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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 11 de maio de 2015 a 17 de maio de 2015 – ANO 2015 – Nº 624O canto em sua plenitude
Ao percorrer a obra vocal do cantor e compositor Milton Nascimento, a pesquisadora da Unicamp Thaís dos Guimarães Alvim Nunes identificou manipulações da própria voz realizadas pelo artista, numa escolha consciente ao longo de sua carreira. A estudiosa toma emprestado o referencial teórico do pensador medievalista Paul Zumthor (1915-1995) para observar que a obra vocal de Milton Nascimento assume “uma performance enquanto produtora de sentido”, pois se relaciona com aquelas que a precederam e com aquelas que a seguirão. Trata-se, segundo ela, de uma “movência” enquanto criação contínua.
“As nuances timbrísticas que Milton Nascimento explora lhe dão liberdade para transitar, preencher, provocar e promover diálogo entre sua voz e ela mesma. O título do meu estudo é ‘A voz de Milton Nascimento em presença’. Esta ‘presença’ está relacionada à exploração do instrumento, ao uso variado e à ‘atualização’ que Milton faz da própria voz ao longo de sua história artística. A cultura popular tem muito desta ‘movência’. E o Milton Nascimento tem um modo de fazer que encontra ecos na oralidade, por valorizar o contato direto e presente com os indivíduos com os quais divide sua expressão musical, seja através da voz, das composições, dos arranjos e das gravações.”
Desde o início da carreira, Milton Nascimento manifesta essa “movência” no uso da voz, exemplifica Thaís Nunes. “O seu segundo disco foi gravado nos Estados Unidos, com músicos do jazz. Depois, ele grava com músicos da banda Som Imaginário que tem a influência do rock. Em seguida grava novamente com outros músicos do jazz. Entre os anos de 1980 e 1990 ele visita uma tribo indígena para ouvi-los cantando. Todos aqueles movimentos que o Milton faz em presença, ele vai explorando na sua voz de forma consciente.”
Ainda de acordo com ela, o cantor e compositor valoriza a presença física nas trocas culturais e nos processos de criação e registro, tanto no interior do Brasil, como fora dele. Thaís Nunes considera que essa valorização da presença possibilita ao músico agregar qualidades e expressões musicais diversas, atestando a força expressiva da voz humana, embora submetido à lógica de mercado da produção cancional. Ela afirma que Milton Nascimento foi capaz de superar padrões e extrapolar fronteiras ao exprimir desde os sons mais orgânicos, como gemidos, sussurros e gritos, passando pela fala e o canto em sua plenitude, indo do grave masculino ao agudo feminino, com ou sem palavras.
“Percebemos que o artista vai construindo suas vocalidades ao longo da carreira. Isso está amparado no diálogo que ele estabelece com suas próprias composições, seja por meio da variedade melódica, do amplo preenchimento do campo da tessitura, dos diferentes caminhos harmônicos e dos ritmos diversificados e variantes. Milton cria através da voz o que o impulsiona a cantar tanto melodias subjacentes quanto de superfície”, analisa.
“A Voz de Milton Nascimento em presença” é resultado da pesquisa de doutorado de Thaís Nunes, defendida recentemente junto ao Programa de Pós-Graduação em Música do IA. Em seu estudo, a pesquisadora analisou a voz de Milton Nascimento em 38 discos, constituídos por 326 composições, dentre instrumentais e canções.
O trabalho foi orientado pelo professor Antônio Rafael Carvalho dos Santos, que atua no Departamento de Música do IA. Thaís Nunes é docente do Departamento de Artes e Comunicação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), no curso de Licenciatura em Música. Ela é bacharel e mestre em Música Popular pela Unicamp.
Clube da Esquina nº 2
A canção Clube da Esquina nº 2, de Milton Nascimento e dos irmãos Márcio e Lô Borges, exemplifica muito bem esta “movência” do artista enquanto criação contínua, esclarece a pesquisadora do IA. Clube da Esquina nº 2 foi retomada por Milton Nascimento ao longo da carreira. A primeira gravação, apenas instrumental, ocorreu em 1972. Em 1979, Lô Borges regrava a música em seu disco A Via Láctea. Milton Nascimento produz e coordena o álbum do amigo. Já em 1993, 21 anos depois da primeira gravação, Clube da Esquina nº 2 volta ao disco Angelus, o 25º do cantor.
