Edição nº 588

Nesta Edição

1
2
3
4
5
6
8
9
10
11
12

Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 24 de fevereiro de 2014 a 09 de março de 2014 – ANO 2014 – Nº 588

No repertório do ‘burocrata lírico’, o onírico, o burlesco e o confessional


Eustáquio Gomes teve 16 livros publicados, contribuiu com mais de 800 crônicas no jornal campineiro Correio Popular e, ocasionalmente, escreveu também para O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde. “As pessoas pensam que é fácil escrever”, ele comentava com o amigo Roberto Goto. “Era em menção a todo o trabalho que a escrita de um romance exige, trabalho muitas vezes interrompido por questões relativas ao progresso do enredo, à construção de personagens, à adoção do tom adequado etc.”, acrescenta o professor da Faculdade de Educação.  

Segundo Goto, em escritos de caráter memorialístico e confessional, Eustáquio Gomes revela que a sua inclinação para a leitura e escrita de obras literárias se manifestou cedo em sua vida. “Isso denota um caso de vocação. No entanto, essa vocação não teria se concretizado na obra que ele deixou se não houvesse sido assumida de forma determinada e empenhada. Talvez como cronista e articulista tenha passado a impressão de que escrever era algo fácil para ele, mas costumava dizer o contrário, consciente não só dos problemas e dificuldades inerentes à construção de um texto literário, mas também das hesitações e dúvidas que cercam o ofício do escritor.” 

A confirmação de que a vocação de escritor só rendeu frutos graças à sua insistência e à sua dedicação, na visão do amigo, talvez esteja na própria trajetória de Eustáquio Gomes. “Ele começou como poeta, publicando seu primeiro livro (Cavalo Inundado) à custa de uma pequena odisseia – por algum tempo guardou as páginas compostas em chumbo até encontrar uma gráfica que as imprimisse em papel. Mas logo derivou para a narrativa, que exige mais transpiração que inspiração. Em todo esse processo havia – e provavelmente houve sempre – não apenas o impulso para exprimir-se literariamente e criar obras que contassem no panorama artístico-cultural mas também a preocupação com a permanência que essa inserção na cultura pode proporcionar.” 

Para Roberto Goto, Eustáquio Gomes parece ter buscado um equilíbrio, colocando-se numa posição equidistante em relação à literatura hermética e à de fácil apelo popular, as quais ele classificava no mesmo patamar. “Lembro-me de ele se referir a autores que praticam a escrita automática – ou ‘surrealista’ – dizendo que ‘isso é muito fácil de fazer’. Ao mesmo tempo, de olho em critérios estéticos, adotou uma linguagem que é moderna sem desprezar a chamada lição dos clássicos: considero sintomáticas, a esse respeito, suas manifestações acerca do estilo de best sellers contemporâneos comparado com o de campeões de venda em épocas como a do pré-modernismo – tinha esses últimos como artisticamente superiores, lamentando que alguns não fossem mais lidos. Não por acaso, de modo geral preferia traduções portuguesas às brasileiras.”

O professor da Unicamp conta que, estilisticamente, Eustáquio Gomes tinha como suas referências mais importantes Albert Camus, Ernest Hemingway, Franz Kafka, Fernando Pessoa e, no Brasil, Machado de Assis, Oswald de Andrade e Carlos Drummond de Andrade. “As eventuais semelhanças entre suas narrativas e os textos jornalísticos são, nesse caso, enganadoras: em seus romances quase tudo é curto – tanto as frases quanto os parágrafos e capítulos –, não para facilitar a comunicação mas como expressão dessa modernidade que busca dizer o máximo no mínimo, recorrendo ao sintético, ao elíptico, ao que menos mostra que sugere, e que pouco explica.”

Tematicamente, complementa Goto, Eustáquio Gomes compôs uma obra em compasso com a própria vida, privilegiando a realidade que o rodeava, o que inclui a cidade que adotou como sua. “Campinas lhe proporcionava um estado de espírito como ele nunca sentiu no Rio de Janeiro, onde morou por alguns anos. Mas essa temática nunca se reduz ao local, que embora constitua elemento essencial na composição literária, faz sempre parte de algo mais amplo, que o transcende para representar, em tons que vão do melancolicamente irônico ao burlesco, uma condição mais universal, em que se jogam questões existenciais e mesmo os sonhos individuais e coletivos (a referência, nesse caso, certamente foi Jung, que Eustáquio leu muito a partir dos anos 90, produzindo relatos de seus próprios sonhos e o livro O Vale de Solombra).”  

