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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 28 de abril de 2014 a 11 de maio de 2014 – ANO 2014 – Nº 595Sinceridade, a missão
Estudo mostra as intersecções entre história, ficção e críticaliterária nas obras de Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda
A sinceridade como missão do escritor brasileiro, pregada na crítica literária tanto de Mário de Andrade como de Sérgio Buarque de Holanda, é um ponto central da tese de doutorado de Ricardo Gaiotto de Moraes, defendida sob a orientação do professor Antonio Arnoni Prado no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). Ao comparar o trabalho de ambos os autores, a tese detalha outros temas comuns, como a apropriação das tendências da vanguarda histórica, as intersecções entre história, ficção e crítica literária, bem como a comparação com a crítica de língua inglesa. Segundo o autor, a pesquisa apresenta um recorte inédito por historiar, no campo da crítica literária, a ação de dois escritores fundamentais na compreensão do que viria a ser a literatura brasileira.
"No mestrado estudei uma coluna assinada por Mário de Andrade, ‘Vida Literária’, publicada no Diário de Notícias do Rio de Janeiro, e notei uma faceta que apenas intuía: a sua ideia de que o escritor deve ser honesto, precisando passar por um treino técnico na literatura (que chama de artesanato); e que só a partir deste treino, na base da tentativa, da imitação dos poetas da tradição e do conhecimento das vanguardas, o intelectual poderia desenvolver uma técnica pessoal. Nesse sentido, Mário de Andrade é contrário a qualquer tipo de imitação que não seja apropriação, e contrário também à literatura voltada exclusivamente ao mercado. A sinceridade é a grande ideia defendida”, explica Ricardo Gaiotto.
Segundo o autor da tese, Sérgio Buarque de Holanda é quem sucede Mário de Andrade na Vida Literária, acentuando trajetórias semelhantes: o primeiro já morava no Rio e era professor de história e de literatura comparada na extinta Universidade do Distrito Federal, enquanto o segundo, depois de deixar o Departamento de Cultura de São Paulo, tinha assumido como professor de filosofia e história da arte na mesma instituição. “Já nos primeiros artigos da coluna, Sérgio Buarque afirma que o poeta e o crítico se encontram em Mário de Andrade, que tem o grande mérito de não possuir um método pretensamente científico para a sua crítica – os métodos de análise racionais e formalistas de então – e sim uma intuição de poeta. E que isso o tornava sincero. Portanto, a questão da sinceridade é muito importante também para Sérgio Buarque.”
A pesquisa de Ricardo Gaiotto abrange dos anos 1920 até 1945 (ano da morte de Mário de Andrade), período em que observa a intersecção entre os textos de crítica literária dos dois autores. “Desde que comecei a estudar Mário de Andrade, vi um autor preocupado em realizar uma pesquisa honesta na literatura. E me interessou especialmente que, tanto na crítica como na ficção, ele também comentasse o próprio trabalho. Ao pesquisar seu arquivo no IEB [Instituto de Estudos Brasileiros] pude perceber uma organização temática, como se tivesse mapeado os passos da sua constituição intelectual. Ele permite ao pesquisador trilhar estas pistas e avaliar a dimensão dos seus estudos, que é um pouco assustador, do meu ponto de vista.”
Já Sérgio Buarque de Holanda iniciou-se como crítico literário aos 17 anos de idade, colocando ao pesquisador a dificuldade de que, diante da opção pelo recorte cronológico, tivesse que trabalhar com críticas situadas em momentos diferentes. “Mário de Andrade era quase 10 anos mais velho e Sérgio Buarque um jovem empolgado, já revelando traços do que iria ser produzido a partir da Semana de Arte Moderna; mas consciente ao adotar uma linguagem cautelosa para mostrar ao público que conhecia a tradição da literatura brasileira e podia discutir em pé de igualdade com a produção do começo do século 20.”
New Criticism
Ao buscar critérios e temas comuns na crítica de um autor e de outro, Ricardo Gaiotto identificou que a primeira semelhança está na defesa da originalidade literária, em certo reconhecimento de que no Brasil não se fazia uma literatura sincera, que se seguiam receitas vindas de fora. “Quando Sérgio Buarque assumiu a coluna ‘Vila Literária’, por volta de 1940, já estava em voga o New Criticism [movimento da teoria literária surgido nos EUA que propõe a separação do texto e do autor, a fim de que o texto seja objeto em si mesmo]. Ele escreve que viajou aos Estados Unidos em 1941, comprando vários livros de autores do New Criticism, e que o movimento teria alimentado a sua crítica, ainda que não tenha se tornado um seguidor daquelas estratégias.”
