Edição nº 588

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 24 de fevereiro de 2014 a 09 de março de 2014 – ANO 2014 – Nº 588

‘Sob uma luz mais crua’, o cruzamento de códigos


O escritor e jornalista Eustáquio Gomes, que estruturou e coordenou a área de comunicação da Unicamp a partir de 1982, faleceu no dia 31 de janeiro vítima de infarto em sua residência, em Campinas. Na comunidade universitária, a sua ausência já era sentida desde junho de 2010, quando sofreu um acidente vascular cerebral também em casa, no escritório onde se debruçava sobre seus livros e dos outros. “Ironia cruel”, lamenta o professor Alcir Pécora, pois o AVC se deu justamente no dia em que o jornalista entregaria os papéis da aposentadoria para se dedicar integralmente aos planos de escritor. No tocante à sua trajetória profissional, o reconhecimento veio em dezembro de 2012, com o título de Servidor Emérito da Universidade, honraria antes concedida a apenas dois funcionários.

No epílogo de O Mandarim: História da Infância da Unicamp, Eustáquio Gomes observa: “Este relato cuida apenas dos primeiros quinze anos de uma escola brasileira que ainda nem completou seu meio século. Não vivi pessoalmente o período que escolhi narrar, salvo sua página final, que justamente marca minha entrada neste mundo peculiar de matemáticos e artistas, físicos e filósofos, engenheiros e cientistas sociais, químicos e linguistas, biólogos e teóricos da literatura, economistas e médicos, educadores e geólogos, dentistas, informatas e tecnólogos. Logo compreendi de onde vinha seu fascínio: do variado e incessante cruzamento de códigos. Em tal mundo poder-se-ia reclamar de muita coisa, menos de monotonia”.

O jornalista Eustáquio Gomes conviveu com nove reitores da Unicamp em 28 anos de assessoria, sendo que ouvimos seis deles: Carlos Vogt (1990-1994), José Martins Filho (1994-1998), Hermano Tavares (1998-2002), Carlos Henrique de Brito Cruz (2002-2005), José Tadeu Jorge (2005-2009, reeleito para o período 2013-2017) e Fernando Costa (2009-2013). A propósito deste período, é assim que termina o epílogo: “Dessa parte da história, por tê-la vivido pessoalmente, tenho uma visão distinta. Fui testemunha ocular de muitos de seus fatos e a estes vejo sob uma luz mais crua, em todo caso mais verdadeira. O certo é que nunca o fascínio desse mundo peculiar me abandonou. Sempre soube que uma vida mais rica flui por baixo do registro institucional. Às vezes me perguntam se darei continuidade a esse relato. Quem sabe, um dia, como matéria de memória”.

Carlos Vogt tem na memória quando conheceu Eustáquio Gomes, na época do processo de institucionalização da Unicamp, que levaria à criação do Conselho Universitário (Consu) e à elaboração do estatuto da Universidade. “[José Aristodemo] Pinotti era o reitor e eu representante de professores no então Conselho Diretor. Estávamos nos primórdios do amadurecimento da Universidade, que vinha de um processo extremamente criativo, com algumas crises, e fechava seu ciclo da adolescência. Fui vice-reitor na gestão de Paulo Renato [Souza] e depois reitor. E nossos laços de cooperação se reforçaram, tanto por propósitos comuns do ponto de vista profissional, como por interesses intelectuais voltados à literatura.”

Vogt também guarda na memória um evento curioso, na sua época de reitor, quando Eustáquio Gomes idealizou “A cápsula do tempo” – uma urna contendo cartas endereçadas ao futuro, fitas cassetes com imagens e documentos institucionais. Lacrada e enterrada no terreno da Biblioteca Central em 5 de outubro de 1991, a urna só deverá ser aberta no mesmo dia e mês de 2066, no centenário da Unicamp. “Todos nós colocamos mensagens na cápsula. Uma das características do Eustáquio era esse dom de artista (ou escritor) de intervir no processo institucional de maneira criativa e interessante – e, no caso, envolvendo aspectos lúdicos como o tempo, a mensagem, a expectativa.”

