Edição nº 597

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 19 de maio de 2014 a 25 de maio de 2014 – ANO 2014 – Nº 597

Da autenticidade em filosofia


Um livro que vale por dois. Corpo e pensamento é o título escolhido por Cíntia Vieira da Silva para uma pesquisa de fôlego sobre essa relação tão complexa entre o que certa tradição postula como essencialmente independentes no ser humano: por um lado, nosso corpo orgânico em sua interação com o meio, por outro, nossa racionalidade como que aprisionada nesse corpo, sofrendo com suas necessidades e suas paixões, mas dotada do poder de liberar-se dessas interferências como meio para planar suavemente sobre a vida. Não é disso que se trata nesse livro. Antes, as alianças que a autora busca são aquelas em que se constrói outra imagem para essa relação entre corpo e pensamento, em que ambos são a expressão de um mesmo movimento vital, são maneiras integradas de viver a experiência de estar no mundo, afetando-o e sendo afetado por ele, produzindo ideias que procuram dar conta, nem sempre de maneira adequada, dessa quase sempre ínfima parcela de mundo com a qual estabelecemos relação, mas que possui em si infinitas possibilidades.

Os filósofos privilegiados são Deleuze e Espinosa, e o que explicitamente se propõe é a exploração das alianças conceituais “entre” eles. Ora, é exatamente o modo como a autora leva a cabo essa proposta que faz desse trabalho algo tão incomum e provocador. A filosofia de Espinosa exerceu uma influência incontestável no trabalho filosófico de Deleuze, que sobre ele escreveu dois livros, além de inúmeros outros comentários cruciais. No entanto, Cíntia recusa tratar esses dois pensadores em termos de filiação, assim como dá menos importância para a análise da interpretação que Deleuze faz da filosofia espinosana, do que para o uso que faz dela na criação de seu próprio plano conceitual de imanência (ainda que Deleuze reconheça, em O que é a filosofia?, que apenas Espinosa foi capaz de pensar o plano de imanência, ao invés de apenas mostrar que ele está, impensado em cada plano: Espinosa era “quem sabia plenamente que a imanência não pertence senão a si mesma” e nela encontrou a liberdade ao dar ao pensamento “velocidades infinitas”). Por isso, interessa muito mais à autora descrever os desenvolvimentos dos conceitos de corpo sem órgãos e de hecceidade, do que, por exemplo, a interpretação deleuziana dos modos finitos em Espinosa e o problema da expressão.

Por isso, começamos dizendo que o livro vale por dois, porque na passagem do segundo para o terceiro capítulo e no início deste algo excepcional acontece que diz respeito à exploração dessa aliança. A análise vigorosa do plano de imanência da filosofia da diferença, em que o conceito de corpo sem órgãos é minuciosamente descrito, a partir de muitos dos elementos-conceitos que o constituem, tendo como horizonte a obra completa de Deleuze, vai cedendo passagem vagarosamente à exploração das páginas da Ética de Espinosa. Assim, Corpo e pensamento conduz o leitor à exploração desses dois grandes filósofos com o mesmo grau de excelência e de rigor, fazendo com que ambos coabitem o mesmo campo de problematização que é proposto por Cíntia, a saber, de que maneira pode se produzir em nós o pensamento a partir da multiplicidade de encontros ou afectos com os quais estamos destinados a lidar e que constituem, para cada um, o que se pode chamar uma vida. Não se trata, é claro, do pensar ordinário, mas daquele que nos chega “quando experimentamos um tal sentir que desorganiza nossas faculdades” e “nos arrasta num exercício de despersonalização”, nas palavras de Cíntia, após convidar Clarice Lispector a fazer parte desse concerto que rege.

Haveria ainda muitos pontos a destacar nesse livro, por exemplo, a presença de subdivisões nos capítulos que facilitam muito a leitura para quem está menos acostumado com trabalhos acadêmicos, o sem-número de referências bibliográficas que devem auxiliar outros pesquisadores que queiram se aprofundar nos temas, o estilo muito pessoal da escrita. Mas talvez nada seja tão importante quanto o fato de estarmos diante de um trabalho autoral, algo menos comum do que se imagina, em que os problemas levantados, os sentidos formulados, dizem respeito àquilo que se pode chamar de “autenticidade” em filosofia: a abertura para a alteridade e a construção da liberdade. Um livro, de fato, que vale por muitos.

 


Sandro Kobol Fornazari é professor adjunto do departamento de Filosofia da Unifesp.


Serviço

Obra: Corpo e pensamento - Alianças conceituais entre Deleuze e Espinosa
Autora: Cíntia Vieira da Silva
Páginas: 336 páginas
Área de interesse: Filosofia
Preço: R$ 56,00
Editora Unicamp