Edição nº 644

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 16 de novembro de 2015 a 29 de novembro de 2015 – ANO 2015 – Nº 644

O peso da desigualdade em indicadores sobre partos

Estudo pode nortear mudanças nas práticas e na gestão do sistema de saúde na RMC

Está concluída uma ampla pesquisa avaliando os indicadores de saúde materna e perinatal e sua associação com fatores socioeconômicos em 19 municípios da Região Metropolitana de Campinas (RMC), bem como as rotinas de assistência ao parto em 16 maternidades públicas. A conclusão geral é de que, apesar do bom nível de desenvolvimento da região, permanecem desigualdades socioeconômicas que impactam os indicadores de saúde de mães e bebês, com piores resultados em adolescentes e mulheres com menor escolaridade e renda; em relação a práticas de saúde, que algumas rotinas são excessivas e outras precisam ser melhoradas; e, ainda, que o poder econômico faz aumentar a taxa de cesáreas nos municípios da região.

“Nascer na Região Metropolitana de Campinas: avanços e desafios” é o título da tese de doutorado da enfermeira Fátima Filomena Mafra Christóforo, orientada pela professora Eliana Martorano Amaral e defendida na Faculdade de Ciências Médicas (FCM). Antes de sua execução, o projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unicamp e apresentado à Diretoria Regional de Saúde VII de Campinas, à Câmara Temática de Saúde da RMC (órgão consultivo composto pelos secretários de Saúde) e a todas as maternidades públicas e mistas onde foi realizado; obteve ainda o apoio do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (NEPP). Agora, os resultados serão discutidos em seminário com representantes da DRS- VII e dos municípios e hospitais envolvidos na pesquisa, buscando-se caminhos para minimizar os problemas detectados.

“O foco da tese é a avaliação da qualidade dos serviços ofertados para, a partir daí, propor alguma intervenção junto ao serviço de saúde, de forma integrada com a Secretaria de Estado e a Diretoria Regional”, afirma a professora Eliana Amaral. “O outro aspecto foi associar os resultados com os diferentes segmentos da população. Apesar de estarmos em região com alto poder aquisitivo e grande acesso aos serviços de saúde, ainda existem bolsões de necessidade, que procuramos identificar e verificar como estão distribuídos pelos municípios. O maior interesse da tese não está na discussão puramente acadêmica, e sim em subsidiar mudanças nas práticas e na gestão do sistema de saúde da região.”

Parto em hospital da região de Campinas: tese aponta que poder econômico faz aumentar a taxa de cesáreasFátima Christóforo explica que dois estudos compuseram a tese: o primeiro, ecológico, com base nos indicadores disponíveis no Datasus (Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde), Fundação Seade (Sistema Estadual de Análise de Dados) e Censo de 2010 do IBGE; e o segundo descrevendo as práticas de atenção ao parto em 16 maternidades, entrevistando gestores dos serviços obstétricos, médicos e enfermeiros. A RMC conta com 30 serviços, sendo 13 privados, 10 mistos (privados conveniados ao SUS) e sete públicos. Participaram do estudo sete serviços públicos e nove serviços mistos, que oferecem 54,8% dos 649 leitos obstétricos disponíveis. 

PRÁTICAS DE ATENÇÃO 

Entre as práticas excessivas utilizadas durante o trabalho de parto estão o uso da ocitocina (hormônio) na maioria das parturientes, em 10 maternidades, e a episiotomia (incisão efetuada na região do períneo), também em quase todas as parturientes, em nove instituições. “A ocitocina é um hormônio que a mulher possui no corpo e que provoca as contrações”, explica Eliana Amaral. “É pouco provável que a maioria delas precise do medicamento sintético; trata-se de prática que vem sendo mantida desde quando procedimentos para acelerar o parto eram vistos como naturais. O mesmo em relação à episiotomia, que era uma prática recomendada anteriormente para 100% dos casos – hoje, recomenda-se que sua indicação seja seletiva. A Unicamp não recorre à episiotomia de rotina há quase 20 anos, mas vemos que a informação científica ainda não chegou à prática de serviços tão próximos. Daí, a necessidade de estudos como este, que estimulem a avaliação da qualidade do cuidado.”

Fátima Christóforo constatou que as práticas qualificadas na atenção ao parto ocorrem na maioria dos aspectos e em grande parte das maternidades, como o rastreamento para HIV e sífilis (em todas as 16); disponibilidade de protocolos para cuidado nos casos de hipertensão grave na gestação e profilaxia de infecção do recém-nascido por Streptococcus do grupo B (em 15 hospitais); manejo ativo do 3º período do parto para evitar a hemorragia pós-parto (em 14); utilização rotineira do partograma para registrar a frequência de contrações, dilatação e batimentos cardíacos fetais (13); acolhimento com classificação de risco (10); e a presença de acompanhante durante o trabalho de parto (9) e no parto (14). “Por outro lado, diante da alta incidência de cesáreas, surpreendeu encontrar cinco maternidades que não confirmaram o uso de antibiótico para prevenir infecções após a cirurgia.”

