Edição nº 641

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 19 de outubro de 2015 a 25 de outubro de 2015 – ANO 2015 – Nº 641

Pesquisa alerta para privatização
da educação na América Latina

Estudo aponta o avanço de diferentes tendências de privatização em 15 países da AL e do Caribe

A professora Theresa Adrião, uma das organizadoras do levantamento: “A privatização acentua  as desigualdades e dificulta o acesso à escola”Países da América Latina e Caribe vivenciam o avanço de diferentes tendências de privatização da educação básica, processo que prejudica o acesso da sociedade a esse direito fundamental. A constatação faz parte da pesquisa intitulada “Tendências da privatização da educação na América Latina e no Caribe”, coordenada pela Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação (CLADE), rede que articula diversos grupos e entidades em defesa da educação. O trabalho de investigação foi organizado pelas professoras Theresa Maria de Freitas Adrião, da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, e Teise de Oliveira Guaranha Garcia, da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras (FFCL) da USP, campus de Ribeirão Preto.

De acordo com a professora Theresa Adrião, o objetivo da pesquisa, que contemplou 15 países [Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Guatemala, Honduras, Paraguai, Peru, República Dominicana, México, Nicarágua e Haiti], foi identificar e debater os mecanismos e tendências que induzem à privatização da educação básica na América Latina e Caribe. A docente explica que as tendências identificadas são variadas e com diferentes graus de complexidade e consequências para a manutenção de sistemas públicos de ensino, considerados fundamentais para a garantia do acesso e da permanência na escola.

De maneira geral, prossegue a pesquisadora, o que tem ocorrido na região é o uso de mecanismos institucionais e políticos que possibilitam a transferência, direta ou indiretamente, das responsabilidades da educação pública para o setor privado lucrativo. Assim, um dos modelos de privatização, classificado no relatório final do estudo como “exógeno”, é concretizado por meio do repasse de recursos públicos para o setor privado. “Em alguns países, corporações que visam exclusivamente o lucro têm pressionado o poder público a subsidiar escolas privadas, em geral de baixo custo, no lugar de constituir redes públicas de educação. Em outros países, tem-se a oferta educativa ampliada por meio do pagamento de ‘cheques-ensino’, modelo que se assenta numa falsa ideia de que as famílias, e aqui se trata das famílias pobres, poderiam ‘escolher’ uma escola privada para seus filhos e que esta, por ser privada, seria melhor que a pública”. 

Por causa desse movimento, conforme a docente da Unicamp, está havendo uma gradativa substituição de um modelo pelo outro em vários países. Os casos identificados pelos sujeitos entrevistados no estudo indicam essa tendência para Brasil, Chile e Colômbia. A pesquisa também identificou que existe a privatização “endógena”, caracterizada pela incorporação, por parte da gestão pública e, por consequência, da escola pública, de valores e práticas do mercado, como modelos de gestão fundados no alcance de resultados. Experiências do tipo foram encontradas em países como Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Honduras, México e Peru.

Outro apontamento importante da investigação, conforme a professora Theresa Adrião, foi a emergência e a consolidação, em determinados contextos, de novas formas de privatização da educação pública. Entre esses novos formatos estão os programas de atribuição da responsabilidade pela educação às comunidades locais; os processos de governança corporativa no campo educativo, que permitem que empresas privadas participem da tomada de decisões a respeito da política de educação; e a financeirização da educação básica, que transforma as matrículas públicas em “commodities no mercado financeiro”. 

A pesquisa analisou todas essas tendências considerando as implicações para a efetivação do direito humano à educação, o qual exige a participação direta do Estado no financiamento e na gestão dos sistemas públicos de educação como condição para que ocorra o que a CLADE e a comunidade internacional identificam como elementos de operacionalização do direito à Educação: disponibilidade, acessibilidade, aceitação e adaptabilidade. “A privatização acentua as desigualdades e dificulta o acesso à escola”, sustenta a docente da FE.

