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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 08 de junho de 2015 a 14 de junho de 2015 – ANO 2015 – Nº 627Tradição alemã de estudos de Marx desconhecida no Brasil
Durante a Primeira Guerra Mundial Lenin pôs-se a ler a Lógica de Hegel, com a declarada intenção de compreender em profundidade as bases da dialética pela qual Marx havia criticado a economia política e apresentado as formas constitutivas do modo de produção capitalista. Mais tarde, essa pista, seguida por Roman Rosdolsky em seu estudo crucial sobre os Grundrisse, levou aos importantes resultados expostos no livro de Helmut Reichelt, enfim traduzido do alemão e publicado pela Editora da Unicamp. Reichelt propõe-se ir além de Rosdolsky, que teria se limitado a citar textos de Marx de evidente ressonância hegeliana, mas sem esclarecer o sentido da sua aproximação a Hegel. É um esclarecimento desse tipo que o presente livro oferece, ao reconstituir e analisar em minúcia a passagem estratégica da circulação simples de mercadorias ao capital, tema pelo qual começam todos os escritos de Marx desde os Grundrisse até O capital. Com esse trabalho, Reichelt se coloca entre os principais continuadores de uma tradição alemã de estudos marxistas, tão importante quanto pouco conhecida do público brasileiro. Autores como Backhaus, Hartmann, Theunissen, Fulda, Göhler, entre outros, sempre consideraram enganosa a confissão de Marx de ter apenas “flertado” com a filosofia de Hegel e lançaram-se à tarefa de estabelecer com rigor os limites e o sentido da relação entre dialética idealista e materialista.
Embora o título, Sobre a estrutura lógica do conceito de capital, anuncie um problema da obra madura de Marx, o livro começa buscando nos escritos de juventude alguns dos motivos principais que reapareceriam depois, bastante modificados. Entre os Manuscritos de Paris e a Ideologia Alemã, Marx teria elaborado uma crítica da sociedade burguesa marcada pelas categorias de “distorção” e de “duplicação”. De acordo com elas, a vida humana perde o vínculo com a natureza e origina um conjunto de diferenciações, tais como base e superestrutura, ou como as facetas da existência do burguês, que depende dos demais para viver, mas que deve se afirmar pela competição. Esse “autoesfacelar-se e autocontradizer-se” da vida burguesa tem como fundamento a propriedade privada, definida por Reichelt como o oposto do direito natural do trabalho: ela não surge da extensão da prerrogativa de quem produz, como pretende a teoria liberal, mas, ao contrário, da ruptura desse direito pelo despojamento do trabalhador direto. Ela é intrinsecamente negativa, daí toda a negatividade característica da sociedade burguesa, a contradição que a move e a paralisa.
Apesar de encontrar essa estrutura dialética nos escritos de juventude, Reichelt confessa, afinal, que seu propósito era deixar claro o quanto as categorias de “alienação” e de “estranhamento” são a forma ainda insatisfatória com que Marx compreendia a proletarização, sobre a qual fundará a crítica do capitalismo e da economia política. Da propriedade privada, de fato, Marx deriva os conceitos de valor e de capital, mediante os quais articulará a exposição dialética das categorias da sociedade burguesa na fase da sua obra que se inicia com os Grundrisse. É essa exposição que constitui o objeto central do livro de Reichelt.
Segundo Reichelt, Marx teria empreendido um novo estudo sobre Hegel ao redigir as anotações que foram depois de sua morte publicadas como os Grundrisse. Nesse estudo, muito mais extenso e profundo que o declarado, tomou corpo a ideia de uma exposição dialética, ao mesmo tempo crítica e sistematizadora das formas econômicas fundamentais do capitalismo. Não se trata de uma mera “aplicação” do método dialético hegeliano nem de qualquer outro, pois a dialética justamente impõe a unidade entre conteúdo e forma, isto é, entre o objeto analisado e a estrutura conceitual, unidade que permite conhecê-lo adequadamente. O estudo crítico do capital então iniciado por Marx só poderia adotar uma forma de exposição que explicitasse a contradição imanente desse sistema e que a fizesse aparecer como a matriz geradora de todas as formas sociais e de todos os conceitos do pensamento burguês.
Reichelt alega a enormidade da empreitada de reconstituir essas muitas formas e conceitos ao longo da exposição dos três volumes de O capital, para concentrar esforços na já referida passagem do valor, tal como se apresenta na seção sobre a circulação simples de mercadorias, para o valor que se valoriza. Para isso ele retoma as três determinações sucessivas do dinheiro – medida de valor, no preço; meio de circulação; e dinheiro autonomizado da mercadoria, isto é, entesourado ou usado como meio de pagamento. Nessa última, em especial, o dinheiro aparece na forma que antecede à do capital, como um fim em si mesmo cujo conteúdo já pode ser posto na fórmula D-M-D. A discussão aqui é muito interessante, por repercutir diretamente no problema atual da necessidade do padrão-ouro para o conceito de dinheiro de Marx. Se fosse esse o caso, o conceito ficaria comprometido em sua capacidade de esclarecer a situação da economia mundial depois de 1971, quando os EUA desvincularam o dólar do lastro em ouro. Reichelt fornece bons argumentos para a interpretação contrária, mantendo Marx no debate atual e também garantindo o papel do conceito de dinheiro como pressuposto da dedução do capital.
Jorge Grespan é doutor em Filosofia pela Unicamp e professor do Departamento de História da USP.
SERVIÇO
Título: Autor: Helmut Reichelt Tradução: Nélio Schneider Editora da Unicamp Páginas: 272 Áreas de interesse: Ciências sociais e História Preço: R$ 54,00 |