Unicamp
Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 08 de junho de 2015 a 14 de junho de 2015 – ANO 2015 – Nº 627Quando a brincadeira integra o aprendizado
Segundo o educador infantil, é nítida a diferença quando, na educação infantil, se leva em conta a classe social. Ao se pensar numa educação para as classes populares, e especificamente no trabalho feito com movimentos sociais abertos a transformações, a educação infantil também sugere modificações. É necessário mudar a racionalidade “adultocêntrica” para entender as crianças como sujeitos. A conclusão é de Fábio, em sua dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Educação (FE). A prática educativa surge então de uma reflexão sobre a educação vinculada às classes populares, ao interesse de mudança do mundo e às crianças como sujeitos. Esse tipo de educação, garantiu ele, traz a ideia de que as crianças, ao brincarem, têm a chance de ser o que são, pois é o modo de conhecerem e modificarem o mundo. “Outras questões envolvem transformar a relação adultocêntrica na sociedade e o problema da marginalização e da criminalização do MST que ainda vigora no país.” Foi assim que Fábio tentou, em sua pesquisa, orientada pela professora Ana Lúcia Goulart de Faria, aproximar a educação infantil da educação popular, dois campos com perspectivas de trabalho diferentes. Fez isso a partir da sua trajetória de pesquisador e como integrante do coletivo de extensão “Universidade Popular” da Unicamp, que atua com educação popular nesse pré-assentamento em Limeira. O mestrando contou como, sendo sociólogo, tornou-se educador infantil, graças a uma demanda da comunidade. O coletivo, informou ele, já trabalhava com a educação popular. Os textos de Paulo Freire e de outros educadores populares forneceram as bases para que conhecesse melhor a Educação de Jovens e Adultos (EJA). Nesse ínterim, surgiu o trabalho com as crianças. O pré-assentamento de Limeira começou com 200 famílias e hoje conta com 150, somando cerca de 300 pessoas. Trata-se de uma área rural onde passava a linha de trem que pertencia à antiga estrada de ferro da Ferrovia Paulista S.A. (Fepasa). Em sua falência, tornou-se área pública da União. “Na sua ocupação, isso representou a denúncia, mas também a possibilidade de fazer um projeto de reforma agrária”, relatou. Por conta de interesses da Prefeitura, dos fazendeiros e do setor empresarial da região, a área ainda está em disputa e se configura como um acampamento em processo de legalização, em acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que deve comprá-la no prazo máximo de um ano, formalizando a área como um assentamento rural. Enquanto isso, as famílias continuam morando num local com uma infraestrutura precária, em barracos de lona e de pau a pique. Fábio explica que, como educador popular, nunca direcionou nenhum trabalho no assentamento. Ao contrário, a comunidade organizada fez isso. A iniciativa contemplou a educação para as crianças que estudavam em escola formal e que lidavam com vários obstáculos. De acordo com Fábio, o MST construiu – ao longo de sua trajetória – uma proposta pedagógica para as crianças, para os assentados e para a comunidade: a Pedagogia do Movimento Sem Terra. Para as crianças especificamente, a proposta educativa é o espaço da Ciranda Infantil, experiência que vem de Cuba, dos Círculos Infantis. BRINCADEIRAS As mulheres que ficavam com as crianças em casa e que não podiam trabalhar ou participar das instâncias do MST começaram a priorizar a educação dos seus filhos, uma vez que, ao irem para a escola, essas crianças eram vítimas de preconceito. Quando teve início o MST, elas iam para a escola com os pés sujos de terra e então muitos coleguinhas passaram a dizer que eram invasoras, que não tinham onde morar. As mães se mobilizaram, bem como o Movimento, para lutar por escolas do campo nos assentamentos. Ao mesmo tempo, começaram a construir uma proposta de um espaço autônomo onde o MST tivesse condições de refletir sobre a sua própria proposta de educação. O assentamento de Limeira não tinha propriamente um espaço físico para a Ciranda Infantil, mesmo após várias tentativas de construção. E o que é pior: o espaço social do assentamento foi se perdendo. Restaram o barracão, a cozinha, a biblioteca e uma escola em alvenaria, recém-construída por meio de um mutirão. Nesse lugar, se convencionou realizar as aulas de EJA e as atividades com as crianças. Mas as discussões lá correm no sentido de que o espaço da Ciranda Infantil deva ser apenas das crianças. Como o espaço é compartilhado, tem sempre algum atrito com os adultos. “Um dos principais é o