Na opinião de Eliana Amaral, três problemas constatados na pesquisa são bastante preocupantes: a indisponibilidade de sangue e derivados em quatro hospitais (dois deles públicos exclusivos), a falta de condições para cuidar de gestantes em estado crítico (observada em oito) e a dificuldade de transporte para encaminhar as pacientes até outros hospitais (dois). “A falta de hemoderivados em um quarto dos hospitais é muito grave, pois o sangramento após o parto, por alguma complicação, pode colocar em risco a vida da mãe em menos de 30 minutos. A falta de condições de atendimento em situações de emergência é inadmissível. Nesta região metropolitana, com todo o acesso disponível aos recursos, temos um problema de gestão por parte das instituições e do sistema de saúde, que devem qualidade mínima do cuidado.”

A orientadora da tese também defende adaptações físicas nos hospitais para facilitar o acesso de acompanhante durante o trabalho de parto. “A presença de um acompanhante contribui para melhorar a evolução do trabalho de parto e aumentar a taxa de parto natural. Mas vemos que há mais gente acompanhando o parto do que o trabalho de parto – o companheiro não está participando de todo o processo. As maternidades alegam que possuem apenas uma sala coletiva e que é preciso respeitar a privacidade das outras pacientes. No Caism da Unicamp, temos quartos separados para o casal, mas antes das reformas físicas, procurávamos garantir a presença separando os leitos com cortinas. Uma das conclusões relevantes deste estudo é a necessidade de políticas públicas para promover adaptações também na estrutura física.”

A professora Eliana Martorano Amaral (à esq.), orientadora, e a enfermeira Fátima Filomena Mafra Christóforo, autora da tese: avaliando a qualidade dos serviçosINDICADORES DE SAÚDE

De acordo com a autora da pesquisa, os piores indicadores de saúde materna e perinatal estão nos municípios com piores indicadores socioeconômicos, localizados a norte, nordeste e alguns a sudoeste da RMC. “Em 12 cidades, mais de 50% das mulheres que fizeram parte do estudo não tiveram o apoio de um parceiro para suprir as necessidades e a educação do filho; em 11 municípios, mais de 20% da população tinha chefia feminina. As adolescentes são mais de 15% das mães em sete cidades; a gravidez na adolescência é marcante em regiões com maiores carências em saúde e educação, sendo indicador de risco perinatal, e frequentemente associado com a ausência de um parceiro.”

Os dados mostram que a renda menor ou igual a um salário mínimo, o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), a renda média domiciliar per capita, a maior presença de mães adolescentes, o analfabetismo e o tempo de estudo menor que oito anos estão correlacionados com o menor número de consultas pré-natais e com as taxas de mortalidade perinatal. “Um aspecto a salientar do estudo é a existência desses bolsões de necessidade social e de gravidez na adolescência, que vão trazer resultados piores para a vida das mães e das crianças”, afirma Eliana Amaral. “Há necessidade de identificar e focar nesses bolsões para qualificar a atenção oferecida na gravidez e no parto, indo além de políticas genéricas como a de orientar as adolescentes quanto ao impacto da gravidez precoce.”

Fátima Christóforo confirmou na pesquisa o aumento de cesáreas na Região Metropolitana de Campinas: a média é de mais de 60% em 14 municípios, chegando a 70% em áreas de maior poder aquisitivo, por vezes associada com taxas mais elevadas de mortalidade perinatal e de prematuridade. “O índice menor de partos cesáreos em regiões carentes se deve não apenas à questão financeira (não poder pagar pelo procedimento), mas também ao fato de essas mulheres geralmente procurarem instituições públicas, onde a condução do parto segue mais estritamente as recomendações técnicas.”

 

Eliana Amaral observa que a prematuridade representa um problema, pois mesmo que a cesárea seja eletiva, com a idade gestacional devidamente calculada, por vezes a criança apresenta dificuldades respiratórias. “É diferente do parto vaginal. Sabemos hoje que a data ideal para cesárea é de 39 semanas, não de 37 que ‘já está no termo’, como se habituou dizer. Nota-se certa angústia para antecipar o procedimento e, junto, vem o risco de prematuridade. A cesárea faz parte da prática obstetrícia no sistema privado e é buscada pela própria paciente com a concordância dos médicos. Estamos nos movimentando para mudar essa cultura.”

Na opinião da docente da Unicamp, há uma clara “inequidade” na assistência ao parto mesmo numa região em que é possível oferecer todos os recursos para práticas qualificadas de saúde. “Faltam alguns recursos onde seriam necessários e ocorre o uso inadequado de outros. O poder financeiro acaba conduzindo a procedimentos excessivos. Tomando-se os jovens de classe média e média alta com menos de 30 anos, pouquíssimos nasceram de parto normal. Fazer cesárea virou quase um símbolo de status, não se entendendo o parto vaginal como o processo natural que permite o crescimento e amadurecimento do bebê. Trata-se de um fenômeno mundial, baseado na percepção da cesárea como mais confortável e também mais segura.”

 

Publicação

Tese: “Nascer na Região Metropolitana de Campinas: avanços e desafios”

Autora: Fátima Filomena Mafra Christóforo

Orientadora: Eliana Martorano Amaral

Unidade: Faculdade de Ciências Médicas (FCM)