O objetivo de incluir na tese uma comparação com a crítica em língua inglesa justificou o pedido de extensão da bolsa de doutorado à Fapesp, visando pesquisar em Princeton como o New Criticism influenciou o trabalho de Sérgio Buarque de Holanda. “Constatei que os textos fundadores do movimento pregam que o crítico, antes de qualquer prejulgamento sobre uma obra, deve ir diretamente ao texto e, a partir de suas estruturas internas, julgá-lo. O princípio é bastante parecido com os comentários de Mário de Andrade e Sérgio Buarque sobre a crítica que eles próprios fazem, com a diferença de que para ambos não se aplica a tese do New Criticism de que os contextos históricos e sociais não são objetos da crítica literária.”
O autor da pesquisa ressalta, entretanto, que a ideia de que o texto deve ser tratado sem prejulgamentos é semelhante entre os críticos brasileiros e os autores do movimento americano, a exemplo do que afirma John Crowe Ransom. “Eles discutem as obras de Richards (inglês) e T. S. Eliot (anglo-americano), grandes inspiradores desta prática crítica. T. S. Eliot trata justamente da tradição literária e de como ela se reorganiza quando surge um novo texto literário de valor: é como uma nebulosa de textos da tradição que vai se reajustando, de maneira que uma obra literária do passado sempre pode ser lida no presente como algo novo, pois vai se ressignificando conforme o tempo passa.”
De acordo com Ricardo Gaiotto, Sérgio Buarque recorre à imagem bem parecida ao afirmar que a função da crítica literária é de dilatar as obras no tempo, tanto as do passado como as do presente. “Ocorre que ele defende uma noção de tradição da própria literatura brasileira, que por sua vez se encaixa na literatura mundial.”
Na visão de Mário de Andrade, acrescenta o autor da tese, se o poeta deve criar a partir de suas tendências naturais (ou espirituais), o crítico deve seguir a sua intuição. “Tal como Sérgio Buarque, Mário faz uma aproximação entre a linguagem da crítica e a linguagem poética – descrição e intuição. Ambos os autores seguem caminhos paralelos, aplicando às suas críticas a noção de sinceridade, e foi sob esse aspecto que procurei compará-las com a crítica em língua inglesa. Quis rastrear como se dá esse start, de onde vem esta perspectiva de análise, sempre considerando que os dois não copiam uma fórmula de julgamento de europeus ou americanos, mas se apropriam delas a partir de vários intertextos.”
Relação pessoal
Sobre o relacionamento pessoal entre Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda, Gaiotto informa que ele está documentado na correspondência trocada por ambos e que foi organizada pelo professor Pedro Meira Monteiro, seu supervisor nos EUA. “Conta-se que eles se conheceram quando Mário tinha acabado de escrever Pauliceia Desvairada, e Sérgio Buarque teria gostado muito do que presenciou. Também foi nesta época que o então jovem crítico literário tomou contato com os intelectuais que organizariam a Semana de Arte Moderna.”
O pesquisador afirma que a troca de cartas começou quando Sérgio Buarque se tornou correspondente da Klaxon – revista mensal de arte moderna que circulou em São Paulo de maio de 1922 a janeiro de 1923 e na qual colaboravam artistas e escritores como Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Graça Aranha. “Sérgio Buarque é quem passa a dar notícias sobre a repercussão da Klaxon no Rio de Janeiro e, certa feita, pediu que Mário de Andrade escrevesse uma crítica ao seu trabalho, elegendo-o, ao lado de Tristão de Ataíde, como os únicos que poderiam entendê-lo. O artigo nunca foi escrito.”
Houve o momento em que Sérgio Buarque rompeu com os outros modernistas, mas manteve uma relação ambígua com Mário de Andrade, como lembra o autor da tese. “Para ele, tudo o que Mário faz é sempre admirável, afora a crença na construção de uma cultura brasileira. Esta opinião é relevada pelo outro e atribuída ao espírito de um crítico jovem demais – mas que parece tornar-se um peso para Mário de Andrade nos anos 40, ao ser tomado pela angústia de considerar seu projeto fracassado, ainda que tenha reformulado a crítica literária. E é a partir dos 40 que se vê uma mudança interessante: se no início o autor de Macunaíma tratava o outro como ‘esse menino’, passou a tê-lo com um consultor para assuntos históricos.”
Apesar de mantida a troca de cartas, Ricardo Gaiotto atenta para a maior distância entre ambos do ponto de vista intelectual, com Sérgio Buarque rumando para a história e publicando na ‘Vida Literária’ resenhas de livros de outros domínios, como os de Gilberto Freyre. “Se Mário de Andrade era destaque no momento da Semana de Arte Moderna, as posições então se equiparam, com Sérgio Buarque se tornando reconhecido como historiador. Contudo, Raízes do Brasil talvez tenha a ver com a posição favorável do autor à sinceridade na literatura, sinceridade que entendia como um sentimento autêntico que pudesse se desenvolver livremente, a partir de uma raiz.”
Publicação
Tese: “Críticas Cruzadas: Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda”
Autor: Ricardo Gaiotto de Moraes
Orientador: Antonio Arnoni Prado
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)