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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 29 de agosto de 2014 a 07 de setembro de 2014 – ANO 2014 – Nº 604Do aboio ao cururu
Dentre os compositores eruditos brasileiros preocupados em valorizar a nossa cultura, adeptos do chamado movimento nacionalista surgido na Europa no século 19, figura Osvaldo Lacerda (1927-2011), que reuniu em suas Brasilianas nada menos que 46 gêneros musicais de todas as regiões do país. Ele buscou desde representações do baião, forró, xote e maracatu – que se mantêm em alta – até do aboio, canto típico dos vaqueiros na condução do gado, e do bendito, canto sacro popular das procissões – contribuindo para que tais gêneros não caiam no esquecimento.
“Constâncias musicais brasileiras e aplicabilidade didática: um olhar sobre as Brasilianas de Osvaldo Lacerda” é o título da tese de doutorado de Andréia Miranda de Moraes Nascimento, orientada pela professora Aci Taveira Meyer e defendida no Instituto de Artes (IA) da Unicamp. A autora realizou um estudo analítico e pedagógico das Brasilianas para piano que Lacerda compôs entre 1965 e 1993: são 12 suítes, cada uma com quatro peças, totalizando 48 – uma detalhe é que, dos 46 gêneros incluídos, dois se repetem (o dobrado e a valsa).
Segundo Andréia Nascimento, a sua tese se justifica pela crescente importância de se valorizar a produção nacional nos meios acadêmicos, desenvolvendo estudos técnicos e difundindo novos repertórios. “Osvaldo Lacerda quis resgatar todos os gêneros presentes na cultura do povo brasileiro e trazê-los para a música de concerto. No estudo analítico, procurei investigar os elementos técnicos utilizados pelo compositor e como ele os manipulou. Mas a tese vai além da questão da interpretação, trazendo uma parte mais didática, voltada à educação musical.”
Foi ainda no mestrado focando outro compositor nacionalista, Francisco Mignone, que Andréia seguiu o conselho de sua orientadora, professora Aci Meyer, e procurou Osvaldo Lacerda para receber aulas de harmonia. “Ele também me ajudou muito no trabalho sobre Mignone e, mais no final do mestrado, quando comecei a pensar no tema para o doutorado, me dei conta daquele meu contato com um compositor ainda em atividade – era 2008 e ele faleceu em 2011. Quando comentei sobre as Brasilianas (algumas eu já conhecia e tinha inclusive tocado), Lacerda se sentiu empolgado e muito honrado com a oportunidade de ter sua obra mais divulgada no meio acadêmico.”
A autora recorda que nas conversas com o professor de harmonia, via sua enorme preocupação em registrar ritmos próprios da cultura brasileira que eram pouco valorizados e que os compositores eruditos deixavam passar batidos. “Osvaldo Lacerda realizou inúmeras pesquisas de campo para resgatar esses gêneros. Sobre a quantidade grande que reuniu em suas peças, disse que em nosso folclore havia muito mais gêneros que poderia ter abordado. Estas obras, todas para piano, incluindo para quatro mãos, foram muito bem aceitas no cenário erudito e algumas incluídas em currículos de conservatórios e mesmo de universidades, além de gravadas por pianistas renomados.”
Constâncias musicais
A pesquisa de Andréia Nascimento resultou em dois volumes recheados de partituras, que ela analisou compasso por compasso, preocupada em destacar as chamadas constâncias musicais, no caso, dos gêneros brasileiros. “Essas constâncias, que acabaram dando título à tese, são os elementos melódicos ou rítmicos que caracterizam nossa música. Paralelamente à análise formal, estrutural e harmônica das obras, faço um histórico de cada gênero – se é genuinamente brasileiro, se veio de fora, como se enraizou no país – e cito compositores, tanto no erudito como no popular, que também compuseram em cima dele.”
Como exemplo, a pesquisadora cita a moda, que veio de Portugal e se disseminou no Brasil como moda caipira, sobretudo nas regiões Sudeste e Centro-Oeste. “A característica principal da moda de viola são as melodias criadas em terças: na dupla de cantadores, temos uma primeira voz e uma segunda voz sempre cantada uma terça acima ou abaixo da primeira. Em minha análise identifiquei que Osvaldo Lacerda também pensou em duas melodias sobrepostas em terças; e que no acompanhamento que faz ao piano procura um movimento rítmico lembrando o ponteado da viola caipira.”
A pesquisadora observa que a hipótese levantada no início da tese era exatamente de comprovar se o compositor conseguiu preservar as constâncias musicais registradas na cultura popular ao trazer esses gêneros para a música erudita, apesar de todas as inovações harmônicas da contemporaneidade. “Ao ouvirmos uma peça das Brasilianas, não nos damos conta desses elementos, que estão lá, ainda que obviamente manipulados; é preciso buscar no fundo. Osvaldo Lacerda era um compositor moderno, que muitas vezes se utilizava da harmonia que chamamos de atonal, mas preservou as melodias simples da moda caipira, independentemente da região.”