“A cápsula do tempo” rendeu uma crônica publicada no Jornal da Unicamp (edição 339) em que Eustáquio Gomes viaja até 2066 para reportar a cerimônia de “exumação” da urna, quando o reitor do futuro, ao invés de discursar, lê: “Esta urna viajou três quartos de século para chegar até nós, para nos trazer, do imaginário daqueles que nos precederam, alguma coisa dos sonhos do mais turbulento dos séculos. Agora que menos de três décadas e meia nos separam do fim de um outro século, é instrutivo refletir sobre o que esperavam de nós aqueles homens e aquelas mulheres do século da bomba, dos Beatles, do cinema, da televisão e dos primórdios da rede mundial de computadores, que nessa época ainda era chamada de internet”. Era um trecho da mensagem de “um certo Sidraque Matias, jornalista que esteve a serviço da universidade entre 1982 e 2010”.  

Carlos Vogt observa que Eustáquio Gomes deixou de ser assessor de imprensa da Unicamp apenas porque quis, ao ver a equipe montada e decidido a se dedicar mais a escrever. “Bom mineiro que ele era, foi desenvolvendo a capacidade inata de lidar com as mais diferentes situações, mesmo as adversas, para desenvolver seu trabalho. E, exatamente no dia em que assinaria a aposentadoria, teve o AVC, com as consequências que o impossibilitaram para a vida intelectual. Permaneceu entre nós mais um tempo, de maneira muito afetiva. Foi uma perda grande.”

José Martins Filho, que sucedeu Vogt na Reitoria, afirma que Eustáquio Gomes foi um exemplo de funcionário que amava a Unicamp acima de seus próprios interesses, dedicando à Universidade muito da sua competência como jornalista e escritor. “Ele tinha um texto forte, enxuto e objetivo. Esteve presente em todo meu tempo de vice e de reitor. Quando eu queria escrever sobre a Universidade, passava minhas ideias e propósitos a ele, que voltava uma ou duas horas depois com um texto praticamente perfeito, que apenas burilávamos juntos. Era incrível como conseguia captar o objetivo do artigo numa só conversa. A Unicamp precisa de mais Eustáquios. Pena que ele partiu e nos deixou na saudade.” 

Hermano Tavares lembra-se de ter conhecido Eustáquio Gomes desde a chegada dele para estruturar a área de comunicação da Universidade, passando a admirar seu trabalho profissional. “Era um profissional de altíssima qualidade, mas eu confesso, com todas as letras, que gostava muito do trabalho dele como escritor. Gosto bastante de A Febre Amorosa e também de O Mapa da Austrália. Acho que era um escritor de mão cheia. Quando cheguei à Reitoria, ele estava engajado no projeto de O Mandarim e pediu que o liberasse para se dedicar ao livro, com o que concordei.”

Para Carlos Henrique de Brito Cruz, Eustáquio Gomes traduziu em belíssimos textos o seu amor por Campinas e pela Unicamp, e como assessor de comunicação interagiu com toda a comunidade universitária, sendo reconhecido pelo profissionalismo, simpatia e determinação. “Seu trabalho foi fundamental para definir o relacionamento da Unicamp com a mídia e com o público, desde que liderou a implantação da Assessoria de Comunicação, em 1982. Comunicação tão bem sucedida que, em outras universidades, muitos de nós ouvíamos de colegas um pouco invejosos: ‘Como a Unicamp aparece tanto e tão bem na mídia?’. Intimamente pensávamos: ‘Porque a Unicamp é boa, e porque tem o Eustáquio’.”

Brito Cruz também enaltece o conhecimento que Eustáquio Gomes possuía da história da Universidade, sempre determinante em seus escritos. “Ele pesquisou cuidadosamente por anos sobre a gestão de Zeferino Vaz e acompanhou de perto todas as outras administrações. Conhecia os ‘causos’, os alinhamentos políticos, as disputas, as anedotas. Como professor, diretor de unidade e reitor, eu tive o privilégio de conviver intensamente com Eustáquio, de aprender com suas histórias sobre a formação da Unicamp e de me beneficiar com sua sabedoria e visão do mundo.”

Fernando Costa, por sua vez, coloca Eustáquio Gomes entre os servidores mais dedicados e comprometidos com a Unicamp, e que soube, em 28 anos de trajetória, aliar a admirável capacidade intelectual ao espírito de serviço, com plena fidelidade à instituição. “Destaco ainda a integridade, a dedicação e a honestidade como características marcantes de sua personalidade, e que extrapolaram em muito as tarefas diretamente ligadas à área de comunicação. Durante minha atividade administrativa na Universidade tive o privilégio de conviver intensamente com Eustáquio, um grande amigo pessoal. Seu exemplo nos ensinou um pouco mais sobre o significado de um trabalho não apenas sério e responsável, mas também criativo e talentoso, que vai além da mera obrigação profissional.”

