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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 28 de abril de 2014 a 11 de maio de 2014 – ANO 2014 – Nº 595Mistura fina
A composição Espírito infantil, de Mú Carvalho, do grupo A Cor do Som, foi classificada em 5º lugar no Festival Nacional do Choro, em 1977. Instrumentos elétricos foram usados na interpretação tradicionalmente acústica do chorinho. Anos antes, o gênero musical que consagrou Pixinguinha já estava aberto às influências do jazz e, tempos depois, continuaria recebendo várias releituras, aconchegando-se nos braços do samba, da música erudita, do rock e, mais tarde, da música eletrônica.
Foi na década de 1990 que eclodiu o chamado “novo choro”, com grupos que levaram a cabo todas aquelas propostas e, mais ainda, se aventuraram no instrumental e no repertório, alargando as fronteiras e flexibilizando ainda mais o gênero. A pianista Sheila Zagury catalogou 16 grupos cariocas para sua tese de doutorado na Unicamp. A pesquisa concentrou-se em quatro deles, os mais longevos e com maior discografia: Rabo de Lagartixa, Tira Poeira, Trio Madeira Brasil e Água de Moringa.
“Os grupos que seguem essa linha procuram mudanças no fazer musical do choro, fugindo da formação considerada tradicional dos conjuntos. Também apresentam mudanças de como observam o repertório”, diz a autora. Sheila, que se dedicava então mais ao jazz e à bossa-nova, se aproximou do gênero quando viu o cenário do jazz fragilizado nesta época no Rio de Janeiro, com várias casas sendo fechadas, enquanto o choro estava em ascensão, junto com o samba. Formou já na época uma parceria com Daniela Spielman, integrante do Rabo de Lagartixa e, por essa razão, acabou também inserida na geração que estuda.
A pesquisadora selecionou 12 discos dos quatro grupos, para dois tipos de análise: a apreciação, que é um pouco menos aprofundada, e a análise comparativa de oito obras, realizada a partir dos arranjos originais, que são os mais antigos que ela conseguiu acessar. “Procurei abordar as mudanças que os novos arranjos propunham em relação aos originais”.
Uma das obras selecionadas do Água de Moringa, por exemplo, foi Sensível, de Pixinguinha. O arranjo que ela considerou original, nesse caso, foi uma gravação dos anos 1970, do conjunto Época de Ouro. Os estudos levaram em conta aspectos de forma musical e rítmica, harmônicos e de textura.
Transgressão
Trocar peças de lugar, brincar com as tonalidades, experimentar com total liberdade. Sheila observou que, em algumas obras, são incluídos grandes trechos como uma introdução longa, que não pertencia à obra original. Às vezes ocorre o oposto, grandes trechos são suprimidos. “Uma característica do choro é uma forma fixa de fazer uma grande seção da música depois repeti-la, e voltar para a primeira seção, passar ou não por uma terceira seção, e assim por diante, sempre repetindo. Em alguns arranjos, os grupos pesquisados suprimiam uma dessas partes ou incluíam grandes introduções ou um interlúdio”.
Outras mudanças constatadas pela autora foram no acento rítmico, gerando outro compasso na música e na busca de texturas pouco usuais ao universo do choro, utilizando, por exemplo, um pedal de guitarra elétrica com sonoridade baiana para o bandolim, como faz o grupo Tira-Poeira. “Quando ouvimos uma obra de choro, normalmente, há um instrumento solista executando a melodia principal. Ele tem a tessitura mais aguda. Pode ser um bandolim, uma flauta, um saxofone soprano ou um clarinete. Nesse caso, os grupos podem propor que o instrumento solista faça a voz de acompanhamento”.
Os grupos estudados propuseram às obras que arranjaram várias formas de rearmonização, como por exemplo, o uso de recursos como nota-pedal, acréscimos e substituições de acordes que não compõem a harmonia das músicas. “Trechos com modulações inesperadas”, explica a autora. Ela cita o arranjo para Batuque, de Ernesto Nazareth, feito pelo Água de Moringa, que traz uma dessas modulações entre um de seus grandes trechos musicais.
Em Arrasta-pé, música de Waldir Azevedo gravada pelo grupo Rabo de Lagartixa, um contrabaixo acústico assume a melodia principal. Nesta mesma obra, a doutoranda chama a atenção para a ambientação sonora que também aparece nos trabalhos dos grupos pesquisados. “A música começa com som de mata e, aí, aparece o solo de contrabaixo”. O arranjo de The Easy Winners, de Scott Joplin, com o Trio Madeira Brasil, recebe sons de um tiroteio de western.
A aproximação com o universo da música erudita é outra característica muito forte dos grupos de choro estudados por Sheila. A Lenda do Caboclo, de Villa-Lobos, é uma das composições estudadas, em arranjo do Rabo de Lagartixa. É um exemplo de ampliação do repertório. Já o que o Trio Madeira Brasil faz com Assanhado, de Jacob do Bandolim, são mudanças de andamento, ou velocidade de trechos da música, com acompanhamento mais denso. Estratégias que, segundo Sheila, remetem ao politonalismo proposto pelo compositor erudito Igor Fiodorovitch Stravinsky. “No choro que estudei é um pouco mais simples, com dois acordes sobrepostos, gerando poliacordes. Esse procedimento aproxima o arranjo com o politonalismo”, complementa.
Gerações
A experimentação dos grupos de choro da década de 1990 foi resultado de um encontro de gerações e propostas de trabalho. “Havia uma grande mistura dentro dos grupos. Eram universitários, estudantes de música e músicos que já atuavam no cenário do choro”. O Trio Madeira Brasil é um exemplo dessa formação. “Ronaldo do Bandolim já era um chorão muito famoso no Rio quando conheceu o Marcello Gonçalves e o José Paulo Becker, que eram bem mais novos. Quem fez o convite para formar o conjunto foi o Ronaldo, porque ele tinha a intenção de propor novas leituras de Ernesto Nazareth, fugindo um pouco do que o Jacob do Bandolim fazia”. O grupo Água de Moringa nasceu na universidade, onde um grupo de alunos de uma mesma disciplina decidiu se juntar.
Mas isso não quer dizer que tudo começou com os grupos da década de 1990, relembra Sheila. “Os artistas somente deram continuidade às transformações que começaram muito antes, na década de 1950, com músicos como Severino Araújo e K-Ximbinho, aproximando o choro do jazz, os anos 1970 com Mú Carvalho e A Cor do Som, sem esquecer o conjunto Nó em Pingo d’Água e Radamés Gnatalli”.
A certa altura, a doutoranda questionou-se sobre a possibilidade de que as fronteiras, de tão elásticas, já tivessem se rompido e se os grupos estudados não seriam mais de fato grupos de choro. “A questão é refletir sobre o que está na nossa representação como conjunto de choro. Eu os considero sim, porque trazem elementos identificáveis à maioria dos grupos, entre os quais o violão de sete cordas, o bandolim ou cavaquinho, a maneira como tocam e como trazem o repertório do choro dentro da prática musical de cada um”.
Sheila salienta a importância de movimentos de ruptura e novas escolhas estéticas nas artes. “O diálogo entre todas essas mentes, este amálgama, trouxe para o choro a possibilidade de fazê-lo ou não. Hoje há grupos mais tradicionais e outros que seguem uma linha de experimentação. Alguns transitam pelos vários caminhos.”
Publicação
Tese: “Os grupos de choro dos anos 90 no Rio de Janeiro; suas releituras dos grandes clássicos e inter-relações entre gêneros musicais”
Autora: Sheila Zagury
Orientação: Rafael dos Santos
Unidade: Instituto de Artes (IA)