Unicamp
Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 15 de setembro de 2014 a 21 de setembro de 2014 – ANO 2014 – Nº 606Uma lupa sobre o real
Pesquisadores utilizam a Realidade Aumentada como suporte às atividades de ensino e pesquisa nas áreas de arquitetura e construçãoDe posse de um tablet ou smartphone, o turista aponta a câmera de um dos dispositivos para as ruínas de Machu Picchu e focaliza um marcador previamente definido, que pode ser a própria estrutura remanescente da cidade pré-colombiana. Em segundos, surge na tela a imagem detalhada do local, da forma como foi construído no Século XV, acompanhada de um vídeo que traz informações históricas sobre o projeto concebido e executado pelos incas. Tal cena, que há duas décadas soaria como restrita aos filmes de ficção científica, já é plenamente exequível, graças à tecnologia classificada como Realidade Aumentada (RA). Na Unicamp, pesquisadores da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC) utilizam a RA como ferramenta de suporte ao ensino e às pesquisas nas áreas de arquitetura e construção.
A RA começou a ser desenvolvida há cerca de 30 anos, como explicam as professoras Regina Coeli Ruschel e Ana Lúcia Nogueira de Camargo Harris, ambas do Departamento de Arquitetura e Construção da FEC. Nos primórdios, porém, a tecnologia ficava restrita aos profissionais da computação, e requeria uma ampla e cara parafernália de equipamentos para ser aplicada. Com o surgimento dos tablets e smartphones e o desenvolvimento de aplicativos mais amigáveis, ela tornou-se acessível a um amplo leque de pessoas, inclusive em âmbito doméstico. “Atualmente, a realidade aumentada é muito utilizada em áreas como medicina, marketing e jogos eletrônicos, entre outras”, afirma Ana Lúcia Harris.
Segundo Regina Ruschel, o seu grupo de pesquisa começou a trabalhar com a RA em 2009, mais ou menos a mesma época de outras universidades espalhadas pelo mundo. Atualmente, ela considera que a investigação realizada em torno dessa tecnologia na FEC-Unicamp é referência no Brasil. “Temos mantido diálogos muito interessantes com instituições brasileiras e estrangeiras. A tendência é que os estudos avancem significativamente nos próximos anos”, prevê. Ana Lúcia Harris destaca que a realidade aumentada é tema de uma disciplina no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura, Tecnologia e Cidade.
Além disso, já gerou duas teses de doutorado, sendo uma já concluída e outra em andamento, e alguns trabalhos de iniciação científica. “Estamos formando recursos humanos altamente qualificados para trabalhar com esse tipo de ferramenta, que será cada vez mais útil nas áreas de arquitetura e construção”, entende a docente. Um dos produtos gerados pela disciplina de RA tem relação com a situação hipotética descrita no início deste texto. Um grupo de alunos desenvolveu aplicativos voltados ao resgate histórico. O foco do trabalho foi a Praça Central, marco zero da construção da Unicamp.
Por meio de aplicativos desenvolvidos especificamente para essa finalidade, é possível sobrepor a imagem da praça original sobre a atual, de modo a observar as diversas transformações ocorridas ao longo das últimas décadas. O usuário também pode fazer uma imersão naquele espaço, promovendo um giro de 360° a partir da tela do tablet ou smartphone, além de acessar um vídeo sobre a história da Universidade. “Através dos recursos oferecidos pela RA, nós ainda temos como inserir a imagem de 1978 do professor Zeferino Vaz [fundador da Universidade] caminhando pela praça, em tamanho real. Para isso, basta que o usuário, já tendo o aplicativo instalado no seu dispositivo móvel, se posicione no mesmo ponto onde a fotografia foi originalmente capturada”, esclarece Lorena Claudia de Souza Moreira, doutoranda da FEC-Unicamp e professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
De acordo com ela, a ferramenta foi apresentada a um grupo de frequentadores da Praça Central, que puderam manipulá-la. Posteriormente, eles responderam a um questionário para dizer o que acharam da interação. “Muitos se disseram surpresos porque não conheciam esse tipo de tecnologia. Também consideraram a experiência muito válida”, relata Lorena Moreira. O experimento, desenvolvido em disciplina de pós-graduação, contou com a colaboração dos pós-graduandos Victor Calixto e Natália K. Nakamura.