O reitor José Tadeu Jorge encerra esta série de depoimentos em tom confidencial, afirmando que sua relação de amizade com Eustáquio Gomes sempre foi mais importante do que a convivência institucional. “Eram longas conversas sobre os mais variados assuntos, quase sempre no final da tarde, quando as agendas nos davam uma trégua ocasional. O tema Unicamp sempre aparecia, mas logo derivava para política, literatura, futebol e tantas outras coisas. Era comum presentearmo-nos com livros. Sim, eu cometi várias vezes essa imprudência, oferecendo livros que, achava, ele gostaria. Acho que em algumas escolhas, acertei; em outras, com muita elegância e propriedade, ouvia sua análise crítica sobre estilo e conteúdo. No caminho inverso, sempre acertos. Desde um livro sobre a obra de Van Gogh, passando por Mario Vargas Llosa e chegando a J. M. Coetzee. Ao me entregar um exemplar de Desonra, explicou: um autor difícil, mas genial, você vai gostar. Adorei! E a partir daquele li outras cinco obras do Prêmio Nobel de Literatura 2003.”

Tadeu Jorge recebeu os livros de Eustáquio Gomes do próprio, lendo todos, e tem como maior orgulho a dedicatória que ele escreveu em O Mapa da Austrália, chamando-o de “irmão”. “É possível conhecer Eustáquio Gomes lendo seus livros e crônicas. Mas, onde se revela mesmo a pessoa que era é em Viagem ao Centro do Dia – Um diário. Suas preocupações, alegrias, decepções, ideais e mensagens de vida ali estão com o texto característico do brilhante contador de histórias, utilizado para contar a sua própria e real caminhada. Quem quiser conhecê-lo, leia!”.

Continua na página 6

Comentários

Comentário: 

Eustáquio fez e sempre fará parte daquele grupo de pessoas que possuem brilho próprio e que optaram por serem protagonistas de suas próprias vidas. Isto ele fez de maneira brilhante. Um brasileiro de quem podemos nos orgulhar.

sandraer@unicamp.br

Comentário: 

Conheci Eustáquio apenas como aluno. Em 2006 realizamos (um grupo de 4 estudantes) um documentário sobre a primeira semana de ingresso dos calouros, e aproveitamos para realizar uma breve entrevista com o reitor Tadeu. Apesar da abordagem não agendada, ele foi solícito e deixou o reitor bastante à vontade para falar conosco; de longe, me fez algumas perguntas sobre o projeto e pareceu até interessado. Tive assim uma ótima impressão de sua humanidade e compreensão, pois em outras oportunidades, outros assessores teriam barrado nossa entrevista e nem se importariam com o projeto. Percebi também que sua personalidade era muito afim à do reitor Tadeu; ambos abertos ao diálogo respeitoso com a comunidade acadêmica, compreendendo que não há hierarquia que não possa ser superada pelo diálogo franco e amistoso. Saudades desse homem que conheci apenas brevemente, mas que no pouco tempo demonstrou tantas qualidades!

ultima.reis@gmail.com

Comentário: 

Eustáquio foi uma daquelas pessoas que não contente em viver e passar pela vida dos outros, ainda se fez personagem da vida e da historia de todos com quem se encontrou. Fosse através da troca de correspondências, fosse através de suas crônicas ou dos longos papos sobre assuntos tão diversos. Como todo personagem de um livro clássico. É imortal e vive na memória e na história de todos que o leram, leem e lerão.

danuzio@reitoria.unicamp.br

Comentário: 

Lamentavelmente, não conheci Eustáquio Gomes pessoalmente. Tive contato com ele quando, em 1992, lançou o seu ensaio "Os Rapazes d´A Onda e Outros Rapazes".
Havia algumas arestas a aparar, na parte que cabia aos dados biográficos do poeta Rodrigues de Abreu, do qual sou seu biógrafo.
Recebi, dele, uma cópia do referido trabalho e suas considerações e agradecimentos pela minha interveniência.
Depois, só o acompanhei pelas suas crônicas e artigos, bem como a História da Unicamp.
Campinas, a comunidade acadêmica da Unicamp, bem como amigos e admiradores perderam uma fantástica pessoal, carismática, preocupada com as coisas e pelo seu grande amor à família e a todos.
Acho que não se foi. Apenas se ausentou, como diria Guimarães Rosa.

guedes.idt@terra.com.br