Unicamp
Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 23 de maio de 2014 a 01 de junho de 2014 – ANO 2014 – Nº 598Vozes imaginadas
Noite de gala na Casa da Ópera de Manuel Luís, Rio de Janeiro, teatro em atividade entre os poucos existentes no Brasil no período colonial. A plateia espera para assistir La modista raggiratrice de Giovanni Paisiello, ópera cômica que traz no papel principal a cantora lírica Joaquina Maria da Conceição da Lapa, a Joaquina Lapinha, como é conhecida. Além dela, apresentam-se Francisca e Maria Candida, de quem hoje, três séculos depois, ainda nada se sabe. A não ser que eram sopranos e que, assim como Lapinha, possivelmente aprenderam as técnicas do bel canto italiano com os castrados portugueses e que, sobretudo, desapareceram do cenário artístico colonial antes do fim da segunda década do século 19.
Especula-se que eram mulatas libertas. Certamente atrizes no período em que a mulher não podia estar no teatro sob a suspeita de ser confundida com meretriz. Considerando-se a escassez de fontes primárias de características biográficas, a atuação dessas personagens no ambiente lírico-musical carioca do Brasil Colônia pode ser resgatada por meio do repertório que executaram. Suas vozes nunca foram ouvidas, mas imaginadas por Alexandra van Leeuwen, a pesquisadora da Unicamp que buscou, em Portugal, os manuscritos da representação colonial da ópera e os analisou com o objetivo de entender como as intérpretes transformavam a obra, imprimindo uma versão única bem mais elaborada tecnicamente.
Alexandra já havia “descoberto” Lapinha em sua dissertação de mestrado, quando estudou o repertório do padre José Maurício Nunes Garcia, compositor de destaque no período colonial, dedicado à cantora e atriz. Na época ela teve contato com os manuscritos de música dramática luso-brasileira de propriedade da Biblioteca do Paço Ducal de Vila Viçosa, na região do Alentejo, em Portugal. A pesquisadora buscava um espólio da intérprete, mas acabou identificando um material bem mais extenso, relacionado ao teatro carioca em atividade entre os fins do século 18 e início do 19.
O trabalho de identificação das fontes foi feito com a ajuda do professor da Universidade Nova de Lisboa, David Cranmer. Dentre os manuscritos relacionados à prática luso-brasileira, Alexandra destacou os da ópera La modista raggiratrice. “A princípio não havia nada de especial no material para a prática brasileira, trata-se de uma ópera de um autor napolitano. Porém, os manuscritos eram os únicos que traziam nas partes cavadas vocais femininas, as modificações realizadas pelas intérpretes da ópera na Colônia, principalmente no que se refere à ornamentação. A versão base da ópera tem linhas melódicas bastante simples, mas, incluindo essa ornamentação, sua execução torna-se mais exigente do ponto de vista técnico-vocal”, explica Alexandra.
O estudo paleográfico, ou seja, das escritas antigas, foi feito pelo professor Cranmer e permitiu identificar os copistas envolvidos. A pesquisadora, por sua vez, verificou que, nas partes separadas para os cantores havia anotações “como se fossem de um ensaio e sempre nas partes femininas”. Em Portugal, houve uma representação da ópera em 1792 no Real Teatro de Salvaterra – esta é a versão que corresponde à parte dos manuscritos que compõem a cota relacionada à obra no acervo de Vila Viçosa. “Tenho vários maços nessa cota, um maço com as partituras completas e as partes cavadas de instrumentos e outros dois maços com partes cavadas de vocais para o primeiro e o segundo ato da ópera”. Nestes manuscritos, constam os nomes dos intérpretes dos papéis femininos na versão lusitana, que foram executados por castrados. Na versão colonial, as anotações foram feitas na mesma partitura, trazendo o nome do cantor ou da cantora.
A pesquisadora acredita que o material possivelmente foi utilizado no Brasil depois do retorno da cantora Lapinha de Portugal, em 1805, até no máximo 1813, quando o teatro de Manuel Luís foi fechado, devido à inauguração do Real Teatro de São João. “Parti da versão de 1792 acrescentando a ornamentação que estava presente nas partes separadas aos cantores. Comparei os manuscritos com outras versões da ópera, incluindo o manuscrito parcialmente autógrafo de Paisiello, que é de 1787 e está na biblioteca do Conservatório San Pietro a Majella em Nápoles”.
As principais anotações estão nas partes executadas por Joaquina Lapinha. São três árias ao longo da ópera que Alexandra considera bastante ornamentadas. “Pude analisar o que foi feito, quais recursos ela usava, e é possível supor que o tempo em que a cantora passou em Portugal, e teve contato com a escola italiana de canto, interferiu nesse trabalho”.
Das partes executadas por Francisca há dentro da versão colonial uma segunda versão, com ornamentações diferentes. A pesquisadora sugere que Lapinha possa ter substituído a outra intérprete em uma segunda representação. “Esta segunda versão é mais ornamentada que a primeira, uma característica da Lapinha, como se comprova pelo elevado nível técnico das obras do padre José Maurício, dedicadas à cantora.” Assim como Lapinha, Alexandra é cantora lírica, soprano coloratura, ou seja, um tipo de voz cujo repertório apresenta passagens melódicas de grande agilidade e ornamentação elaborada, valorizando a extensão vocal.
Castrados
Diferentemente de outros países, Portugal ainda mantinha ao final do século 18 e início do 19, segundo Alexandra, a tradição dos castrados, que tiveram atuação representativa na cena dramática no período em que a Lapinha se apresentava por lá. Os castrados portugueses dominavam as técnicas da escola de bel canto (ou belo canto) italiano, cujo maior expoente é o compositor Gioachino Rossini, autor da ópera O barbeiro de Sevilha. Joaquina Lapinha teria atuado por um período de seis meses, no Real Teatro de São Carlos em Lisboa, no mesmo período em que Girolamo Crescentini, famoso castrato italiano se apresentava em Portugal.
“As cantoras mulatas, especialmente a Lapinha, elaboravam bastante as linhas melódicas de acordo com as práticas do bel canto, da escola italiana, usando muito da ornamentação do repertório napolitano. O que vemos é improvisação livre, italiana, em contraposição à francesa que é mais restrita. Isso dá essa relação direta com a prática dos castrados”. Quando a Corte vem para o Brasil, os castrados e também companhias de fora começam a se apresentar no país. As personagens estudadas por Alexandra vão aos poucos desaparecendo do cenário artístico colonial.
A intenção da pesquisadora com o estudo era mostrar que mais que coadjuvantes, Lapinha, Francisca e Maria Candida eram personagens principais no teatro do período e suas atuações alteraram o cenário da música dramática no Rio de Janeiro colonial. A participação das cantoras envolve a questão do gênero e também racial, uma vez que as mulheres brancas e da elite não atuavam nesse ambiente. Alexandra chama a atenção ainda para o repertório estudado que está disponível aos pesquisadores do período e estudantes de canto. “É uma fonte bastante rica para o desenvolvimento técnico-vocal”, salientou.
Publicação
Tese: “O canto feminino na América Portuguesa: diálogos e intersecções na representação colonial de ‘La modista raggiratrice’ de Paisiello”
Autora: Alexandra van Leeuwen
Orientador: Edmundo Pacheco Hora
Coorientadora: Adriana Giarola Kayama
Unidade: Instituto de Artes (IA)