Sobre a pessoa de Eustáquio Gomes, o amigo considera que a proverbial afabilidade dele, como parecia natural e espontânea, deixou em muita gente o sentido equivocado de “mineirice”, de “ficar em cima do muro”. “Mesmo entre poetas e prosadores que conviveram com ele, encontrei juízos do tipo ‘ele se dá bem com todo mundo’. A verdade é que, se essa aparente tendência à contemporização constituía uma segunda natureza, o era ao preço de uma grande disciplina, que devia dar conta das mágoas que nele brotavam por conta de tratamentos agressivos, cobranças abusivas e comportamentos semelhantes que ele tinha de suportar a título de ossos do ofício ou de gratuita adversidade.” 

O alívio ou a compensação para essas mágoas, acrescenta Goto, estava em manifestá-las na intimidade, traduzindo-as não raramente em juízos que não podiam evitar a amargura. “Os amigos topavam então com um Eustáquio pessimista, respondendo asperamente às asperezas do mundo, indignado com a injustiça desse mundo, que não retribuía o tratamento que ele lhe dispensava. O fato de esse pessimismo não vazar para seus escritos mais diretamente voltados ao grande público, como as crônicas, apenas reforça sua inclinação à gentileza, à generosidade desse contato respeitoso com os outros. Certamente por considerar que uma crônica não é nem deve ser um espaço para queixas e lamentações pessoais – o que lembra, em termos de postura, um Mozart, cujas alegres cadências não deixam adivinhar a tristeza em que por vezes foram compostas.” 

Lugar de ofício

Alcir Pécora ficou surpreso com a alegria e vitalidade demonstrada por Eustáquio Gomes, quando foi visitá-lo em 15 de janeiro, duas semanas antes de ocorrer o infarto. “Levei um audiobook do Fernando Pessoa, que ele pareceu reconhecer, feliz da vida”, recorda o amigo e professor do Instituto de Estudos da Linguagem. “Conheci Eustáquio, digamos, quando ele fazia seu mestrado no IEL, trabalhando em cima do que chamava de ‘modernistas de província’ e estudou, entre outros, Apolônio Hilst (pai de Hilda Hilst), a quem chamava de ‘o futurista de Jaú’.”

Pécora guarda do primeiro ao último livro de Eustáquio Gomes, mas confessa que inicialmente não prestou muita atenção na literatura dele. “Seus livros estavam voltados ao romanesco, a histórias saborosas, o que não me interessava muito. Passamos a discutir mais regularmente sobre literatura a partir de 2007, quando saiu Viagem ao Centro do Dia – Um Diário, por que ali, de uma vez, percebi o interesse de toda a sua obra. Era um escritor da linhagem dos ‘burocratas líricos’.” 

De acordo com o docente do IEL, um bom exemplo desta linhagem está em O Amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos, sobre um funcionário que passa a vida trabalhando com a escrita, mas escrevendo o que os outros lhe pedem. “Para Eustáquio, escritor-jornalista, a palavra não era apenas o lugar do desejo da imaginação, era também lugar de ofício. Parece-me que ele sentia bastante esse peso da escrita burocrática, que de alguma maneira represava ou impedia a sua escrita livre, como escritor de fato.” 

Alcir Pécora observa, entretanto, que a escrita burocrática contribuía para afiar a qualidade dos escritos de Eustáquio Gomes que, emprestando a pena para assuntos pelos quais tinha pouco ou nenhum interesse, se exercitava em lugares inóspitos e desimportantes. “O fantástico em Viagem ao Centro do Dia é que não traz qualquer acontecimento impactante, o que acentua ainda mais o apuro da forma, o cuidado com a qualidade da escrita. No fundo, não importavam muito os acontecimentos, mais importante era fazer um relato do vazio que está no centro da vida. Quando se termina de ler o diário, mesmo que nada seja dito, aparece diante de si essa mediocridade da existência, sem nenhum tipo de ação épica.” 

