Edição nº 609

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 03 de outubro de 2014 a 12 de outubro de 2014 – ANO 2014 – Nº 609

A arquitetura de Vilanova Artigas e a construção da cidade moderna


Os estudos das últimas décadas sobre a arquitetura de João Vilanova Artigas vêm ampliando largamente a compreensão de seus trabalhos e reforçando cada vez mais a importância de sua contribuição à cultura arquitetônica. A investigação dos arquitetos-professores Leandro Medrano e Luiz Recamán traz uma leitura instigante da relação entre seus projetos residenciais dos anos 1940 a 1960 e a modernização da cidade de São Paulo, que muito provavelmente despertará acirrados debates, uma vez que aponta para as contradições existentes entre a arquitetura moderna e a conformação das cidades brasileiras. Entendendo como recuo aquilo que é defendido como um avanço, os autores problematizam algumas versões consensuais da obra de Artigas, no que diz respeito às especulações urbanas que seus projetos sugerem ou ao significado da ênfase construtiva de suas ousadias estruturais, que são assumidas como constituidoras da escola paulista. Esse é o legado de Artigas que ainda repercute na produção contemporânea. 

A trajetória traçada pelos autores tem início no desafio de enfrentar a condição territorial adversa aos princípios da cidade moderna, recuperando o conflito gerado entre a rua entendida como vazio da composição arquitetônica e como espaço público, e terá seu ápice na total dissociação entre o ambiente interno das casas e o território ao qual pertence. 

De uma produção mais ampla (vale lembrar que a maioria dos projetos concebidos até 1950 era de inspiração acadêmica) os autores selecionaram cinco como gênese do conceito do vazio enquanto elemento de superação da lógica de ocupação territorial e de centralidade do espaço doméstico, a saber: os projetos de suas duas residências (1942 e 1949), a Casa Czapski (1949), a Casa Heitor de Almeida em Santos (1949) e a Casa D’Estefani (1950). O vazio, segundo a leitura de Medrano e Recamán, é identificável a partir da implantação que nega o padrão e incorpora o resíduo territorial à composição arquitetônica, que em seguida se incorpora ao espaço doméstico como elo entre volumes e, depois, incorporado à unidade volumétrica, ganha gradualmente preponderância até assumir a condição de estruturador espacial do programa. Condição essa que inibe a expansão volumétrica, consequentemente sua reprodutibilidade, impedindo qualquer possibilidade de desdobramento para a constituição do espaço urbano. 

Nos projetos analisados na sequência: Casa Olga Baeta, Casa dos Triângulos, Casa Taques Bittencourt 2, são esclarecidas as estratégias arquitetônicas que, atreladas ao conceito do vazio, sublimam o entorno indesejado, tanto pela ótica compositiva como construtiva: a opção pelo prisma, a eliminação da fachada, entendida como parte do processo de independência da unidade arquitetônica em relação ao mundo social, e a unificação dos diferentes elementos construtivos – estrutura, vedação, cobertura, piso etc. A objetividade estrutural do concreto – forte referência da escola paulista ainda hoje recorrente na produção contemporânea –, para os autores, não remete às questões tecnoconstrutiva e conceitual, e sim a uma operação retórica. A investigação conclui que a tipologia, criada a partir da trajetória projetual da unidade unifamiliar aberta a um vazio exterior ao enclausuramento definitivo do interior, era incompatível, devido às suas próprias premissas espaciais formais – o volume fechado – e ao desenvolvimento de novos padrões urbanos compatíveis com a modernização da cidade de São Paulo nos anos 1950. A formulação ideológica da grande cobertura apoiada em uma estrutura de desenho sofisticado a abrigar o espaço doméstico entendido como laboratório de processamento das questões não só do espaço e da cidade, mas da sociedade e de sua transformação não se desdobra em cidade: “da casa isolada não resulta hipótese urbana além da realidade a que se submete” (p. 109). O paradoxo, segundo os autores, torna-se mais evidente quando esse modelo é aplicado em propostas de áreas inteiramente novas, sem estrutura territorial predefinida, como no plano para Brasília, onde se reproduz em escala urbana esse ideal de espaço, ou no Conjunto Zezinho Magalhães, onde o espaço coletivo é o resíduo da multiplicação dos blocos. 

Ainda que essa tipologia residencial não seja compatível com a criação de um padrão urbano moderno, como demonstram Medrano e Recamán, é facilmente identificável que esta suscitou, a partir de então, a especulação do sentido de urbanidade sobretudo nas obras públicas, com resultados os mais variados. O atraso da construção civil brasileira que inviabilizaria a conformação da cidade moderna pode ser rebatido pela expressiva quantidade de arranha-céus construídos nas principais capitais brasileiras nas décadas de 1920 e 1930. O edifício Louveira (1946) de Vilanova Artigas, comentado rapidamente em uma nota de rodapé (p. 31), seria um projeto interessantíssimo a ser explorado nessa análise, tanto do ponto de vista construtivo como compositivo da cidade brasileira moderna, uma vez que propõe, a partir da unidade habitacional, nova forma de ocupação territorial integrada ao espaço tradicional. 

Assim como o rebatimento desse legado de Artigas na produção contemporânea, ilustrado pelos autores pelo artigo de Roberto Segre publicado na revista AV Monografias n. 139, 2009, talvez não seja o melhor exemplo. Primeiro, porque na análise de Segre o arquiteto de referência à produção contemporânea é Paulo Mendes da Rocha, que, por sua vez, teria se alimentado na fonte do Artigas. A omissão de uma etapa do percurso desse legado arrefece a autonomia de Mendes da Rocha em relação às ideias do mestre, bem como a sua participação na constituição desse legado. Em segundo lugar, as obras analisadas concentram-se entre 1940 e 1960, excluindo a trajetória subsequente do próprio arquiteto, quando projetou a maior parte de suas obras públicas, aprofundando suas teorias em estreito debate com seus colegas, especialmente os mais jovens, com o panorama internacional com contexto sociopolítico que sofreu mudanças radicais. Vale lembrar que, nesse meio século que separa as obras comparadas, foram muitas as apropriações desse legado paulista que acabaram por anuviar seu significado, reduzindo-o, na maioria dos casos, a poucos estilemas, que o livro Vilanova Artigas: Habitação e cidade na modernização brasileira certamente ajudará a recuperar. Além de a leitura inédita que os autores promovem, per si, representar uma contribuição à crítica da arquitetura, o método de análise a partir do projeto traz ao debate outros elementos que a historiografia até então não considerou, ampliando as possibilidades de interpretação desse legado criteriosamente resgatado pelos autores.


Mônica Junqueira de Camargo é arquiteta e professora-associada da FAUUSP na área de História da Arquitetura Moderna e Contemporânea.

 



SERVIÇO

Obra: Vilanova Artigas - Habitação e cidade na modernização brasileira
Autores: Leandro Medrano e Luiz Recamán
Páginas: 160
Área de interesse: Arquitetura e urbanismo
Preço: R$ 34,00
Editora da Unicamp