Edição nº 648

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 04 de março de 2016 a 11 de março de 2016 – ANO 2016 – Nº 648

Ensaio investiga formação da
identidade narrativa sertaneja

Pesquisador analisa mapas, obras literárias e até cordéis
para fundamentar tese desenvolvida no IEL

“Sertão: palavra de enorme riqueza no imaginário, na história e cultura(s) do Brasil. