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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 27 de novembro de 2014 a 31 de dezembro de 2014 – ANO 2014 – Nº 616Estudo contribui com novos dados sobre crises epiléticas
Qualidade do trabalho desenvolvido na FCM foi reconhecida com o Prêmio Capes de Teses de 2014Pesquisa desenvolvida para a tese de doutorado da neurologista Ana Carolina Coan, defendida na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, aplicou de forma concomitante o eletroencefalograma e a ressonância magnética para identificar como as crises epiléticas ocorrem em pacientes com epilepsia de lobo temporal mesial (ELTM) de dois tipos: o que apresenta e o que não apresenta sinais de esclerose hipocampal. A combinação das técnicas permitiu a detecção de regiões cerebrais com atrofias sutis, que não seriam observadas somente por meio da análise visual das imagens geradas pela ressonância magnética. “Também pudemos constatar que o dano neuronal difere entre os indivíduos com uma forma e outra de epilepsia”, afirma a pesquisadora, que obteve o Prêmio Capes de Tese 2014 com o seu trabalho. O orientador do estudo foi o professor Fernando Cendes.
O diagnóstico da epilepsia, conforme Ana Carolina, normalmente é feito a partir de uma classificação que leva em conta o tipo de crise epilética descrita pelo paciente e por seus familiares. Com isso, os neurologistas conseguem definir qual região do cérebro é provavelmente a responsável pela manifestação. Assim, um indivíduo com epilepsia de lobo temporal normalmente descreve que sua crise tem início com “uma sensação de frio na barriga, que sobe para a garganta” ou com “um medo inexplicável”. Já o familiar informa que a pessoa “fica parada, com olhar perdido” e sem se comunicar. Todo o evento dura de um a dois minutos. “Hoje, saber que o paciente tem ELTM já é suficiente para decidirmos qual tratamento medicamentoso deve ser instituído. Entretanto, o diagnóstico não nos diz qual é a causa específica da síndrome”, explica a pesquisadora.
Para identificar a possível causa da epilepsia, o exame mais utilizado pela medicina é a ressonância magnética cerebral. As imagens geradas pela técnica revelam lesões localizadas nos lobos temporais, como tumores, sequelas de traumas cranianos ou acidentes vasculares cerebrais. Ocorre que essas lesões são responsáveis por somente 10% das ELTMs. Cerca de 70% delas são provocadas por uma atrofia denominada esclerose hipocampal, localizada no hipocampo, estrutura situada na parte interna do lobo temporal. Os outros 20% dos pacientes apresentam exames normais, ou seja, nesses casos a causa da epilepsia é desconhecida.
A tese defendida por Ana Carolina foca justamente os dois grupos mais representativos, que respondem conjuntamente por 90% dos casos de epilepsia de lobo temporal. A autora da tese observa que a despeito das causas das crises epiléticas serem diferentes, os pacientes são tratados de forma semelhante. O desafio que a pesquisadora se impôs foi procurar por marcadores na estrutura ou na função do cérebro de pacientes com epilepsia que ajudassem a compreender melhor como as crises ocorrem nos dois diferentes grupos. “Trabalhei com a hipótese de que, apesar de terem características clínicas parecidas, os dois tipos de ELTM deveriam apresentar diferenças na estrutura cerebral [definidas pelos neurologistas como redes neuronais estruturais], bem como nas suas conexões [redes neuronais funcionais]”, informa a autora da tese.
Para tentar identificar esses pormenores, a pesquisadora valeu-se da combinação do eletroencefalograma e da ressonância magnética. A composição das duas técnicas, classificadas de “multimodais”, proporcionam maior precisão de diagnóstico, dado que elas se complementam. “O eletroencefalograma nos dá informações sobre a atividade cerebral com uma resolução temporal excelente, da ordem de milissegundos, mas tem uma resolução espacial ruim. Por outro lado, a ressonância magnética tem uma resolução espacial muito boa - é possível visualizar com precisão toda a anatomia cerebral -, mas uma resolução temporal ruim, da ordem de vários segundos. O uso das duas técnicas ao mesmo tempo permite somar informações”, esclarece.
Em complemento às duas técnicas, Ana Carolina usou softwares especiais que possibilitaram a realização de medidas específicas nos dois grupos de ELTM. “Graças a essa abordagem, nós conseguimos detectar várias regiões cerebrais com atrofias sutis, que não seriam identificadas apenas por meio da avaliação visual das imagens geradas pela ressonância magnética. Os resultados confirmaram a nossa hipótese inicial, pois verificamos que o dano neuronal difere entre os dois grupos de pacientes. Ademais, constatamos que outros dados clínicos, como a frequência das crises epiléticas, também têm influência nessa rede de dano neuronal estrutural dos pacientes”, resume a pesquisadora.
