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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 24 de fevereiro de 2014 a 09 de março de 2014 – ANO 2014 – Nº 588De Calvin a Freud
Calvin, Haroldo e Freud convivem nas referências bibliográficas da tese de doutorado “A representação da criança no humor: um estudo sobre tiras cômicas e estereótipos”, de Márcio Antônio Gatti, defendida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. Usando exemplos do trabalho de Bill Waterson (criador da dupla Calvin e Haroldo), Charles Schulz (Peanuts), do argentino Quino (Mafalda) e de outros cartunistas, incluindo o brasileiro Maurício de Souza, Gatti explora o modo como os estereótipos que envolvem a figura da criança são usados para fazer rir os adultos.
O estereótipo principal, conclui a tese, é o da “incompletude” – da criança como um ser ainda em desenvolvimento, a quem faltam características e conhecimentos esperados do adulto. “Isso pode se manifestar de diversas formas, como na falta de traquejo com regras de etiqueta (não cumprimentar as pessoas, comer com as mãos...), nas regras pragmáticas da linguagem (não saber que não deve dizer certas coisas em determinados lugares e para determinadas pessoas...) e ainda no próprio domínio das funções corporais”, diz o trabalho. No caso dos meninos, principalmente, esse estereótipo muitas vezes toma a forma de incivilidade, como falta de higiene e de boas maneiras.
Mas a visão estereotipada não é, necessariamente, uma visão negativa ou preconceituosa, argumenta o autor. “Há também os estereótipos de identificação, que são aqueles reivindicados pelos próprios agentes do discurso como positivos, atuando como identificadores dos indivíduos que participam de um grupo social, de uma etnia, de uma categoria. Lembremos, nesse caso, dos estereótipos sobre o brasileiro que povoam as propagandas de TV. Somos, para essas propagandas, receptivos, alegres, e nunca desistimos. Esses são estereótipos que um certo discurso sobre o brasileiro reivindica para si. São, portanto, identificadores desse discurso e, nesse caso, não revelam preconceitos”, disse Gatti ao Jornal da Unicamp.
Ele reconhece, no entanto, que “é inegável a relação entre as duas categorias, estereótipo e preconceito, o que não quer dizer que somente haja estereótipos que sejam retratos de preconceitos. Tendo a compreender que estereótipos revelam preconceitos, são oriundos destes. Mas não é absolutamente impossível que alguns estereótipos, depois de estabilizados numa determinada sociedade, passem, eles próprios, a ser fomentadores de um preconceito, e nesse sentido a mantê-lo vivo”, acrescentou.
A tese afirma que o estereótipo é um esquema que permite à pessoa que o emprega relacionar-se com a realidade sem precisar reclassificar todas as coisas o tempo todo. “De certa forma, estamos imersos em estereótipos, mas não somente neles, como também em protótipos, em clichês, frases feitas de toda natureza, fórmulas etc. Isso revela uma faceta do modo como nos organizamos em torno dos sentidos: em muitos casos, os sentidos estão dados de antemão e nós os seguimos ou trabalhamos sobre esses sentidos já delineados”, explicou. “Mas seria ingenuidade pensar que estamos imersos aleatoriamente nos estereótipos. Na verdade eles são ‘selecionados’ pelos discursos, e estes sim afetam os sujeitos e os fazem aceitar ou refutar um estereótipo”.
No caso específico do humor, muitas vezes são mobilizados estereótipos negativos – contra grupos étnicos, nacionalidades, origens regionais – mas, segundo Gatti, isso não acontece com as crianças: mesmo os meninos malcriados ou sujos que aparecem nas tirinhas não vão vistos de modo negativo. “Na verdade, acredito que sejam imagens que revelam o que se espera dos futuros homens. Nesse caso, estaríamos tornando uma imagem negativa do próprio homem, não da criança”, disse ele. “Seguindo esse ponto de vista, não se trata de fato de uma ‘incivilidade’, mas de um modo de circular pela nossa civilização”.
A criança seria imunizada contra o estereótipo negativo, ou depreciativo, pelo fato de não atribuir um significado a si mesma – ser, de certa forma, indefesa em relação aos discursos que se elaboram sobre ela.
“Acredito que é porque ela, a criança, não se significa – ou o modo como ela se significa não seja amplamente aceito – que os estereótipos não sejam depreciativos”, disse o pesquisador. “O que ocorre é que, no humor, os estereótipos correntes sobre outros grupos sociais e etnias funcionam como simulacros”. “Simulacro”, aí, é um conceito elaborado pelo linguista francês Dominique Maingueneau. No caso do humor, trata-se de uma interpretação operada pelo discurso da piada de outro discurso que é alvo da piada. O humor que faz uso depreciativo de estereótipos se apropria de um traço que, no discurso de seu alvo, é positivo, e o converte em negativo.
