Edição nº 604

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 29 de agosto de 2014 a 07 de setembro de 2014 – ANO 2014 – Nº 604

Autonomia em meio ao furacão

Para pesquisador, medidas adotadas pelos governos Lula e Dilma foram importantes para o país enfrentar efeito-contágio da crise de 2008

Os avanços da economia brasileira nos anos anteriores à grande crise internacional de 2008 deram ao governo os meios para reagir de forma mais autônoma, com a adoção de políticas anticíclicas já no governo Lula (2003-2011) e de técnicas inéditas de gestão dos fluxos de capitais e derivativos na atual administração de Dilma Rousseff, diz dissertação de mestrado defendida no Instituto de Economia (IE) da Unicamp.

“No Brasil, além da política de acumulação de reservas, a redução do endividamento externo público foi fundamental para a diminuição da vulnerabilidade externa. Essas ações tornaram o governo e país credores líquidos em moeda estrangeira em 2006 e 2007, respectivamente, posição muito importante para o Brasil enfrentar o efeito-contágio da crise”, diz o trabalho, de autoria do pesquisador Saulo Abouchedid. “Isso porque a desvalorização da moeda brasileira no último quarto de 2008 gerou um efeito positivo sobre as contas públicas pela primeira vez na história, e não obrigou o país a recorrer ao FMI, como nas crises dos anos 1980 e 1990”. Esse resultado foi fundamental, escreve o autor, “para aumentar a autonomia da política econômica, possibilitando a adoção de políticas anticíclicas”. 

Em entrevista ao Jornal da Unicamp, Abouchedid explicou que países cujas moedas não têm liquidez internacional, como é o caso do real, possuem um grau reduzido de autonomia de política econômica. “A hierarquia de moedas é uma hierarquia entre os diferentes graus de liquidez que as várias moedas exibem na economia mundial. O fato de o real ser uma moeda ilíquida internacionalmente implica uma instabilidade nas taxas de câmbio e de juros e uma perda de autonomia na política econômica”. 

Por conta disso, esses países emergentes muitas vezes se veem presos aos ciclos de liquidez internacional. Uma política anticíclica, nesse sentido, seria uma política que busca se contrapor a esse ciclo – no caso da crise de 2008, ao ciclo depressivo iniciado pela quebra do banco Lehman Brothers, que se seguiu ao colapso dos chamados empréstimos subprime nos Estados Unidos, ocorrido no ano anterior.

 

Momentos de mudança

Em sua dissertação,  Abouchedid identifica dois momentos de mudança na política econômica brasileira após o início da crise. Ele lembra que durante o governo Lula, com o Banco Central ainda sob o comando de Henrique Meirelles, as políticas de juros, de câmbio e de metas de inflação vinham seguindo a linha ortodoxa adotada na gestão de Fernando Henrique Cardoso. “O primeiro momento veio logo após a eclosão da crise sistêmica, da falência do Lehman Brothers, por meio da ação do Banco Central (BC) nos mercados interbancários e no mercado de crédito”, disse ele. “E o governo também atuou na politica fiscal, por meio de um pacote de estímulo ao investimento e ao consumo. Além do estímulo fiscal, outra ação fundamental, anticíclica, foi o uso dos bancos públicos para estimular o crédito”.

O segundo momento da mudança, prossegue o pesquisador, vem após a retomada dos fluxos de capitais para o Brasil, a partir de 2009. Com a queda dos juros nos países desenvolvidos, em resposta à recessão desencadeada pela crise, investidores internacionais passaram a buscar mercados emergentes, que ofereciam taxas mais atraentes. Com a entrada abundante de dólares, o real passou a ser valorizado.

“O mercado de câmbio brasileiro é muito líquido e suscetível aos ciclos especulativos”, explicou Abouchedid. “Se o Banco Central não atuasse, o câmbio brasileiro tenderia à paridade”.

Em 2011, tinha início o mandato de Dilma Rousseff e Henrique Meirelles era substituído por Alexandre Tombini no comando do BC. “A Dilma não só atuou com controle de capitais no mercado de câmbio à vista, por meio do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), mas também atuou no mercado de derivativos de câmbio”, disse o pesquisador. “Ela atuou por meio do que se convencionou chamar de técnicas de gestão de derivativos: colocou um limite nas posições dos bancos e investidores estrangeiros, impediu essa festa que havia no mercado de câmbio”, onde era possível, por exemplo, apostar nas cotações futuras do dólar sem desembolsar um real, apenas apresentando garantias.

