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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 25 de novembro de 2013 a 01 de dezembro de 2013 – ANO 2013 – Nº 584Precariedade e cultura sexista estigmatizam futebol feminino
Estudo desenvolvido na FEF mostra que atletas não têm apoio e estruturaA atacante Marta Vieira da Silva foi eleita pela Federação Internacional de Futebol (Fifa) por cinco anos seguidos a melhor jogadora de futebol do mundo, de 2006 a 2011. Conquistou medalha de ouro nos Jogos Pan-Americanos de 2003 e de 2007, com a Seleção Brasileira de Futebol Feminino, e medalha de prata nos Jogos Olímpicos de 2004 e 2008. Foi considerada pela revista Época um dos 100 brasileiros mais influentes de 2009. Iniciou carreira profissional no Vasco em 2000 e teve muitas glórias graças ao esporte. No momento, joga fora do país, no Tyresö FF, Suécia. Em poucos anos deverá estar aposentada, mas não com menos glórias, ao que tudo indica.
Mas esse quadro não reflete a realidade para a maioria das jogadoras que atuam profissionalmente. Elas não têm apoio, estrutura e nem condições para o exercício no futebol. E, a despeito de todos os constrangimentos que apontam para as incertezas dessa seara, jogadoras de três clubes do Estado de São Paulo, que foram entrevistadas em pesquisa da Faculdade de Educação Física (FEF), continuam investindo nessa atividade como eixo norteador dos seus projetos de vida, insistindo em rebater uma cultura sexista que elege o futebol como reduto e reserva masculina no país.
Essa constatação está registrada na tese de doutorado do pesquisador Osmar Moreira de Souza Júnior, na qual ele abordou o universo da prática do futebol profissional pelas mulheres. Seu projeto derivou das inquietações de dois entusiastas desse futebol: dele próprio e de sua orientadora, a docente Heloisa Reis.
O autor da tese escolheu o assunto graças a uma experiência recente de ter estado à frente de uma equipe de futebol de meninas em Rio Claro, e a professora Heloisa Reis, pela sua vivência nos gramados como jogadora do Guarani F.C., um dos times pioneiros da modalidade na década de 1980, após revogação do decreto dos anos de 1960 que proibia essa prática por mulheres.
A equipe do Guarani da década de 1980 e a história da prática do futebol por mulheres antes desse período já tinham sido discutidos na dissertação de Eriberto Lessa Moura, também orientado pela professora Heloisa. Tal conteúdo, informa Osmar, forneceu alicerces para novos estudos, entre os quais dedicados a compreender os entraves que insistem em manter invisível o futebol de mulheres em pleno século 21.
A proposta de Osmar foi analisar o futebol atual, na esfera da alta performance. Para isso, ouviu dirigentes e treinadores(as). Também foram feitas entrevistas e grupos focais especificamente com as jogadoras, além de observações às rotinas de treinamentos e jogos das equipes femininas.
“Recorrendo à legislação esportiva, que atua solidariamente com a legislação trabalhista, é possível identificar que nenhum dos três clubes pesquisados, e muito provavelmente nenhum outro no Brasil, cumpre as diretrizes legais. Eles submetem as atletas às exigências dos deveres de profissionais previstas na Lei Pelé, mas não oferecem contrapartida – a remuneração pactuada por contrato de trabalho esportivo e as condições exigidas para o exercício profissional”, ressalta ele.
Nesse cenário, embora não desfrutando do direito assegurado pela legislação e vivenciando uma situação que se assemelha ao emprego disfarçado, as jogadoras devem sim ser consideradas profissionais do futebol. Afinal, elas são detentoras de um capital simbólico referendado por seus pares no campo esportivo, como uma expertise forjada a partir da dedicação ao aprimoramento técnico-tático e à consequente (e concorrente) abnegação a qualquer outro campo de atuação profissional.
Problema
Segundo o doutorando, a participação das mulheres no futebol se consolidou desde meados de 1990, depois de um período em que a modalidade ganhou uma certa exposição midiática.
Por outro lado, o período também foi marcado pela busca da erotização da modalidade, com iniciativas como o Campeonato Paulista de 1997, que usou como critério para a seleção das jogadoras os atributos físicos, em detrimento das que tinham um maior potencial futebolístico, critica ele.
Mesmo assim, isso não impediu que meninas e mulheres continuassem ampliando seus espaços no esporte e no lazer, e no campo do alto de rendimento. “Apesar de todos esses avanços, continuamos ‘engasgando’ ao falar de um futebol feminino profissional, revelando as dificuldades enfrentadas pelas mulheres para legitimar esse campo de atuação”, lastima.
Osmar estudou o Campeonato Paulista de Futebol Feminino de 2011. O seu problema de pesquisa envolvia compreender em que medida o futebol de alto rendimento praticado por mulheres aproximava-se, e em que medida se afastava, de uma organização profissional.
Para dialogar com o problema, criou categorias de análise: a organização do futebol feminino (competições, clubes, federações), projetos das jogadoras (dedicação, vencimentos, percepção de status, contrato, apoio familiar) e futebol como profissão (agências reguladoras, dedicação, vencimentos, percepção de status, carreira, família, legislação esportiva).
Conforme Osmar, as distintas estruturas dos clubes pesquisados acabaram forjando diferentes representações das atletas. Enquanto no Clube A, por exemplo, tratavam suas contusões em modernas salas de fisioterapia, no Clube C algumas quase tiveram que encerrar a carreira precocemente pela ineficácia (ou inexistência) do sistema de atendimento médico.