Um ponto importante a ser considerado ao analisar esse fenômeno, assinala a professora Theresa Adrião, é que o processo de privatização ocorre em uma região na qual a educação básica obrigatória é uma conquista recente da sociedade. “Na maior parte dos países, essa conquista ainda não foi concretizada, ou seja, está em construção. Com o avanço da lógica das corporações privadas, o direito humano à educação tem corrido sérios riscos”, reforça. Quando elementos fundamentais da prática educativa são colocados nas mãos do setor corporativo, como o desenvolvimento de conteúdos pedagógicos, dos livros didáticos e de softwares educativos, bem como o desenho das avaliações institucionais, acrescenta a coordenadora do estudo, o caráter público e democrático da educação é colocado em xeque, visto que esta fica submetida a uma lógica essencialmente mercantil.

Questionada sobre o caso específico do Brasil, a professora Theresa Adrião informa que o processo de privatização da educação básica tem se aprofundado no país. “Aqui, a situação é ainda mais evidente que na Argentina, para ficar em um único exemplo. Podemos verificar uma crescente destinação de subsídios públicos para o setor privado, movimento que segue na contramão do que seria desejável, inclusive considerando que durante o período analisado houve aumento do gasto público com o setor. O atendimento em creches e escolas de educação infantil está passando por isso. Ao delegar a missão para terceiros (organizações sociais, Organização da Sociedade Civil de Interesse Público - Oscip) ou introduzir as parcerias público-privadas [PPPs], os governos objetivamente transformam a educação em um serviço”, aponta a docente da Unicamp.

Uma maneira de resistir ao processo de privatização da educação básica, principalmente quando se trata de ampliar a sua obrigatoriedade, é dar conhecimento à sociedade das implicações desse movimento, entende a professora Theresa Adrião. “Nós, na academia, fazemos isso por meio da publicação de artigos, da organização e participação em eventos científicos e da atuação conjunta com setores organizados da sociedade civil. Também contribuímos com a formação de recursos humanos qualificados dentro da perspectiva da defesa da educação pública de qualidade. Um exemplo disso é que cinco de nossos orientandos de graduação e pós-graduação participaram da pesquisa. Outra ‘trincheira’ fundamental é o ativismo, como o exercido pela CLADE e pelas entidades ligadas a ela. Esse conjunto de organizações levam suas posições e argumentos para inúmeros fóruns de discussão, disputando orientações em agências como a Unesco, [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura], Fórum Mundial de Educação, Organização dos Estados IberoAmericanos [OEI] etc”.

METODOLOGIA

O estudo “Tendências da privatização da educação na América Latina e no Caribe” exigiu um grande esforço por parte dos pesquisadores, de acordo com a professora Theresa Adrião. Inicialmente, foi realizado um levantamento das Constituições e das legislações nacionais relativas à educação básica. Num segundo momento, um questionário foi encaminhado para as organizações que integram a CLADE e para especialistas em política educacional dos 15 países contemplados na investigação, indicados por essas organizações. “A análise das respostas possibilitou a construção de um inventário acerca da percepção que as organizações e os especialistas têm sobre os processos de privatização”, esclarece a docente da FE.

Por último, os participantes da pesquisa buscaram dados estatísticos que pudessem subsidiar a compreensão do fenômeno da privatização. “Para os países em que havia dados disponíveis, consideramos a taxa de matrícula na educação básica nas redes pública e privada durante o período de 2005 a 2011. Também consideramos informações disponíveis nas bolsas de valores dos países da região, para identificar a abertura de empresas da área da educação nos principais mercados de capitais”, pormenoriza a professora Theresa Adrião. O relatório completo do estudo coordenado pela CLADE pode ser acessado por meio do seguinte endereço eletrônico: https://www.campanaderechoeducacion.org/privatizacion/mapeo-sobre-tendencias-de-la-privatizacion-de-la-educacion-en-america-latina-y-el-caribe/ .

Pesquisa revela que professores isolam alunos com mais dificuldades de aprendizagem

Ampliando o fosso 
na sala de aula 

Silvio Anunciação

Num contexto em que uma em cada cinco crianças de oito anos não sabe ler frases, como apontou avaliação divulgada em setembro pelo Ministério da Educação (MEC), uma pesquisa da Unicamp concluída recentemente revela que a atuação de professores em sala de aula amplia ainda mais o fosso entre aqueles alunos que fracassam e os que têm sucesso no processo de aprendizagem.

A psicóloga Letícia da Silveira Ioshida, autora do trabalho: “As professoras entendem que aquele problema está fora da alçada delas e já encaminham os alunos para um serviço especializado”

O estudo, conduzido junto a professoras de escolas públicas estaduais do Ensino Fundamental I de Campinas, identificou que, em geral, estas profissionais deixam de lado os alunos que têm mais 

dificuldade de aprendizado, enquanto deveria ocorrer o contrário. A pesquisa se baseou no relato das próprias professoras sobre suas percepções em relação a crianças com dificuldades escolares.

“Pelo estudo, percebemos que as professoras se posicionam e dão melhor retorno no ambiente escolar para aquelas crianças que têm menos dificuldade de aprendizagem. Já as crianças que mais precisam, como as que apresentam, por exemplo, dislexia, transtorno de déficit de atenção, hiperatividade e outras dificuldades de leitura e escrita, são relegadas”, constata a psicóloga Letícia da Silveira Ioshida, autora do trabalho.

A professora Ivani Silva, orientadora da dissertação: “As salas deveriam ser menos lotadas, os professores deveriam ter mais oportunidade e tempo para fazer cursos e reciclagens”

A pesquisa foi desenvolvida por ela como dissertação de mestrado junto ao Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação “Prof. Dr. Gabriel O. S. Porto” (Cepre) da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp. A docente Ivani Rodrigues Silva, do curso de graduação em Fonoaudiologia, orientou a pesquisa. Ivani Rodrigues também atua como professora na pós-graduação, no Programa em Saúde, Interdisciplinaridade e Reabilitação da FCM. 

Letícia Ioshida explica que as crianças com dificuldades, com os quais as professoras se sentem incapazes de lidar, são, muitas vezes, encaminhadas para serviços especializados. Isso acontece, por exemplo, com os alunos que são atendidos no próprio Cepre, por meio de um estágio de leitura e escrita, realizado com o auxílio de graduandos do curso de Fonoaudiologia.

“As professoras entendem que aquele problema está fora da alçada delas e já encaminham os alunos para um serviço especializado. Inclusive, pelo estudo, identificamos algumas posturas destas profissionais no sentido de justificar a própria atitude de relegarem estes alunos. Elas falam: ‘ah, ele fica na dele mesmo, ele não participa porque é assim...’ Ou seja, as professoras atribuem este desânimo do estudante com dificuldade a um traço de personalidade, mas ao mesmo tempo, elas não incentivam estes alunos como fazem com os estudantes que se destacam”, ressalta. 

OLHAR E POSICIONAMENTO

A autora da pesquisa esclarece a importância do “olhar” do professor e a maneira como posiciona os alunos e se posiciona diante deles. Tal postura em sala de aula seria fundamental, de acordo com ela, no impacto em atitudes positivas ou negativas dos alunos no processo de aprendizado. Dentre as posturas desejáveis, a pesquisadora salienta o que ela denominou de “pedagogia culturalmente sensível”, termo cunhado pelo estudioso Frederick Erickson.

Trata-se, segundo Letícia Ioshida, de aproveitar as experiências e vivências que as crianças trazem consigo e implementar estratégias de envolvimento, permitindo que os alunos se posicionem. É fundamental neste processo tomar o estudante como um sujeito com potencialidades, respeitando suas peculiaridades, acolhendo suas sugestões e tópicos e incentivando-o a manifestar-se. 

“Se o profissional posiciona o aluno como capaz, como aquele que pode aprender, isso vai influenciar positivamente esta criança. O posicionamento do professor vai desde olhar para o aluno, falar num tom de voz mais afetivo, chamar pelo nome, fazer um reforço verbal, até incentivar a iniciativa argumentativa. O que não pode acontecer é o profissional achar o estudante incapaz, não chamá-lo para fazer atividades, entre outras atitudes”, exemplifica.

