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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 15 de setembro de 2014 a 21 de setembro de 2014 – ANO 2014 – Nº 606Livro detalha experimentações de Vilanova Artigas
Obra de docentes da USP e da Unicamp analisa papel do arquiteto no contexto da “modernização conservadora” brasileiraOs anos 1950 foram marcados pelo forte avanço do processo de industrialização do Brasil, vinculado ao projeto de modernização do país. O período foi um divisor de águas: a indústria – especialmente a de bens duráveis – ganhou espaço na economia, em consonância com fortes mudanças culturais e sociais.
Foi a década da instalação da indústria automobilística no país, da chegada da televisão aos lares brasileiros e de intensificação da urbanização, com o aumento da população das cidades. A cidade de São Paulo, epicentro da industrialização brasileira, saltou de 2 milhões para 3,5 milhões de habitantes. Sintetiza, assim, a profunda interligação entre industrialização e urbanização: as fábricas eram instaladas onde havia mão de obra e infraestrutura.
Este foi o pano de fundo de atuação de um dos maiores arquitetos do Brasil, João Batista Vilanova Artigas (1915-1985), cuja obra traduz uma profunda reflexão sobre a relação entre a arquitetura e os processos industriais e territoriais. Tal relação é o tema do livro “Vilanova Artigas – Habitação e cidade na modernização brasileira”, de autoria de Leandro Medrano e Luiz Recamán, recém-lançado pela Editora da Unicamp.
Para os autores, tanto do ponto de vista técnico e construtivo, quanto da perspectiva social e política, a obra de Artigas delineia-se como um programa arquitetônico que traduz o desejo de mudança social, por meio de uma nova configuração espacial da cidade.
Militante político de esquerda, influenciado pelo modernismo do grupo Santa Helena na sua fase de formação intelectual, o paranaense Vilanova Artigas projetou e construiu habitações individuais e coletivas entre os anos 1940 e 1960, que são verdadeiras experimentações arquitetônicas das possibilidades urbanas. Além das inúmeras residências, destacam-se entre suas obras, uma proposta para o concurso de Brasília – vencido por Oscar Niemayer e Lúcio Costa – e o conjunto residencial Zezinho Magalhães, construído em Guarulhos.
Assim, Medrano e Recamán procuram, nas obras analisadas no livro, um padrão espacial que possa ser deduzido das experimentações de Vilanova Artigas; um padrão que possa ser estendido a uma ideia de cidade. Uma cidade alternativa àquela da “modernização conservadora” brasileira, cuja peculiaridade se traduz na acomodação de formas arcaicas a sistemas avançados de acumulação, defendem os autores.
Leia, a seguir, a íntegra da entrevista concedida por Leandro Medrano, professor da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC) da Unicamp, e Luiz Recamán, docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP), ao Jornal da Unicamp.
Jornal da Unicamp – Como situar Vilanova Artigas no contexto da arquitetura moderna brasileira? Qual é sua particularidade?
Leandro Medrano e Luiz Recamán – Vilanova Artigas é um dos mais importantes arquitetos brasileiros. Sua obra foi definitiva para a transformação da arquitetura brasileira depois dos anos 1950. Enfrentando um contexto de modernização industrial, com sede em São Paulo, Artigas refletiu sobre a relação entre a arquitetura e os processos industriais e territoriais. Não apenas do ponto de vista técnico e construtivo, mas, principalmente, procurou dar à arquitetura uma nova dimensão social e política.
Além de diversas residências na cidade, que se tornaram paradigmáticas, Artigas projetou e construiu o edifício da FAU/USP [Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo], que pretendeu responder aos desafios dessa nova concepção de arquitetura brasileira no projeto de uma faculdade. Intelectual atuante da Universidade de São Paulo, este arquiteto fez parte de uma geração que dinamizou a universidade e que discutiu um projeto de desenvolvimento para o país.
Além disso, projetou e construiu diversos edifícios, como escolas, estádios, rodoviárias etc., e se destacou como professor e líder de uma geração.
JU – De que maneira a política e a dimensão social se manifestam nas obras de Artigas?
Leandro Medrano e Luiz Recamán – A questão social na arquitetura – e na arte em geral – deve ser compreendida para além dos programas e de para quem se destina a construção. Todo projeto tem uma formulação de espaço que está conectada ao seu tempo. Na arquitetura, por ser uma disciplina diretamente ligada à sociedade e à cidade, essa relação é visceral.
Vilanova Artigas foi um arquiteto e professor que procurou renovar esta relação na conjuntura brasileira dos anos 1950. Militante político, ele definiu um programa arquitetônico que representava uma vontade de mudança social que parecia factível naquele momento, por meio de uma nova configuração espacial da cidade.
No livro, a questão social se dirige diretamente às soluções construtivas e espaciais que ele propõe. As relações entre construção e vazio, construção e o lote e construção e a cidade. Elas permitem compreender com clareza a extensão de seu projeto de modernização, formulado a partir de uma avaliação histórica do momento da arrancada industrial de São Paulo e do país.
