Edição nº 635

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 31 de agosto de 2015 a 06 de setembro de 2015 – ANO 2015 – Nº 635

Tese aborda reações do pai
a transtorno alimentar da filha

Pesquisa revela que, no início da bulimia e da anorexia, sintomas são negligenciados

Elas são bonitas, muito jovens, têm os corpos bem-feitos, mas não se enxergam desse modo. Elas se veem gordas e com uma visão distorcida de si. Com o tempo, ficam com a alimentação por demais seletiva, restritiva, emagrecem de repente ou então comem compulsivamente e logo querem se livrar do alimento que ingeriram. 

Esses comportamentos refletem transtornos alimentares presentes em duas doenças: a anorexia nervosa, caracterizada pelo emagrecimento patológico resultante de uma dieta alimentar rígida e insuficiente, e a bulimia nervosa, na qual se observam episódios de compulsão alimentar seguidos por comportamentos inadequados e perigosos que têm como finalidade a perda de peso rápido. 

Como obter apoio? A mãe naturalmente é a primeira a oferecê-lo. Mas o que dizer sobre o pai? Uma pesquisa de doutorado desenvolvida na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) indicou que, quando os primeiros sintomas aparecem, os pais não valorizam a perda de peso, por acharem que se trata apenas de um “regimezinho”. Mas, quando percebem a gravidade da doença (que pode levar à morte), estendem as mãos e fazem de tudo para ajudar, buscando desesperadamente um tratamento.

O estudo sugeriu, no entanto, que, após a tempestade, vem a bonança. Os pais se aproximaram mais de suas filhas, com as quais passaram a dialogar melhor. Eles atribuíram esse ganho ao tratamento multiprofissional que receberam. Algumas pacientes e seus pais tiveram a sensação de que precisaram da doença para que amadurecessem nesta relação. Foi o “lado bom” do transtorno alimentar.

Essas foram algumas das conclusões do psiquiatra Celso Garcia Júnior, autor desse projeto e coordenador do Grupo Multidisciplinar de Assistência e Estudos em Transtornos Alimentares (Geta) do HC, que contou com a orientação do professor Egberto Ribeiro Turato, pesquisador-líder do Laboratório de Pesquisa Clínico-Qualitativa.

Dos tratamentos disponíveis hoje, segundo o especialista, a abordagem multiprofissional (com psiquiatra, psicólogo, nutricionista e acompanhamento dos pais e familiares) tem sido a mais efetiva. “Obviamente os casos mais leves podem até não requerer todos esses especialistas, mas o acompanhamento multiprofissional é o preconizado pela literatura científica internacional”, destaca. “Nos casos mais graves, o paciente pode necessitar de internação hospitalar.” 

Atualmente, não existem evidências de que medicamentos sejam eficazes no tratamento da anorexia nervosa. No caso da bulimia, a fluoxetina pode ser útil, desde que associada à abordagem nutricional e psicológica.

TRABALHO

O médico explica o que diferencia a anorexia e a bulimia. De acordo com ele, na anorexia nervosa nota-se uma perda de peso intensa e intencional em função da diminuição da ingesta alimentar causada pelo medo de engordar, do desejo de ficar magra e de uma distorção da visão que a doente tem da imagem do próprio corpo, ou seja, mesmo estando desnutrida, sente-se gorda. Então a percepção que a paciente tem do seu corpo é de que ele sempre está maior do que de fato é. “E, mesmo com um quadro de desnutrição, a adolescente continua com restrição alimentar ou com métodos inadequados para perda de peso.”

Na bulimia, também é nítida uma distorção da imagem corporal e uma preocupação obsessiva com o corpo, aliada ao desejo de emagrecer. Contudo, prevalecem os episódios de compulsão alimentar seguidos de vômitos autoprovocados, uso de laxantes e diuréticos ou atividade física excessiva e inapropriada.

A justificativa de Celso para estudar esse tema é que, embora os pais não devam ser responsabilizados pela doença das filhas, as relações familiares representam um importante fator nessa clínica, tanto no que diz respeito ao surgimento do transtorno quanto nos resultados do tratamento. A participação da mãe e do pai no tratamento do adolescente pode ser determinante para que se atinja o sucesso terapêutico.

O psiquiatra Celso Garcia Júnior, autor da tese e coordenador do Grupo Multidisciplinar de Assistência e Estudos em Transtornos Alimentares do HC: “O acompanhamento multiprofissional é o preconizado pela literatura científica internacional”Outra justificativa desse estudo é que nas pesquisas realizadas até hoje o pai foi bem menos estudado do que a mãe, principalmente em trabalhos que utilizaram a metodologia qualitativa. “De fato, a mãe costuma ser mais presente na rotina de vida da filha e introjeta mais facilmente a figura de cuidador do que o pai que, com frequência, passa menos tempo em casa interagindo com os filhos, por causa do trabalho. 

Para avançar esse entendimento, Celso entrevistou 12 pais, genitores do sexo masculino, que tinham filhas em tratamento no Geta. Os participantes falaram livremente o que estavam pensando a partir de uma pergunta disparadora sobre a história de vida deles, a relação com seus próprios pais e com a família, o relacionamento com a filha que estava em tratamento e o impacto do transtorno alimentar em suas vidas. 