“O sucesso da mulher no mercado de trabalho, para citar um exemplo de Sírio Possenti [professor do IEL, orientador da tese de Gatti], é significado no discurso machista das piadas de loira como resultado da disponibilidade sexual e depreciado como burrice”, cita Gatti.
Como a criança não tem um discurso sobre si mesma, esse fenômeno não ocorre. “Nas tiras cômicas que analiso, não ocorrem estereótipos que sejam correlatos de simulacros. Eles funcionam muito mais como identificadores da criança, através de características estereotipadas e que nem sempre são realistas, imagens que são do domínio de uma sociedade e que funcionam, nos textos, como pontos de ancoragem para o discurso, pois são imagens, de certa forma, amplamente compartilhadas, é o caso do estereótipo da criança ingênua” afirmou o pesquisador. “Muito provavelmente isso ocorre porque não há com quem ‘brigar’, não há um agente de um discurso infantil que seja uma voz socialmente aceita, que se signifique e dê margem para que um discurso opositor polemize e formule estereótipos negativos sobre a criança”.
Meninas não aparecem tanto no papel de “incivilizadas” quanto meninos no humor – Mafalda e Mônica não protagonizam tiras “nojentas” como algumas de Calvin, por exemplo – por causa do que se espera dos sexos em nossa sociedade, outro fenômeno que vem dos estereótipos. “Há uma espécie de fidelidade com os estereótipos de menina que circulam pela sociedade, e assim uma espécie de verossimilhança empregada nos textos do humor”, explica o pesquisador. “Preservamos, portanto, na nossa civilização um tipo de memória sobre meninos e sobre meninas, sobre o que se espera que façam e digam. É assim que a delicadeza está muito mais associada às meninas que aos meninos. Para estes, na verdade, isso não é bem aceito. É como se, para ser menino, devesse haver algum tipo de desleixo ou transgressão. Já para ser menina, não”, disse Gatti, acrescentando: “O que não quer dizer que não haja transgressões desses estereótipos no humor. Há casos como o de Lucy, da turma de Peanuts, que transgridem essa delicadeza. Essa personagem mostra uma faceta muitas vezes malvada, sarcástica. Mas isso não faz com que os estereótipos de menina não sejam rememorados pelo leitor quando se depara com um material assim”.
Gatti sugere que, em linhas gerais, as tiras em quadrinhos que têm crianças como protagonistas funcionam a partir da conjunção da ativação de uma memória de estereótipos da criança com uma técnica humorística, como a da sobreposição de scripts, descrita pelo linguista Victor Raskin. Na tese, o pesquisador descreve assim a sobreposição: “Para que um texto seja uma piada, ele deve ser compatível, completamente ou em parte, com dois diferentes scripts, e os dois scripts com os quais o texto é compatível devem ser opostos”.
É a transição entre um script e outro que produz o humor. Como diz a tese: “Uma outra e importante noção introduzida pelo autor é a de ‘gatilho’, que é o elemento que dispara a mudança de um script sério para um script jocoso, lançando uma sombra sobre o primeiro script e a parte do texto que o introduziu, impondo uma interpretação diferente da mais óbvia”.
“Sem essa técnica, não há humor. É porque estamos envoltos pelo gênero e pela técnica que se aplica nele, aliados aos estereótipos, que podemos rir dessas ou por essas crianças”, disse Gatti. Ele concorda que, muitas vezes, nas tiras ocorre uma transformação da ingenuidade estereotípica da criança em insight sobre a sociedade ou o mundo adulto. “É o caso de muitas tiras da Mafalda, em que a garota revela uma sagacidade incomum para crianças. A ingenuidade, nesse caso, chega a ficar restrita, muitas vezes, ao signo imagético, porque temos ali uma criança, ou a representação do corpo de uma criança, falando, e o humor deriva em parte da incompatibilidade de um ‘corpo’ de criança e uma fala de adulto”, disse. “Mas nem sempre isso ocorre. Às vezes o insight fica mesmo só para o leitor. Calvin é um bom exemplo. Muitas vezes, o personagem, envolto na sua imaginação, não se desvincula dela, mas o leitor a percebe e os efeitos de sentido que derivam disso o fazem rir”.