“O Milton retém elementos de 1972, trazendo, ao mesmo tempo, modificações harmônicas da gravação de 1979 de Lô Borges, para produzir, em 1993, uma obra totalmente nova. Na melodia, por exemplo, ele pega um trecho improvisado na gravação de 1972 e inclui como linha de arranjo na gravação de 1993. Do ponto de vista vocal, a primeira gravação é bem linear. Já em 1993 ele flexibiliza ritmicamente a melodia, diminui o andamento e usa a respiração para dar sentido ao texto da canção. Ao abaixar o tom da música, Milton possibilita outras nuances vocais, abre uma área grande para experimentar com a voz, modificando a melodia e cantando de regiões graves a extremamente agudas”, observa.
Três fases vocais
De acordo com o estudo conduzido por Thaís Nunes é possível identificar três fases mais ou menos distintas na trajetória vocal de Milton Nascimento. A primeira delas está localizada no início da carreira, entre os anos de 1967 a1969; a segunda, entre 1970 e 1979; e a terceira, nos anos de 1980 e 1990.
Em todas estas fases, ressalta Thaís Nunes, Milton Nascimento expressa a valorização do coletivo. No estudo, ela escreve que a voz do cantor e compositor é endereçada ao outro, aos amigos, aos parceiros, aos músicos. “É nesta relação de parceria e cumplicidade que ele vai compondo timbres, ajustando emissões, construindo maneiras de dizer, realizando misturas, arriscando caminhos mais incomuns, incorporando gestos vocais e montando seus quadros de fotografias sonoros.”
Na primeira fase, a qual integram os discos Travessia (1967), Courage (1969) e Milton Nascimento (1969), o músico explora o registro modal da voz nas três regiões - grave, média e aguda - já com ampla tessitura, e sonoridade mais homogênea e contida.
“No início desta fase há referências à bossa nova, do próprio samba canção, de um canto que é mais dramático ou que é mais suavizado. No final, no último disco de 1969, Milton inaugura o uso do falsete como um recurso timbrístico, que é emitido com leveza. O final desta primeira fase, marcada por uma entonação predominantemente cantada, já sinaliza a ‘movência’ da voz que veremos ser intensificada nos anos de 1970”, sinaliza.
O segundo período abarca o conjunto de 10 discos: Milton (1970); Clube da Esquina, (1972); Milagre dos Peixes (1973); Milagre dos Peixes ao Vivo (1974); Minas (1975); Native Dancer (1975); Geraes (1976); Milton (1976); Clube da Esquina 2; e Journal to Down (1979).
“É a confirmação de que ele começa a trazer o experimentalismo, o ruído, sem perder a voz contida quando quer fazer, mas trazendo elementos de projeção. A década de 1970 é constituída com discos que são verdadeiras joias do ponto de vista vocal e musical de Milton Nascimento. Observamos um panorama de uso da voz impressionante. A voz é utilizada como melodia principal da canção, ou como música instrumental, voz sem a letra, portanto presente como instrumento. Ele realiza muitos contracantos também, em que a voz entra como parte do arranjo”, analisa.
A terceira fase é composta por 17 discos gravados, dos quais sete são ao vivo. É o período em que Milton se volta para o grande público, como solista inserido na grande indústria fonográfica. Entre os discos, estão: Sentinela (1980); Caçador de Mim (1981); Plante Blue na Estrada do Sol (1981); Anima (1982), Missa dos Quilombos (1982); Milton Nascimento ao Vivo (1983); Corazón Americano (1984); Encontros e Despedidas (1985); A Barca dos Amantes (1986); Yauaretê (1987); Miltons (1988); Txai (1990); Angelus (1993), Amigo (1995); Nascimento (1997); Os Tambores de Minas (1998) e Crooner (1999).
“É um Milton cantando para grandes públicos. Vamos ver, por exemplo, canções que atingiram grandes massas, como Coração de Estudante e Canção da América. Ele canta em parceria com vozes consagradas da música popular brasileira como Nana Caymmi, Caetano Veloso e Simone, Gal Costa. Há valorização das frequências agudas na equalização da voz nos discos. Inaugura-se o uso do falsete com sonoridade mais tensa, com emissão mais projetada, frontal e incisiva.”
Publicação
Tese: “A voz de Milton Nascimento em presença”
Autora: Thaís dos Guimarães Alvim Nunes
Orientador: Antônio Rafael Carvalho dos Santos
Unidade: Instituto de Artes (IA)