Para Ivani Silva, atitudes negativas acabam favorecendo ainda mais o fracasso do aluno em sala de aula. “As crianças, encaminhadas com dificuldades, estão fracassando na escola. E as professoras entendem que a escola deve lidar mais com aqueles que estão aprendendo e não com os que não aprendem. Portanto, muitas crianças em processo de aquisição de leitura e escrita poderiam beneficiar se tivessem sido melhores posicionadas pelas professoras ou pela equipe escolar.”

SISTEMA ENGESSADO

A orientadora da pesquisa pondera, no entanto, que não se trata de culpar a figura do professor. Ela afirma que as condições do sistema de ensino atual, tanto público quanto privado, provocam situações como as relatadas pela pesquisa. As classes são superlotadas, a remuneração é baixa e falta tempo e oportunidades para cursos de formação e de reciclagem, critica Ivani Silva.

“O sistema de ensino é engessado. As salas deveriam ser menos lotadas, os professores deveriam ter mais oportunidade e tempo para fazer cursos e reciclagens. Para poder ter um salário mais digno, o profissional acaba dando aula em várias escolas. Mesmo dentro da escola particular é uma estrutura vigente: salas numerosas e professores que têm que dar conta de tudo. Portanto, a estrutura escolar precisa ser repensada.”

Ainda de acordo com a docente, a formação dos professores é muito deficitária, sobretudo no aspecto da inclusão e do trabalho com a diversidade. “Eles são formados para lidar com uma determinada parcela da população e não é isso que encontram em sala de aula. Os professores saem de suas formações imaginando que vão apenas encontrar alunos ideais, mas encontram estudantes reais, alunos deficientes, surdos, cegos... É essa diversidade que a escola necessita repensar”, acrescenta.

Neste sentido, destaca Letícia Ioshida, tradicionalmente a escola tem uma expectativa para um aluno ‘ideal’. “O aluno que já chega com uma base de aprendizado e atende às expectativas, serve para a escola. O outro é isolado, marginalizado, e acaba fracassando. Este estudante passa a não gostar da escola, pois, a partir do momento em que frustra estas expectativas de aluno ‘ideal’, deixa de ser considerado como um aluno da escola.”

ESTAGIÁRIAS

Além de investigar as percepções de professores, o trabalho também avaliou como as estagiárias que cursam o 6º semestre do curso de fonoaudiologia da Unicamp lidam com os alunos com dificuldade de aprendizado encaminhados à clínica escola que funciona no Cepre. 

Conforme Ivani Silva, que coordena o estágio na Unidade, os resultados da pesquisa junto a este grupo de universitárias foi importante para “dar feedback em relação às áreas do curso de fonoaudiologia cuja reflexão deve ser intensificada.” “São alunos em formação, não são profissionais ainda. Uma das nossas hipóteses é que o aluno da fonoaudiologia necessita, nessa fase de sua formação, de mais experiência com essa temática. Ao estarem mais próximos da área educacional, eles podem avaliar, de forma mais efetiva, essa situação.”

METODOLOGIA

O trabalho apontou atitudes que auxiliam ou prejudicam o desempenho acadêmico e a autoestima em sala de aula ou nos atendimentos realizados no Cepre, além de verificar semelhanças e diferenças nos relatos das professoras e estagiárias. De acordo com Letícia Ioshida, a coleta de dados foi realizada em seis escolas por meio de entrevistas semiestruturadas com as professoras e com as estagiárias, sendo registradas por meio de gravações em áudio. Posteriormente foram realizadas as transcrições e análise dos dados.

“Fizemos um estudo qualitativo. Professoras e estagiárias foram entrevistadas sobre desempenho acadêmico, relações interpessoais, comportamento e estratégias para trabalhar com as crianças. O tratamento dos dados foi realizado por meio de análise de conteúdo. O objetivo do estudo foi contribuir para a educação no sentido de identificar posturas e intervenções que podem beneficiar ou prejudicar a criança, possibilitando reflexão e planejamento do trabalho com estratégias mais eficazes.”


Dissertação: “Percepções sobre crianças com dificuldades escolares”

Autora: Letícia da Silveira Ioshida

Orientadora: Ivani Rodrigues Silva

Unidade: Faculdade de Ciências Médicas (FCM)