JU – De que maneira essa “proposta de morar” de Vilanova Artigas, no contexto da aceleração da industrialização brasileira, se expressa em seus projetos?
Leandro Medrano e Luiz Recamán – Uma questão importante para se destacar no livro é o fato de que a escolha do tema habitação não é apenas um recorte da obra do arquiteto. Suas casas eram conceitos espaciais que ele repercutia em toda a produção.
Eram laboratórios da espacialidade almejada para o contexto da urbanização resultante do choque da industrialização nos anos 1950. Em duplo sentido: primeiro, como experimentação direta em programas mais ágeis e frequentes; segundo, como unidade básica da nova urbanidade, pois para o arquiteto, “a casa é a cidade e a cidade é a casa”.
A modernização brasileira teve como peculiaridade histórica a acomodação de formas arcaicas aos sistemas avançados de acumulação. Essa formulação produziu contradições diversas, incluindo a questão territorial e urbana. As permanências de lógicas espaciais da tradição rural, debilmente enfrentadas no período republicano, regrediram a esquemas precários de ocupação – o arcaico atualizado nas periferias e na exclusividade. Essa determinação geral atingiu não apenas os processos sociais gerais, econômico-sociais e territoriais, mas fez parte da reflexão crítica produzida no enfrentamento dessa realidade.
Lembremos Gilberto Freyre e sua “rurbanização”. De maneira diversa, [Sergio] Buarque de Holanda e Florestan Fernandes acreditavam que a revolução brasileira teria nas cidades e no processo de modernização urbana o seu palco. É esse o contexto em que o livro propõe pensar a questão da habitação na obra do arquiteto mais destacado do período, diante dos conflitos advindos da “modernização conservadora” brasileira.
JU – Como o prédio da FAU/USP se insere no contexto da obra de Artigas e responde aos desafios da nova concepção de arquitetura brasileira preconizada pelo arquiteto?
Leandro Medrano e Luiz Recamán – O projeto da FAU/USP é um capítulo conclusivo dessa pesquisa espacial iniciada nas residências, nos projetos de edifícios públicos e de habitação coletiva. Ela é um veemente manifesto das aporias do projeto construtivo brasileiro vinculado ao projeto nacional de desenvolvimento industrial. As ambiguidades de nossa modernização conservadora não logram solução espacial, na medida em que o espaço construído a partir de impulsos progressistas choca-se diretamente com a realidade social que procura transformar.
O edifício da FAU/USP é emblemático dessa tensão, na medida em que seu isolamento é figurado com precisão nas decisões projetuais. Ele acentua o isolamento político da cidade universitária em relação à cidade e à sociedade, no momento de crise do desenvolvimentismo. Esse estudo, que inclui o edifício da FAU/USP e outros edifícios institucionais, é o tema do novo livro que estamos elaborando sobre a obra desse importante arquiteto.
JU – Qual é a visão de cidade transformada proposta por Artigas? Qual a repercussão desta visão hoje? Como ela se expressa/ou não nas cidades brasileiras, em especial em São Paulo?
Leandro Medrano e Luiz Recamán – O livro analisa dois projetos nos quais a abrangência possível da tipologia habitacional desenvolvida pudesse ser verificado: o Conjunto Zézinho Magalhaes, em Guarulhos, e a proposta para o concurso de Brasília.
Neste último, o lote urbano que Artigas encontrava nos projetos de residências em São Paulo é a unidade base que conforma o espaço urbano da futura capital. Maiores que os lotes privados existentes, permitiam que “casas” fossem implantadas isoladamente, conectadas por amplo sistema viário. Esse cenário suburbano pode ser considerado o espaço ideal do esquema proposto pelo arquiteto, plenamente dedutível nas análises das residências que o livro apresenta.
A questão que o livro aborda é a tensão, registrada plenamente nas formas desenvolvidas, entre esse esquema urbano e a realidade de um país que ultrapassava, sem concluir, o estágio industrial em direção à sociedade de massa e consumo que se consolidava. Suas propostas habitacionais, individuais ou coletivas sobrepõem essas duas determinações: lógica industrial e lógica comunicacional.
JU – No livro, os senhores enfocam as casas concebidas por Artigas como conceitos espaciais que repercutiam em toda sua produção. Quais são alguns desses conceitos? Como esse conceito de espacialidade dialoga/contrapõe-se ao choque da industrialização?
Leandro Medrano e Luiz Recamán – O livro procura mostrar o desenvolvimento do conceito de um “edifício-bloco”, base construtiva e espacial da obra madura desse arquiteto. Uma unidade arquitetônica plenamente configurada e destacada do entorno espacial e social, ao qual objeta. O volume instaura uma sociabilidade intramuros, aberta e solidária, que contrasta com a dinâmica que vai se consolidando com o ingresso da cidade no circuito de produção e consumo de um país de modernização tardia e subdesenvolvida.
Esse diagnóstico da nossa modernização é recorrente nos pensadores da “formação”. Vilanova Artigas traduz de maneira ímpar esse momento de apostas desenvolvimentistas, no ambiente intelectual efervescente da São Paulo dos anos 1950.