“Essas técnicas de gestão de derivativos foram inéditas”, explicou o pesquisador. “Porque são diferentes do simples controle de fluxo de capitais. Elas nem sempre envolvem fluxos de capitais. Os investidores vinham aqui às vezes sem desembolsar nenhum real. Então como é controle de fluxo de capitais se não há entrada e saída de capital?”

 

Condicionantes

Em sua dissertação, Abouchedid levanta quatro hipóteses para explicar a autonomia demonstrada pelo governo brasileiro na administração da economia durante a crise: ela teria feito parte de uma grande concertação de esforços anticíclicos encabeçada pelos países ricos; teria ocorrido em resposta a uma mudança no receituário econômico do FMI e de outros organismos multilaterais; o Brasil teria tirado proveito de uma situação favorável construída nos anos anteriores à crise; e, por fim, as mudanças refletiriam uma alteração na orientação econômica do governo, a partir da posse de Dilma.

O pesquisador conclui que a principal causa foi a situação favorável obtida no período 2003-2007, seguida pela mudança na gestão da política econômica no biênio 2011-2012. As mudanças nas recomendações dos organismos internacionais, disse o autor, ocorreram quando as transformações na política brasileira já estavam em curso, e a concertação dos países avançados, embora relevante, não foi, de acordo com a dissertação, suficiente para explicar as mudanças no Brasil.

 

Convenção Pessimista

Abouchedid acredita que o governo Dilma tomou medidas corretas para estimular a retomada do crescimento da economia brasileira, como a flexibilização do chamado “tripé macroeconômico” – câmbio flutuante, meta de inflação, superávit primário –, a tentativa de redução dos juros, os pacotes de desoneração e os investimentos públicos.  De acordo com o autor, a aplicação rígida do tripé tinha sido útil para controlar a inflação no período de bonança anterior à crise de 2008, mas depois passou a ser um entrave ao desenvolvimento econômico, ao manter os juros altos e o real valorizado.

“Dilma buscou durante todo o governo estimular o investimento. Ela utilizou de diversos instrumentos de política cambial, reduziu a taxa de juros e lançou mão de vários programas para desoneração de folha salarial e de compras governamentais de produtos de conteúdo nacional. Essas são politicas de estímulo ao crescimento”, disse ele.

O pesquisador atribui o fato de essas políticas não estarem gerando os resultados esperados a uma série de fatores, incluindo uma mudança no cenário internacional, com redução de liquidez internacional; uma “convenção pessimista”, na qual os empresários relutam em investir; e, também, erros do governo, que não soube coordenar suas ações de estímulo e nem foi capaz de fazer deslanchar os investimentos públicos em infraestrutura. 

“Mas a gente não pode deixar de reconhecer os pontos positivos. Dilma foi na direção correta em diversos pontos cruciais da política econômica”, declarou ele.

A autonomia que permitiu ao Brasil reagir à crise de 2008 não existe mais, na avaliação de Abouchedid. “O pequeno aumento do grau de autonomia de política econômica que a gente conseguiu nesses dois momentos, acho que perdemos”, disse ele.

“Tanto por causa dessa reversão parcial dos fluxos de capitais, quanto por conta de todos esses fatores internos: o insucesso de algumas políticas, principalmente de estímulo ao investimento, que fez com que o governo voltasse para a defensiva, a inflação também voltou a incomodar. O tripé voltou a ser mais inflexível e a taxas de juros e de câmbio voltaram a apresentar maior instabilidade”.

Mas algumas conquistas se preservaram, segundo ele: “Lá no longo prazo, quando a abundância de liquidez voltar a acontecer, o governo já tem algumas técnicas de gestão dos fluxos de capitais e de derivativos desenvolvidas. Se houver necessidade, espero que esses instrumentos sejam usados novamente”.

 

Publicação

Dissertação: “A política econômica no Brasil no contexto da crise financeira global (2008-2012)”
Autor: Saulo Abouchedid
Orientadora: Daniela Prates
Unidade: Instituto de Economia (IE)