Pécora considera que essa atenção para o banal, construída com uma forma apurada, sem excessos e com grande domínio estilístico de seus meios, é um modelo claramente machadiano. “Temos a sintaxe limpa, frases curtas, pouco floreio e um tipo de ceticismo – de que as coisas nunca são muito grandes, que são mais ou menos aquilo. É a visão de uma pessoa experiente, uma visão meio desencantada da vida que se dissipava em pequenos acontecimentos, mas dos quais ele não desdenhava com uma visão superior ou arrogante; ao contrário, encontrava uma forma perfeitamente modesta e justa para encaixar esses acontecimentos.” 

O docente da Unicamp lembra que Eustáquio Gomes adorava ouvir comentários sobre seus livros, sendo capaz de fazer perguntas durante horas, como se a obra não fosse dele. “Dizia a  ele que em sua obra não é a história o que importa, e sim a forma: a forma como conseguia dar uma virada em que esses acontecimentos, que não valem muito neles mesmos, acabam por ser significativos porque mostram o que há de pequeno e precário em todos nós.” 

Pécora enaltece ainda o imenso repertório literário de Eustáquio Gomes, que incluía inúmeros autores desconhecidos de países considerados menores na literatura. “Ele tinha a curiosidade de bibliófilo, colecionava livros e era muito preciso ao descrevê-los. Misturava literatura com acontecimentos do cotidiano o tempo todo. Via não apenas o romance, mas também os eventos secundários da vida dos próprios autores; gostava de contar as histórias dos escritores e viajava para percorrer os mesmos lugares que frequentavam. As cidades que visitou eram todas literárias, imaginárias.” 

Como Eustáquio Gomes dizia sempre que não via a hora de se aposentar para se entregar aos livros, Alcir Pécora ficou interessadíssimo em saber o que o escritor produziria em seguida. “Minha expectativa era grande porque eram grandes os seus planos – ele me enviou um roteiro com os livros preparados ou em preparação, e havia ainda muito mais diários. O AVC foi de uma ironia brutal. Por que esses diários de acontecimentos, sem Eustáquio, não valem nada. São sequências de fatos mais ou menos anódinos, mas que postos na sintaxe perfeita, num discurso absurdamente ajustado à coisa nenhuma, ganham toda a graça. Sem o acabamento dele, aqueles acontecimentos viram meras anotações."

---------------------------------------------------

Uma estranha linhagem

O que primeiro li do escritor e jornalista Eustáquio Gomes (Campo Alegre, MG, 1952) foi a sua bela dissertação sobre o modernismo de província (Os Rapazes d´A Onda e outros rapazes, Campinas, Editora da Unicamp/Pontes, 1992). Ali dá a conhecer, entre outros autores esquecidos dos anos 20, Apolônio Hilst, “o futurista de Jaú”, mítico pai de Hilda Hilst.

Por essa época, Eustáquio era assessor de imprensa da Unicamp, cargo que exerceu de 1982 até a aposentadoria em 2011. A Universidade lhe deve, entre outros bons serviços, a excelente biografia de seu fundador, Zeferino Vaz (O Mandarim: História da Infância da Unicamp, Campinas, Editora da Unicamp, 2006). No Correio Popular, jornal diário de Campinas, Eustáquio produziu perto de 800 crônicas, muito lidas na cidade. 

Nada mais enganoso, porém, que imaginar Eustáquio, à imagem dos rapazes de sua tese, como escritor de província. Sua prosa fina, de longa duração, abrange gêneros muito diversos -- conto, novela, romance, diário, crônica, memória, ensaio etc. Varia tudo, menos o corte elegante, rigoroso.

Os livros foram sendo construídos sem pressa, com regularidade sistemática – e cismática também. A qualidade parece alcançada sem força, por quem semeia confiado em que a semente é boa e a técnica melhor ainda, emulada sem servilismo do melhor viés machadiano: erudição, experiência madura, pensamento moral e cético, vasto domínio do idioma. A elocução é límpida e moderna, amistosa (mas sem adulação) com o leitor, e dura consigo mesmo, o autor, quando a vaidade sorrateira julga vencer o desengano. 

E tudo é dado à luz sem alarde, sem promoção nem autopromoção; sem trajetória estrepitosamente nascida e silenciosamente desaparecida na data do lançamento. Eustáquio nunca é óbvio ou vulgar, pois quando escreve não afeta o que não tem, embora dissimule bastante o que tem ou pode. Há de se falar, com razão, na modéstia pessoal do autor, mas a questão literária é outra: Eustáquio Gomes fez do tom baixo o cerne de sua arte. 