adultocentrismo. Na sociologia da infância e a partir da educação popular, sempre se investiga como é que os adultos olham para as crianças. Em geral, são olhadas como adultos que poderão ser, negando aquilo que já são como crianças”, contou. Algumas crianças brincam e fazem bagunça no espaço social. Esse modo de ser entra em conflito com a concepção do adulto de que tudo deve estar organizado. “No estudo, trabalhamos como podemos olhar para as crianças como sujeitos sociais. Afinal, elas pensam e raciocinam, porém à sua maneira”, salientou. PROJEÇÃO A Ciranda Infantil é o espaço das crianças entenderem seus processos e por que elas e suas famílias estão ali, para de fato estarem no mundo como crianças, atentou o pesquisador. “Esse projeto não é um espaço de alfabetização. É um espaço de brincadeira, porque é como elas conseguem entender o mundo. Ao brincarem, vão pensar como ele é.” Em consequência, todas as atividades são feitas mediante brincadeiras. Foi desta maneira que Fábio buscou criar ligações com a educação popular, lembrando de Paulo Freire, que disse que antes de tudo vinha o conhecimento da palavra “mundo”, a leitura no mundo imediato e possível, o qual as crianças já fazem mesmo sem saber ler ou escrever com as palavras. Além de Paulo Freire, Fábio refez a trajetória das propostas que emergem da educação popular na História do Brasil, em geral ligadas às classes populares. Utilizou experiências a partir do século 20, como as dos anarquistas, dos socialistas e depois do Movimento de Cultura Popular da década de 1960, silenciado e colocado na ilegalidade pela ditadura, vindo depois a educação dos e nos movimentos sociais a partir da década de 1980. Ele empregou especialmente a Pedagogia do Movimento Sem Terra. “Paulo Freire não se atentou para falar da educação das crianças em nenhuma obra específica. A educação popular não tinha como foco as crianças, mas sim os adultos analfabetos. Então essa foi uma grande dificuldade para fazer a aproximação da educação popular com as crianças. A minha pergunta foi por que promover uma aproximação se a educação popular não falava da criança. Daí fui tentando entender de que maneira a prática e a teoria poderiam ajudar nisso”, situou Fábio. O pesquisador entendeu que as crianças são as crianças como sujeitos: elas leem o mundo, não leem as palavras, entretanto compreendem seu mundo e fazem a leitura do mundo, transportando isso para suas brincadeiras. Na Ciranda Infantil, o autor do estudo trouxe as experiências de brincadeiras em que as crianças se mostravam como sujeitos. As próprias crianças realizaram uma marcha em defesa de um outro assentamento da região que estava sendo despejado pela polícia. “Então elas expunham seus problemas e suas vontades como crianças, nas brincadeiras.” LIBERDADE Nesse assentamento, a Ciranda Infantil era organizada em alguns tempos educativos: momento da roda, da brincadeira, do café e das atividades. As rodas de conversa iniciavam os encontros e era quando surgiam temas da semana para serem debatidos. As atividades normalmente passavam pela contação de histórias, brincadeiras, desenho, pintura. Fábio informou que eles utilizavam muito a relação com a comunidade. Um viveiro pedagógico, por exemplo, foi idealizado por um dos assentados para empregar em atividades educativas com as crianças. No trabalho com o viveiro, as crianças criaram um ‘monstro do enxerto’, o Chamaru. “O assentado ensinou às crianças como fazer um enxerto e como plantar mudas. Essa atividade aconteceu durante contação de histórias de mitos africanos. A estratégia requereu a relação com um adulto mais velho, que tinha muitas experiências a dividir”, comentou. Essa relação foi se transformando em histórias, em brincadeiras e em música que as crianças fizeram para o monstro. “E, uma vez que fomos à mina d´água, uma nascente do rio que passa dentro do pré-assentamento, plantamos mudas no entorno e brincamos na água.” O mestrando acredita que o conhecimento do processo propicia às crianças um espaço para a criação de identidade: se reconhecerem como sujeitos e reconhecerem a luta de seus pais. “A intenção é que, ao irem para a escola e sofrerem preconceito, tenham orgulho de serem ‘sem terrinhas’”, acentuou Fábio, que se graduou em Ciências Sociais no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e que, por conta de seu trabalho, se tornou educador infantil, desenvolvendo o mestrado na FE.
Publicação Dissertação: “Educação Infantil Popular: possibilidades a partir da Ciranda Infantil do MST” Autor: Fábio Accardo de Freitas Orientadora: Ana Lúcia Goulart de Faria Unidade: Faculdade de Educação (FE) |