JU – Qual a atualidade/riqueza da visão de Artigas – o que ela nos aporta para pensarmos o morar o urbano na contemporaneidade?
Leandro Medrano e Luiz Recamán – A influência de Artigas nos arquitetos que lhe seguiram, até os dias de hoje, comprova que vários aspectos de sua obra são recorrentes. Mas não o são necessariamente a sua perspectiva crítica e social. Vemos muitas soluções formais repetidas à exaustão, destituídas do contexto em que foram formuladas.
Essa estetização talvez seja a grande característica da arquitetura paulista atual, pelo menos aquela que se considera devedora de nossa vanguarda. O posfácio do livro trata de projetos que foram destacados recentemente em publicações internacionais.
É evidente que esses projetos estão bem distantes da obra de Artigas, mas a análise procura desvendar como o rico vocabulário desenvolvido por ele se deteriora em significantes que evocam o espírito antiurbano, agora totalmente descontextualizado.
JU – O que significa dizer que a casa é a unidade básica da nova urbanidade?
Leandro Medrano e Luiz Recamán – A primeira fase da arquitetura moderna brasileira tinha como fórmula estética a construção de edifícios emblemáticos da nacionalidade brasileira, entendida segundo o projeto varguista e modernista.
Um segundo momento seria aquele em que esse esquema estético é confrontado por uma nova realidade industrial e metropolitana, cuja lógica era mais diretamente ligada ao capital e seus investimentos. Nesse sentido, a amplidão dos espaços, a leveza e a paisagem, característico do momento anterior, perdem validade diante da agressividade da dinâmica territorial da nova metrópole paulistana.
O curioso é observar que nesse momento de expansão urbana, inédito na historia local, a ideia da casa emerge como conceito base da arquitetura de São Paulo. E que a nova faculdade de arquitetura, a FAU, seja o epicentro desta guinada ideológica. O espaço doméstico paulista, sua rusticidade e sobriedade, são tema fundamental dos estudos na faculdade nesse período.
A obra de Artigas é um componente desse movimento. O livro é critico em relação a essa opção, na medida em que deflagra uma relação entre objeto arquitetônico e vazio que estava na contramão das reflexões sobre o espaço urbano que teriam grande impacto na construção e transformação das cidades depois da Segunda Guerra Mundial.
Apesar de não tratar diretamente de um programa crítico e alternativo, o livro indica que a questão da cidade é prioritária. Ou seja, a casa deveria ser o resultado da forma urbana, e não o contrário, como foi e é postulado por nossa arquitetura avançada. Mais que a casa como programa funcional, essa concepção doméstica e introvertida do espaço está na base de nossa consagrada ousadia formal.
JU – No livro, vocês abordam o projeto que Artigas apresentou para a construção de Brasília. Em que esse projeto difere da Brasília de Niemayer e Lúcio Costa? Como seria nossa capital federal se Artigas tivesse vencido o concurso?
Leandro Medrano e Luiz Recamán – Não se trata de uma contraposição entre arquitetos, todos no panteão da arquitetura brasileira. Mas a grande questão que enfrenta Artigas é diferente daquela a que responderam tão assertivamente Niemeyer e Lúcio Costa. Ligados ideologicamente ao Estado centralizador e autoritário do desenvolvimentismo brasileiro, esses arquitetos procuraram responder arquitetonicamente às questões da identidade nacional por meio da arquitetura inserida em rica paisagem tropical.
Artigas enfrenta o Brasil urbano, industrial e desordenado. As respostas são diferentes porque as questões enfrentadas o são.
JU – Em 2015, será comemorado o centenário do nascimento de Vilanova Artigas. Como inserir esse livro na produção acadêmica sobre sua obra?
Leandro Medrano e Luiz Recamán – Um fato se destaca: a produção acadêmica sobre a obra de Artigas é relativamente pequena se considerarmos a sua vasta obra. Principalmente, se considerarmos a sua importância para o desenvolvimento da arquitetura brasileira.
A obra de Artigas é singular por ser uma produção voltada para questões sociais e disciplinares ao mesmo tempo. As suas experimentações de linguagem, exploradas no livro, revelam uma abertura disciplinar peculiar, senão solitária, no contexto brasileiro. O livro procura explorar essa complexidade por meio da análise das obras selecionadas, sempre confrontada com as questões sociais envolvidas.
Na sua produção arquitetônica estão consolidados os conteúdos sociais construídos por meio de excepcional desenvolvimento interno dos instrumentos da disciplina. Verificamos, das primeiras casas àquelas dos anos 1950, um percurso no qual incidem dinâmicas sociais e artísticas em uma coerência intelectual, novamente, singular.
Serviço
Obra: Vilanova Artigas - Habitação e cidade na modernização brasileira
Autores: Leandro Medrano e Luiz Recamán
Páginas: 160
Área de interesse: Arquitetura e urbanismo
Preço: R$ 34,00