E para esboçar esse cerne, vou me referir a dois livros de gêneros menores, pois neles se realiza não apenas o mais representativo dessa arte, mas também a condição de sua grandeza. 

O primeiro é A biblioteca no Porão. Livros, autores e outros seres imaginários (Campinas, Sete Mares/Papirus, 2009), volume que poderia ser apresentado como uma coleção de crônicas centradas no livro e na leitura, a despeito da tênue ficcionalização em torno do habitante de uma ilha que, com a chegada de mais um morador em sua casa, tem de rearranjar os livros no porão. No entanto, se o ar geral é de crônica, há uma articulação deliberada de gêneros bem diversos: resenhas de livros (recentes ou não, de clássicos ou de autores desconhecidos), notas bibliográficas, fragmentos de diário, memória, autobiografia, anedotas literárias etc.

A julgar pelo subtítulo, o livro poderia fazer parte do fenômeno recorrente do epigonismo Borgiano, que supõe que a fatura literária pode ser atalhada pela notícia ligeira da vida dos autores ou do destino misterioso dos livros. 

A diferença, senão o antídoto a isso, está em que, para Eustáquio, livros e autores não geram apenas mitologia literária, não pingam nos textos como nomes notáveis e nobilitação oportunista. Ao contrário, são parte de um ato de adesão visceral à cultura e, no limite, servem a uma estratégia para dar conta dos baixios de sua condição de homem inapelavelmente comum.

Assim, o que lhe importa ressaltar não são atos patéticos e grandiosos, mas enfeixá-los todos, autores e livros, numa nova ordem nas prateleiras, que, sendo deles, é mais perfeitamente sua. Por exemplo, Eustáquio imagina arranjá-los segundo categorias como livros sempre relidos, legíveis apenas na adolescência, clássicos, leituras de férias, livros eruditos, dados como lidos, sem interesse nenhum de ler, comprados em lançamentos, livros de leitura sempre adiada, livros de coleção, elogiados pela crítica, livros de vitrine...

Sintomaticamente, o último grupo é composto pelos próprios livros, os quais, face ao escrutínio da metaposição, parecem-lhe estranhamente frutos de mão alheia, “produtos talvez do sonho de algum autor com cara de fuinha”. 

O outro livro que gostaria de mencionar representa, a meu ver, o melhor de Eustáquio: Viagem ao centro do dia – Um diário (S. Paulo, A Girafa, 2007), que reúne cadernos de diários redigidos entre 1972 e 2005. Li-o ainda na primeira prova, em dois cartapácios que foram bastante modificados, até a versão final.

Como escrevi então no texto que lhe serviu de orelha, a persona criada pelos diários de Eustáquio se filia à linhagem dos burocratas líricos. No Brasil, o amanuense Belmiro é o seu êmulo recalcado. Na literatura mundial, sem querer comparar tamanhos, mas espíritos, a prosápia tem personagens como K., Akaki Akakievitch, Bouvard e Pécuchet, Simon Tanner, Bernardo Soares e, ainda mais diretamente, Bartleby, que não é apenas um pequeno funcionário, da classe dos hipocondríacos, mas também um funcionário da escrita.

E o drama secreto do escritor-funcionário reside no desajuste entre, de um lado, o ofício escriturário que o obriga a mover a pena ao sabor da vontade dos superiores ou das regras do controle burocrático, e, de outro lado, um imprevisto de temperamento que teima em não renunciar à potência de uma escrita própria, ainda que cunhada na forja de uma existência anódina.

Os diários são o lugar exato de inscrição desse desajuste. Por isso, são também a aposta mais alta de sua pena: a de que, à roda da insignificância da vida, a escrita gire sobre si mesma, de um só golpe, reinventada pelo exercício de seu próprio desengano, e então se revele extraordinária e única. 

Extraordinária e única, digo, mas não porque opere um milagre de transfiguração da vida miúda em sublime, mas sim porque lhe descobre uma Forma – aquela, exata, que captura com perfeito estilo o esvaziamento medíocre.

Nada de mais ou de menos pode ser exigido de uma literatura de verdade

------------------------------------------------------

Este artigo foi publicado na última  edição da revista Cult