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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 08 de junho de 2015 a 14 de junho de 2015 – ANO 2015 – Nº 627Um pacto (e a vida) em HQ
A primeira imagem da dissertação de mestrado da pesquisadora Aline de Alvarenga Zouvi mostra a escritora e quadrinista Alison Bechdel desenhando um quadro dentro de outro quadro, sucessivamente. O exercício de metalinguagem representa o questionamento que a autora faz sobre a representação de si mesmo, aliada ao recurso do desenho, na autobiografia, como faz Bechdel. “A gente se expõe, mas não necessariamente expomos a verdade sobre nós”, reflete a autora da pesquisa, que tinha como objetivo entender o que os teóricos chamam de “pacto autobiográfico”, na obra da quadrinista, ou seja, o entendimento que há entre leitor e autor de que o que está sendo dito na obra não pode ser questionado a todo o momento. “O leitor não pode querer investigar tudo o que está escrito ali. O pacto é inspirado em uma noção de referencialidade, de correspondência entre o nome do autor e o nome do personagem principal. Isso leva em conta o processo de registro da memória, que não é exato”.
Para Aline, que também é escritora e desde o início do mestrado também começou a desenhar, os quadrinhos são fragmentos que, como cacos de vidro, vão se unindo e constituem uma ferramenta muito apropriada para contar uma história de vida. “Minha hipótese principal em relação ao trabalho de Bechdel, seria de que a produção funciona a partir do momento em que o autor tem consciência de que não conseguirá alcançar seu objetivo final que é contar uma história como aconteceu. Ele sempre vai ser trazido de volta para a ficção”.
Alison Bechdel começou a ser conhecida do público nos anos 1980, a partir da publicação da série de quadrinhos Dykes To Watch Out For, sobre um grupo de amigas, a maioria mulheres lésbicas, vivendo em uma cidade fictícia nos Estados Unidos. “A popularização da série se deve não apenas ao talento da quadrinista, mas à necessidade das lésbicas de se verem representadas na cultura – algo que, se hoje não se vê com tanta frequência, nos anos 80 era ainda mais escasso”, afirma Aline. Ali aparece uma fala entre as personagens que acabou se desdobrando em um “teste”, aplicado para aferir a participação feminina na arte, especialmente no cinema. São aprovados no “teste de Bechdel” os filmes que apresentam mais de uma personagem feminina; se elas conversam entre si e se a conversa trata de qualquer assunto que não seja um homem. Para a surpresa de muitos, um grande número de filmes não passa no teste.
Em 2006, a quadrinista publicou Fun Home – A Family Tragicomic, sua primeira HQ autobiográfica no formato de livro. A obra é sobre o período da infância de Bechdel até a sua juventude, e sobre a relação que tinha com o seu pai, Bruce Bechdel. Aline ressalta a presença da literatura no HQ “tanto como parte dos cenários, nos desenhos, como na estrutura do texto da autora, por meio de ironias e paralelos que constrói, principalmente com autores modernistas de língua inglesa e francesa: [James] Joyce, [Marcel] Proust, [Albert] Camus”. Neste livro também está o processo da descoberta como lésbica.
A segunda obra, Are you my mother?, foi lançada em 2012 e narra a fase adulta da autora. “A HQ é voltada para a relação entre Alison e sua mãe, novamente marcada pela presença da literatura e de seus paralelos”. Aparecem neste livro, observa, os impasses de autobiografar-se, e a as sessões de terapia que frequentou, expondo algumas das crises pelas quais passou em sua vida pessoal e artística.
RELEVÂNCIA
Não é novidade que exista quadrinho adulto e autobiográfico. Basta lembrar os HQs de Robert Crumb ou Harvey Pekar, a partir dos anos 1960, quando criaturas fantásticas deram lugar aos desenhos que retratavam os dilemas e frustrações de sujeitos comuns da classe média norte-americana. “O trabalho de Alison Bechdel chama a atenção pela forma como ela explora o quadrinho como mídia, como faz uso da estrutura da página, a desestabilização que ela cria na mistura entre imagem e texto”, salienta Aline.
A pesquisadora encontrou paralelos entre a obra da quadrinista e o trabalho de Art Spiegelman, autor que narra em HQ a história do pai, sobrevivente do holocausto, transformando judeus em ratos e alemães em gatos. “A estrutura de abertura de capítulos, a presença do texto de forma muito massiva, a ocupação do espaço da imagem só com texto são pontos comuns”.
Para registrar a própria vida em quadrinhos, Bechdel lança mão da metalinguagem como recurso para simular o momento em que algum objeto se transforma em arquivo. “Texto e imagem têm o mesmo valor, ela copia o momento em que ela registra a própria vida, criando um efeito de abismo, como se o leitor tivesse acesso aos arquivos que ela usou para fazer a autobiografia dela”. É o caso de uma imagem da autora chorando debruçada sobre um telefone. Primeiro o desenho é mostrado e, páginas à frente, a autora revela como foi produzida a cena, o momento em que ela tira uma foto dela mesma para usar como referência para a construção do próprio corpo.
Bechdel, de acordo com a pesquisadora, procura dar ao desenho o mesmo status do texto, como forma de legitimar o quadrinho como mídia, veículo de expressão tão “confiável” quanto à literatura. “Em Fun Home ela faz uso da combinação dos quadrinhos de texto e imagem para reproduzir inúmeros documentos que contribuem para reconstruir sua história e a de seu pai: fotos, jornais, cartas, páginas de livros, bilhetes”. Ainda na segunda obra, vez por outra, o texto retirado de obras da psicanálise ocupa um quadro.
Outro recurso citado por Aline é o uso do desenho de situações como a autora gostaria que tivesse acontecido, e não como foi de fato. “Às vezes ela escolhe desenhar o que ela imaginou e isso traz mais questionamentos ainda porque existe uma quebra de unidade que faz a gente repensar como trabalhamos e confiamos em certos registros de verdade. Ela usa esse espaço para questionar a nossa relação com os relatos verídicos”.
Mas trazer questionamentos ao leitor é uma consequência. Bechdel, segundo Aline, utiliza os quadrinhos para reconstruir suas histórias, especialmente aquelas situações traumáticas, em uma espécie de função terapêutica da autobiografia. “O ato de se redesenhar tem essa função, que não é algo egocêntrico, mas uma possibilidade de se ressignificar”.
Mas o que faria da exposição desses autores algo relevante, uma vez que nunca foi tão grande a oferta de histórias pessoais nas redes sociais e em outras mídias? “Eu acho que eles fazem, justamente, essa problematização. Temos essa relação com a produção constante de autobiografias em qualquer mídia e ao mesmo tempo cada vez menos confiança em algo referencial. A consciência desses autores de que eles não podem expressar necessariamente a verdade, e essa vontade de explorar os quadrinhos como ferramenta, é o que é válido”. Aline acredita que a produção de autobiografias em quadrinhos fortalece o HQ como mídia especialmente em seu potencial para a expressão de grupos que não se sentem representados no geral. E serão sempre lidos porque desconfiam de si mesmos.
Publicação
Dissertação: “A performance autobiográfica nos quadrinhos: um estudo de Alison Bechdel”
Autora: Aline de Alvarenga Zouvi
Orientador: Fabio Akcelrud Durão
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)