Já as redes neuronais funcionais foram detectadas por intermédio das alterações de fluxo sanguíneo cerebral, observadas nos exames de ressonância magnética realizados no momento em que o eletroencefalograma mostrava a ocorrência de descargas epiléticas inter-ictais [descargas cerebrais que ocorrem mesmo quando os pacientes não estão tendo crise]. “Apesar das descargas observadas nos eletroencefalogramas dos dois grupos de pacientes terem sido semelhantes, as redes neuronais funcionais observadas se mostraram diferentes”, revela a autora da tese. Ao todo, segundo Ana Carolina, foram estudados 150 portadores de epilepsia.
Uma das grandes vantagens do estudo, de acordo com a neurologista, é que ele tem como base exames que são realizados rotineiramente para o diagnóstico e o acompanhamento dos pacientes com ELTM. “A diferença fundamental é que, na pesquisa, nós utilizamos softwares especializados para fazer análises mais detalhadas desses exames”, reforça. O trabalho desenvolvido por Ana Carolina foi direcionado, ainda, a pacientes que apresentam crises refratárias ao uso de medicações antiepiléticas. Para esses indivíduos, uma possibilidade é o tratamento cirúrgico, com a remoção da região específica do lobo temporal responsável pelos sintomas.
O tratamento cirúrgico, entretanto, demanda uma investigação complexa, que inclui a realização de outros exames, a fim de definir qual região do cérebro deve ser removida e se essa remoção será capaz de controlar as crises, sem causar danos aos pacientes. Mesmo assim, no longo prazo, somente 60% dos indivíduos operados permanecem livres de crise. “Com o uso concomitante do eletroencefalograma e da ressonância magnética, pudemos identificar quais pacientes poderiam se beneficiar da cirurgia. Em outras palavras, mostramos que o uso dessas técnicas pode ajudar a selecionar melhor os pacientes que devem ser submetidos a esse tipo de intervenção”, enfatiza a neurologista.
Segundo Ana Carolina, que realiza atualmente o pós-doutorado nos Estados Unidos, mais especificamente na Cleveland Clinic Foundation, o estudo terá continuidade em duas distintas linhas. A primeira delas dará seguimento às investigações para tentar desvendar como a rede de dano estrutural se desenvolve nos pacientes com ELTM, assim como o motivo de ela ser diferente entre pacientes com esclerose hipocampal e não lesionais. “Também estamos estendendo a análise do uso concomitante do eletroencefalograma e da ressonância magnética na avaliação pré-operatória de pacientes com outros tipos de epilepsias”, adianta.
Questionada sobre como recebeu a notícia de que a sua pesquisa havia sido contemplada com o Prêmio Capes de Tese 2014, Ana Carolina afirma que se sentiu honrada. “É sempre um grande incentivo ter o seu trabalho reconhecido. Acima de tudo, sinto-me privilegiada por ter a possibilidade de trabalhar em um grupo de pesquisa multidisciplinar, bem estruturado e com importante reconhecimento internacional, sob a supervisão do professor Fernando Cendes. O prêmio é sem dúvida fruto de horas de dedicação, mas ele nunca seria possível sem a estrutura física e humana que temos no Laboratório de Neuroimagem da Faculdade de Ciências Médicas Unicamp”, considera.
A síndrome
A epilepsia é provavelmente tão antiga quanto o próprio homem. Há relatos de que os povos antigos consideravam os portadores da síndrome como seres tomados por maus espíritos ou demônios. Não por acaso, a palavra “epilepsia” vem do grego epilambanein, que significa tomar, capturar, possuir. É considerada uma síndrome, caracterizada por crises espontâneas e recorrentes. No Brasil, ela atinge entre 1% e 2% da população, o que representa um contingente de 2 a 4 milhões de pessoas. Já a epilepsia de lobo temporal mesial (ELTM) corresponde a mais da metade das epilepsias em adultos.
Publicação
Tese: “Diferenças clínicas e de alterações cerebrais estruturais e funcionais entre epilepsias de lobo temporal mesial com e sem sinais de Esclerose Hipocampal”
Autora: Ana Carolina Coan
Orientador: Fernando Cendes
Unidade: Faculdade de Ciências Médicas (FCM)