Unicamp
Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 11 de agosto de 2014 a 24 de agosto de 2014 – ANO 2014 – Nº 602Link Brasil-Cabo Verde
Pesquisa colaborativa entre a Unicamp e Universidade Jean Piaget investiga o multilinguismo no mundo digitalPesquisadores da Unicamp e da Universidade Jean Piaget, de Cabo Verde, estão desenvolvendo um projeto colaborativo de pesquisa voltado ao tema do multilinguismo no mundo digital. A iniciativa, apoiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e Associação das Universidades de Língua Portuguesa (AULP), tem por objetivo principal a geração de dois produtos: um guia de fontes e um dicionário digital da língua original do país africano, conhecida genericamente como crioulo, mas que os especialistas preferem denominar de idioma cabo-verdiano. O projeto, que na Unicamp é coordenado pelo professor Wilmar da Rocha D’Angelis, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), está completando um ano e ainda terá outro ano pela frente.
De acordo com Cláudia Wanderley, pesquisadora do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência (CLE) e uma das integrantes do projeto, a colaboração entre a Unicamp e universidades de Cabo Verde já ocorria anteriormente, mas de uma maneira voluntariosa. “Com a aprovação do projeto pela Capes e pela AULP, porém, essa parceria ganhou contornos institucionais e ficou ainda mais forte. Estamos muito satisfeitos com essa oportunidade”, afirma. Uma das consequências da parceria foi a realização, em março deste ano, na Unicamp, de um encontro acadêmico que contou com a participação dos professores Saidu Bangura e Evandro Neves Fonseca, ambos da Universidade Jean Piaget.
Na ocasião, foram discutidas questões como multilinguismo, multiculturalismo e cultura digital. Um mês depois, ocorreu um segundo evento, este um fórum denominado Cabo Verde e Brasil: (Primeiras) Aproximações. Os participantes fizeram reflexões acerca dos limites e possibilidades da pesquisa entre os países, também sob a perspectiva do multilinguismo, multiculturalismo e mundo digital. Um dos principais pontos do projeto em andamento, conforme Cláudia Wanderley, é a promoção de intercâmbios de estudantes e docentes entre as instituições parceiras.
Recentemente, o estudante de graduação do IEL Lucas Dall’Ava esteve por um mês em Cabo Verde. Lá, ele visitou diversas instituições e manteve contato com professores, intelectuais e autoridades educacionais. Além disso, coletou informações e fez um levantamento bibliográfico com vistas à elaboração do guia de fontes. “Foi uma visita muito enriquecedora, tanto do ponto de vista acadêmico como pessoal”, conta. Segundo Lucas, a ideia é que o guia de fontes se constitua em ferramenta de consulta principalmente por parte de pesquisadores interessados em estudar o idioma original e a cultura de Cabo Verde.
O trabalho iniciado pelo estudante está sendo complementado por uma colega dele, Stephânia Freitas Silva, que também viajou ao país africano. Assim como Lucas, ela está coletando elementos que comporão o futuro guia de fontes. Cláudia Wanderley explica que esse tipo de trabalho é importante porque Cabo Verde, assim como outros países, inclusive o Brasil, sofre um processo de apagamento de sua língua original e, consequentemente, de parte de sua cultura. “Obviamente, esse é um problema muito sério. Nós trabalhamos com a perspectiva de que as pessoas têm direito à educação, à informação e à língua materna. Imaginemos uma criança que tem toda a sua vida social e familiar permeada pelo idioma cabo-verdiano, mas que, na escola, tem que utilizar o português, que é a língua oficial do país. Isso é muito complicado”, analisa.
Nesse sentido, Lucas relata um episódio que lhe foi contado por uma pesquisadora que também desenvolveu um trabalho em Cabo Verde. Segundo ela, é comum que os professores primários e secundários do país tenham dificuldade em fazer com que seus alunos entendam determinados aspectos de suas disciplinas. Quando isso ocorre, eles explicam uma, duas, três vezes. Ao perceberem que os estudantes não estão mesmo compreendendo o conteúdo, eles recorrem ao crioulo, que é mais informal. É nesse momento que as crianças e adolescentes finalmente captam a explicação. “Isso demonstra o quanto a língua cabo-verdiana é importante e está presente no cotidiano da população. Apesar disso, ela corre o risco de cair no esquecimento com o decorrer dos anos, caso não passe por um processo de valorização, o que inclui um trabalho de normatização”, observa Lucas.
Conforme Cláudia Wanderley, o intuito dos pesquisadores da Unicamp é contribuir para o debate sobre a preservação das línguas originais, até porque o Brasil guarda muitas semelhanças com cabo Verde. A pesquisadora lembra que os dois países foram colonizados por portugueses e que aqui existem muitas línguas indígenas que sofreram ou estão sofrendo um processo de apagamento. “Ou seja, a discussão em torno das línguas maternas é importante tanto para eles quanto para nós”. Questionada sobre as eventuais dificuldades enfrentadas por esse tipo de pesquisa, Cláudia Wanderley considera que o maior entrave talvez esteja na ainda incipiente colaboração entre o Brasil e os países africanos. “Quando se fala em cooperação e intercâmbio, imediatamente as pessoas pensam em Europa e Estados Unidos como parceiros preferenciais. Esse é um limite da nossa tradição acadêmica que precisa ser superado”, entende.
Por causa do projeto, Cláudia Wanderley também esteve em Cabo Verde, por um período de 15 dias. Tanto ela quanto Lucas dizem ter ficado surpresos com o grau de semelhança do país com o Brasil, em diferentes aspectos. “Fui levada para alguns shows de músicas típicas e logo pensei: estou no Brasil. Assim que ouvi os ritmos eu logo os associei com o nosso forró ou a nossa lambada”, narra. “Isso sem falar nas comidas e na maneira informal com que os cabo-verdianos conversam com os turistas. Tudo é muito parecido com o Brasil”, complementa Lucas.
Dicionário
Além do guia de fontes, outro produto que deverá emergir do projeto entre Brasil e Cabo Verde é um dicionário eletrônico em cabo-verdiano. “A ideia é que essa ferramenta seja aberta, ou seja, sem copyright. Ela ficará hospedada na Universidade Jean Piaget e deverá funcionar como uma espécie de Wikipédia, que poderá ser atualizada de forma colaborativa continuamente. O propósito é que esse dicionário contribua para fortalecer os debates em torno da identidade da população do país”, destaca a pesquisadora do CLE.
Por ser uma ferramenta eletrônica, afirma Cláudia Wanderley, o dicionário poderá ser acessado não somente pelos moradores de Cabo Verde, mas também por aqueles que deixaram o país em busca de novas oportunidades. Aliás, pontua a pesquisadora, a diáspora cabo-verdiana é imensa. Calcula-se que a população atual do país seja de aproximadamente 500 mil pessoas, metade do número de cabo-verdianos espalhados pelo mundo, o Brasil incluído. “Vale ressaltar que essa pesquisa somente está sendo possível graças à disposição e generosidade da Universidade Jean Piaget, que nos permitiu participar de um estudo que aborda um tema tão caro ao país”, afirma.
Segundo ela, trata-se de um trabalho bastante delicado falar de uma língua nacional que não está reconhecida. “Penso que estamos fazendo algo importante para a estruturação desse idioma. Dessa forma, não podemos deixar de reconhecer também a importância do papel da Unicamp, que se abriu para receber nossos parceiros de África. Estamos pesquisando temas transversais e humanos que nem sempre a disciplinarização do conhecimento nos permite abordar”, finaliza.