A investigação permitiu conhecer mais as rotinas e os projetos de vida de mulheres que procuravam se estabelecer como profissionais em meio a um cenário adverso, que pouco contribui para esse status.
Acessando as políticas previstas pela Fifa, que levam em conta o desenvolvimento do futebol para mulheres, incluindo um extenso rol de subsídios que variam de consultorias a linhas de assistência financeira, o pesquisador notou que existe uma política de vanguarda para reduzir as “estratosféricas” desigualdades de gênero no futebol.
De outra via, também constatou que a Fifa idealiza a política, porém não zela para que seja implementada, de forma que o que se vê em suas afiliadas e subafiliadas, como a Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol), a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e a Federação Paulista de Futebol (FPF), nem de longe lembra as diretrizes delineadas em seu projeto para o desenvolvimento do futebol.
Entrevistas
Ao se deparar com a realidade dos clubes nas conversas com as protagonistas do estudo, ficou evidente uma relação ambígua experimentada pelas jogadoras. De um lado sua atividade aproxima-se do exercício profissional previsto na legislação esportiva, cumprindo com os deveres como dedicação exclusiva ao clube, treinamentos diários regulares, descanso funcional, jogos, entre outros. Já por outro reconhecem não desfrutar da estrutura e benefícios que fariam jus como profissionais.
Uma forte evidência desse contrassenso está no fato de um dos clubes pesquisados não oferecer qualquer tipo de pagamento às atletas e de outros dois realizarem seus pagamentos sem contrato de trabalho ou sem registro em carteira, com vistas a evitar a formalização de vínculos empregatícios.
Os achados indicaram que essa relação de emprego “disfarçado” fere a legislação esportiva do país – a Lei Pelé –, a qual estabelece a profissionalização de atletas de futebol com remuneração decorrente de contrato de trabalho desportivo, apura ele.
Na visão do autor da tese, a legislação que voga embasou-se em jogadores do sexo masculino. Mas, supostamente, até para não se tornar inconstitucional, legislando na contramão da Constituição Federal – que descreve que “homens e mulheres são iguais em diretos e obrigações” –, não faz qualquer menção à distinção de gênero. “Essa situação acaba configurando a existência de jurisprudência para que as jogadoras tenham reconhecida pela justiça sua condição de profissionais do futebol.”
Nas entrevistas, as jogadoras acabaram refletindo um sentimento ambíguo: reconheceram que não desfrutavam das condições e status de profissionais do futebol, mas nem por isso deixaram de se afirmar como tais.
Outro aspecto que chamou a atenção de Osmar foi o valor que elas dão à carteira de trabalho e à cobrança que sofrem na família, por não terem esse instrumento para regulamentar seus vínculos. Essa configuração traz um dilema na percepção delas e de seus familiares, em relação ao exercício de suas atividades, que muitas das vezes distancia-se do estatuto de trabalho.
Por volta do ano 2000, o pesquisador colocou em execução um projeto de uma equipe de futebol de meninas, batizada como Minerva Futebol Feminino, que participava de jogos e campeonatos de futebol e futsal na região de Rio Claro. O projeto, que nunca teve caráter institucional, foi implementado como ação voluntária, com objetivos ligados à prática esportiva, tendo ainda uma perspectiva de inclusão social.
A equipe participou de competições de 2002 a 2008, chegando a contar com cerca de 40 jogadoras, e conquistou diversos títulos. Osmar foi seu treinador, “dirigente” e torcedor. Foi daí que surgiu uma maior sensibilização pelo tema, sobretudo o respeito pelas mulheres que sonham viver do futebol com dignidade.
Um sonho antigo
Heloísa jogou no GFC em 1983 e 1984. A equipe venceu todos campeonatos de então, exceto o Campeonato Paulista de 1983, para ficar com a vice-liderança, perdendo a final para a principal equipe – Ísis Pop. Encerrou suas atividades após a conquista porque muitas jogadoras foram para o Radar FC, que se tornou a mais destacada. “Sonhávamos com a profissionalização, acreditando que isso dependeria apenas de provar que mulher poderia jogar futebol. As conquistas foram insuficientes para convencer os cartolas do clube sobre o valor da reivindicação. A resposta foi o encerramento da equipe sem explicações, em 1984”, testemunha ela.
Já à época, as jogadoras passavam por dificuldades para se deslocarem até o clube e se alimentarem. “Às mulheres somente eram permitidos treinamentos em campo de terra, porém tínhamos mais espaço na mídia e no meio futebolístico do que hoje, pois fazíamos muitas preliminares de jogos masculinos da primeira divisão do Brasileiro e do Campeonato Paulista”, revela a docente.
Publicação
Tese: “Futebol como projeto profissional de mulheres: interpretações da busca pela legitimidade”
Autor: Osmar Moreira de Souza Júnior
Orientadora: Heloisa Helena Baldy dos Reis
Unidade: Faculdade de Educação Física (FEF)
Comentários
Bom artigo
Parabéns pelo artigo sobre futebol e mulheres. Ainda falta muito por explorar, mas muitas pessoas estamos trabalhando pela igualdade, não só no campo esportivo senão em todos os espaços onde a mulher tem sido invisibilizada. Abraços