Um achado intrigante, recorda o pesquisador, foi que uma boa parte deles passou a infância na zona rural. O que mais chamou a atenção não foi só isso. Eles começaram a trabalhar cedo na lavoura: um deles aos oito anos de idade. 

Ainda que fosse natural trabalhar desde a infância na sociedade rural da época, os entrevistados descreveram que essa foi uma experiência que os privou de brincar e os fez sofrer. Sentiam-se também distantes do pai, com quem buscavam um contato afetivo mais presente. Isso tudo pode ter-lhes trazido um sentimento de abandono emocional na infância. “Eu ouvi o relato emocionado de um pai que descreveu uma crise de pânico enquanto esperava em casa pela chegada do pai dele no fim da tarde”, revela o médico.  

EMOÇÃO

Em sua atuação profissional, Celso menciona que, quando os pais começam a perceber o transtorno alimentar da filha, os conflitos familiares aumentam e não são raras reações mais explosivas. “Talvez esses homens tenham mais dificuldade em lidar de forma tranquila com as situações conflituosas que surgem quando tentam convencer suas filhas a lutar contra o transtorno alimentar e a comer adequadamente.”

A literatura aponta que os pais vivem a experiência da anorexia nervosa da filha como algo aterrorizante. É como viver um pesadelo acordado: discussões são constantes nas tentativas de fazer a filha doente seguir as orientações médicas e nutricionais. 

No começo, o pai imagina que a doença é passageira. Não percebe que a perda de peso está ligada a um transtorno alimentar e, quando enxerga a problemática, a situação já ficou mais grave. A experiência chega a ser desesperadora, e é nesse momento que começa a busca por apoio. 

É um processo trabalhoso e vivido por esses homens como uma fase de enfrentamento dos conflitos em casa, com a adolescente e com outros familiares, isso porque todos ficam estressados. Na pesquisa desenvolvida no Geta, o médico ouviu de alguns pais como era difícil conversar com as filhas, encontrar as palavras certas sem causar discussão na hora de todas as refeições. “Um dos entrevistados contou-me que não sabia o que dizer e nem o que não dizer à filha, e isso lhe trazia a sensação de que estava de mão atadas diante da menina que poderia morrer por não comer”.

Alguns pais abordaram cenas desalentadoras como ter que levar a filha desmaiada ao hospital e procurar tratamento com o medo de que, se não encontrassem, a filha morreria. De fato hoje a anorexia nervosa é o transtorno psiquiátrico de maior mortalidade (batendo a casa dos 15%). Mas, a despeito do seu aumento de prevalência nos últimos 30 anos, também cresceu a oferta de serviços na área, o que possivelmente colaborou para reduzir a mortalidade.

Por outro lado, sabe-se que, com o tratamento adequado e iniciado precocemente, existem altas taxas de remissão dos transtornos alimentares entre os adolescentes, a priori quando a família participa efetivamente do tratamento. 

SINAIS 

Celso defende que o pai da paciente deva ser estimulado a participar do tratamento da filha de forma mais efetiva. “Ele deve ser chamado. Não devemos esperar simplesmente que a mãe e a filha peçam sua presença”, aconselha. “Temos incentivado no Geta que, sempre que possível, se faça um contato direto com o pai da adolescente, convidando-o a ir ao ambulatório.”

Para os pais que desconhecem os sinais dos transtornos alimentares, eles devem estar atentos primeiramente à perda de peso. Alguns comportamentos alterados podem ser reveladores, entre eles fazer restrição alimentar (diminuir a quantidade e qualidade dos alimentos, e aumentar a seletividade), evitar as refeições em família e entrar no banheiro logo após as refeições, e praticar atividades físicas exageradas e inadequadas.

Celso comenta que, nos dias atuais, a insatisfação com o corpo é muito comum mas que, nos indivíduos com anorexia nervosa ou bulimia, é vivida de forma extremamente distorcida. 

Nesses transtornos, expõe o psiquiatra, é muito frequente que os pacientes não procurem ajuda e acabem não sendo diagnosticados pelos clínicos – pediatras, clínicos gerais e nutricionistas. 

Desde a sua criação em 2005, o Geta, que é vinculado ao Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da FCM, já atendeu mais de 120 pacientes. Atualmente são acompanhados 35 pessoas, adultos e adolescentes com mais de 13 anos, de ambos os sexos. Casos novos são recebidos todos os anos.

O Geta funciona no Ambulatório de Psiquiatria, localizado no segundo andar do HC, e as atividades são desenvolvidas às segundas-feiras das 7h30 às 12h30. Os pacientes que necessitam desse atendimento são encaminhados pelo médico do serviço de saúde da cidade de origem deles através de contato com a DRS VII.

 

Publicação

Tese: “Experiências de vida relatadas por genitores masculinos de adolescentes diagnosticadas com transtorno alimentar em tratamento ambulatorial: um estudo clínico-qualitativo”

Autor: Celso Garcia Júnior

Orientador: Egberto Ribeiro Turato

Unidade: Faculdade de Ciências Médicas (FCM)