Em trabalho de doutorado concluído recentemente, Ana Cuperschmid explorou igualmente as possibilidades oferecidas pela RA, mas no contexto do que os especialistas denominam de “Projeto Participativo”. Em termos simplificados, o que a pesquisadora quis apurar é se usuários leigos [no caso, moradores de um conjunto habitacional popular da periferia de Campinas] teriam condições de aplicar a tecnologia na fase de concepção de um projeto arquitetônico.
Para isso, ela promoveu uma dinâmica com esses voluntários. “Nós apresentamos a ferramenta e os recursos proporcionados por ela aos moradores. A proposta era transformar um terreno baldio próximo às suas residências em uma praça de lazer. Nosso interesse era saber se essas pessoas poderiam usar maquetes virtuais em RA no lugar das maquetes físicas convencionais, com o objetivo de definir um projeto para aquele espaço. Os resultados foram melhores do que esperávamos. Pessoas de baixa escolaridade e sem qualquer familiaridade com ferramentas tecnológicas conseguiram usar o aplicativo sem grande dificuldade”, afirma.
Conforme Ana Cuperschmid, foram definidos diversos marcadores [desenhos], cada um representando um equipamento de lazer, como quadra esportiva, playground, pista de skate etc. Desse modo, cada marcador representava a inserção da imagem 3D de um desses equipamentos na imagem-base do terreno baldio. “A experiência foi muito positiva e enriquecedora, comprovando que esse recurso pode ser muito útil no que toca à tomada de decisões nas áreas de projeto e construção. Ao discutirem sobre a localização dos equipamentos, os próprios moradores perceberam, por exemplo, que a quadra esportiva não deveria ficar perto do playground, pois uma bola poderia atingir uma criança”, conta a pesquisadora.
Um diferencial dos aplicativos desenvolvidos por Ana Cuperschmid é que eles independem de conexão com a internet para serem usados, ao contrário do que ocorre com outros modelos. A professora Regina Ruschel informa que o trabalho da pesquisadora, que atualmente desenvolve o pós-doutorado no Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP de São Carlos, está inserido numa rede cooperativa de pesquisa que reúne instituições dos estados do Rio Grande do Sul, Bahia, Paraná, Ceará e São Paulo. “O intuito dessa rede é fazer com que todas as descobertas sejam transferidas para a sociedade, por meio de prefeituras, companhias de habitação e até mesmo associação de moradores. Queremos contribuir para que as decisões nas áreas de projeto e construção sejam tomadas em bases mais qualificadas, preferencialmente com a participação da população”, pontua.
Como dito anteriormente, a RA não tem sido utilizada somente por engenheiros e arquitetos. Vários outros profissionais também têm recorrido à tecnologia, como os das áreas médica, publicitária e de jogos eletrônicos. No segmento médico, a ferramenta tem tido diferentes aplicações. Uma das mais curiosas diz respeito ao tratamento de fobias. Segundo Lorena Moreira, há casos em o paciente é colocado gradativamente em contato com a imagem do objeto que lhe causa de fobia, como uma aranha ou mariposa, para ficar em dois exemplos comuns. “As sessões começam com a exposição de uma imagem distorcida e depois evoluem para uma imagem bastante realista, em formato 3D. Normalmente, o tratamento oferece bons resultados”, diz a doutoranda.
Outra aplicação relevante para a RA, acrescenta a professora Ana Lúcia Harris, é como ferramenta pedagógica. A docente vem realizando diferentes aplicações e workshops, utilizando a RA como suporte tanto às atividades dos professores quanto dos alunos. Nas aulas que ela ministra, a tecnologia tem sido empregada como auxílio à compreensão em situações que exigem maior abstração espacial.