Experiência dadática
Andréia Nascimento considera a análise harmônica, melódica e estrutural das Brasilianas de Osvaldo Lacerda muito importante para o pianista, que assim pode entender melhor a partitura e buscar uma performance fiel. No entanto, aproveitando a condição de professora da Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep) e da Universidade de Sorocaba (Uniso), incluiu na tese uma parte didática. “Como trabalho há seis anos com alunos do curso de licenciatura em música, eu e minha orientadora pensamos em ampliar a pesquisa, envolvendo a educação musical.”
Uma das disciplinas ministradas pela autora na Unimep é de percepção, improvisação e arranjo, para uma classe com aproximadamente 30 alunos, que ela dividiu em grupos. “Na experiência, escolhi cinco das 48 peças que Lacerda escreveu para aplicá-las na sala de aula. A disciplina de arranjo tem o propósito de fazer com que os alunos desenvolvam vários arranjos a partir de uma melodia já existente; não vão criar nada novo, vão recriar. Sugeri que, mantendo a melodia original, escrevessem uma outra música, apropriando-se dos instrumentos que eles tocavam.”
Esta experiência surgiu da crença de Andréia de que seria uma boa forma de levar para a sala de aula, ainda que de um curso de formação de professores, gêneros que muitos desconheciam. “Eles conheciam o samba e o baião, mas nunca tinham ouvido o cururu, o dobrado e o coco. Fiquei meio pasma em relação ao cururu: por estarmos em Piracicaba, a típica cidade caipira, achei que 100% tivessem contato com o gênero; deu apenas 34,4%. O fato é que os arranjos ficaram lindos e inclui a análise de 15 deles na tese, a fim de mostrar como os alunos apreenderam esses gêneros e preservaram as constâncias em suas recriações.”
Ainda sobre o cururu, a pesquisadora destaca um arranjo dos alunos para clarinetas, com a mais aguda mantendo a melodia de Osvaldo Lacerda, e outras duas tocando “O rio de Piracicaba”. “Surgiram trabalhos muito criativos com gêneros que para esses futuros professores estavam perdidos. Eles tiveram a chance de pensar, recriar e cumprir com os objetivos da disciplina, e se abrindo para uma proposta nova. Enquanto outros compositores brasileiros se ocuparam de gêneros de maior evidência da cultura popular, como baião e maracatu, Osvaldo Lacerda quis abordar a maior quantidade possível, preocupando-se com características mínimas, por perceber que para o povo elas eram fortes.”
O nacionalismo musical brasileiro
Em fins do século XIX, surgiu uma nova corrente estética no meio musical que rapidamente se espalhou pela Europa Ocidental: o nacionalismo. É caracterizada pela música escrita com constâncias nacionais, com objetivo de promover uma integração entre o artista criador e o meio social através de uma identidade musical. Compositores russos, espanhóis, poloneses, tchecos e húngaros aproveitaram-se de ritmos e melodias populares de seus países em peças de vários gêneros musicais.
O nacionalismo musical brasileiro teve como precursores Carlos Gomes (1836-1896), Brasílio Itiberê (1846-1913), Alexandre Levy (1864-1892), Alberto Nepomuceno (1864-1920), Francisco Braga (1868-1945) e Barroso Neto (1881-1941). O Movimento Modernista do início do século XX pregava a modernização das linguagens artísticas e defendia a liberdade de expressão: era contra o academismo e o tradicionalismo, e deu grande ênfase ao nacionalismo, tornando-se a grande base desta corrente estética. Esse movimento teve como auge a Semana de Arte Moderna, em fevereiro de 1922, sendo que na música o destaque foi Heitor Villa-Lobos (1887-1959).
O mentor intelectual e teórico máximo do nacionalismo musical brasileiro foi Mário de Andrade, que influenciou diretamente três compositores que são considerados hoje, ao lado de Villa-Lobos, os grandes nacionalistas: Oscar Lorenzo Fernandez (1897-1948), Francisco Mignone (1897-1986) e Mozart Camargo Guarnieri (1907-1993). Este último foi responsável pela criação de uma escola de compositores que deu continuidade e progressão aos seus ideais. Dentre os seus mais consagrados alunos, está Osvaldo Lacerda (1927-2011), autor das doze Brasilianas para piano, tema escolhido para o desenvolvimento deste trabalho.
Publicação
Tese: “Constâncias musicais brasileiras e aplicabilidade didática: um olhar sobre as Brasilianas de Osvaldo Lacerda”
Autora: Andréia Miranda de Moraes Nascimento
Orientadora: Aci Taveira Meyer
Unidade: Instituto de Artes (IA)