, mas seu trabalho indica influência da Companhia de Jesus: é um texto de exortação religiosa, às vezes comparado aos sermões do Padre Vieira.
“Há, sim, certa aproximação entre a obra de Nuno Marques e a do Padre Vieira, principalmente em termos de estilo”, explicou Adriano. “No Sermão da Sexagésima, pregado em Lisboa em 1655, Vieira atacava o ‘estilo tão dificultoso, e tão afetado’. Este seria um ponto de aproximação entre as obras de Vieira e de Nuno Marques Pereira”, disse. “Nuno Marques e o Padre Vieira estavam preocupados com a falta de decoro nas artes”.
Em sua tese, Adriano afirma que o “tema da peregrinação teve grande desenvolvimento na literatura dos séculos16-18, sendo que várias obras produzidas neste período deram continuidade ao modelo aberto pela tradição medieval que valorizava a viagem, especialmente o caminho percorrido em busca da salvação”. O livro se apoia na ideia de que todos os homens são peregrinos na Terra, e que a verdadeira pátria do ser humano é o céu.
A viagem do narrador no livro de Marques Pereira, chamado apenas de Peregrino, é marcada por uma série de encontros em que ele tem a oportunidade de expor e defender os princípios da fé católica, tal como se plasmava no período da Contrarreforma, após o Concílio de Trento (concluído em 1563). Em sua análise da obra, Adriano se vale do conceito de psicomaquia – “batalha espiritual” entre as forças do pecado e da virtude – para tratar dos desafios que surgem no caminho do Peregrino.
“O Peregrino combina o desejo de narrar com o de ensinar e despertar os seus leitores para seu ensino ao narrar sua longa peregrinação literária por terras brasileiras. Em grande luta contra as tentações do mundo, ele segue inabalável o seu caminho guiado pela fé e pela graça de Deus, transformando-se num símbolo de persistência e de vitória da vontade sobre as forças do mal. Nesse sentido, o Peregrino é uma figura que realiza a própria psicomaquia. Mas ele é também um agente, um instrutor, que atua nas psicomaquias particulares das pessoas que encontra”, disse Adriano, explicando ainda que, na narrativa das andanças do Peregrino, “a presença e o proceder do demônio são sutis”.
“Os representantes do Mal são figuras ambíguas e estranhas. A soberba e a grande ambição provocam grandes estragos no Brasil. O Peregrino avisa que o ser humano deve sempre lembrar-se da própria morte, que é um dos melhores remédios para livrar os homens de ofender a Deus, de onde deriva a orientação para enfrentar a passagem por esta vida: fugir dos três inimigos da alma, que são o mundo, o diabo e a carne”.
A questão da alegoria, como ferramenta retórica e literária, é central na análise empreendida pela tese de Adriano.
“A presença do alegórico tem um papel fundamental no desenvolvimento da obra, na medida em que estabelece a ligação entre doutrina e estética, além de indicar a existência de uma tradição literária que difundia os preceitos básicos do catolicismo desde a Idade Média”, escreve o autor. “Entre as heranças culturais que a sociedade colonial luso-brasileira recebeu da Idade Média, o patrimônio religioso constitui um componente significativo. Aliás, foi a partir desses elementos da tradição cristã que se estruturou a própria ordem social no território da colônia”, explica.
A viagem do Peregrino opera como pretexto para a exposição moralista e doutrinária do autor. Adriano aponta a utilização da alegoria da viagem como significativa, ao sintonizar a literatura brasileira com o tema do homo viator (“homem viajante”) como representação da existência humana como uma peregrinação que tem o paraíso como destino.
A visão do Brasil que aparece na obra é ambígua: a paisagem natural é tratada como paradisíaca, numa linguagem que às vezes se aproxima da encontrada em textos como a carta de Caminha, mas a paisagem humana aparece degenerada, onde “os homens estão doentes de avareza e cobiça”.
De acordo com Adriano, “aparece um Brasil resplandecente em sua natureza, que se opõe a uma sociedade humana corrompida e pecadora; por um lado, uma descrição deslumbrada da natureza e, por outro, a descrição da dissolução dos costumes, presente na exposição da doutrina e moralização que apresenta.”
Outra dualidade presente na obra opõe Portugal, fonte dos princípios civilizadores, e Brasil, onde esses princípios são corrompidos.
Dualidades
Em sua tese, Adriano escreve que, “nesta imagem construída por dualidades e contradições, destaca-se o tratamento de grupos da sociedade mais ou menos marginais que é feito pelo Peregrino: há uma atitude benevolente para com o negro, apesar de não compactuar com algumas de suas práticas, e um tratamento menos favorável do índio e do judeu”.
A atitude para com o negro é de proteção e denúncia dos maus-tratos, mas em nenhum momento o Peregrino defende a abolição da escravatura ou a liberdade dos escravos. Os índios, por sua vez, são tidos como “desconfiados, traiçoeiros e vingativos, sem caridade, primor ou cortesia, mal agradecidos, prezando pouco a honra, mais se inclinam para o mal, do que para o bem”, embora passíveis de conversão ao catolicismo. Por fim os judeus são vistos com desprezo e tachados de heréticos. “O motivo essencial para essa repulsa é a culpa que lhes é atribuída de causadores da morte de Cristo”, escreve Adriano.
A conclusão da tese destaca o fato de que o livro foi produzido num contexto histórico e social caracterizado por rupturas. “A obra elege a figura do Peregrino como protótipo do perfeito católico que se debate com um mundo labiríntico, contaminado pelos vícios e pelo pecado, em especial, a cobiça provocada pela descoberta das minas de ouro”, escreve o autor.
Sendo um livro de exortação e instrução religiosa, o “Peregrino da América” manteria algum paralelo com os best-sellers de fundo religioso publicados nos dias atuais? “O ‘Peregrino da América’ é fruto de uma época que favoreceu a produção de uma literatura voltada para a espiritualidade e para a moral, bem como à difusão e a aceitação das normas e dos princípios que serviam de fundamento à renovação da religião, da espiritualidade e da própria conduta do indivíduo”, explica Adriano. “Além disso, neste contexto a atividade artística revestia-se de intenções pedagógico-didáticas fundadas na crença de que a arte poderia constituir um instrumento eficaz de reconversão dos fiéis e de doutrinamento nos valores da fé católica”.
Já os best-sellers de exortação religiosa produzidos atualmente estão relacionados, de acordo com o estudioso, às diversas formas pelas quais os indivíduos e os grupos sociais exercitam, experimentam e expressam sua religiosidade “num contexto de mercado religioso”, que seria “a tendência das pessoas em moldar a sua própria religião apropriando-se de fragmentos e de elementos de diversos e diferentes sistemas religiosos”.
Uma questão que permanece em aberto é a causa da enorme popularidade do livro, que teve cinco edições ainda no século 18, e sua obscuridade subsequente – ele só voltaria a ser publicado, após a edição da década de 1760, pela Academia Brasileira de Letras, em 1939. A segunda parte, também escrita no século 18 por Marques Pereira, só viu o prelo nessa edição brasileira. O problema faz parte de uma pesquisa que Adriano ainda pretende realizar.
Publicação
Tese: “Combate ao Mundo e Conquista do Paraíso: Ficção e Alegoria no Compêndio Narrativo do Peregrino da América”
Autor: José Adriano Filho
Orientador: Alcir Pécora
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)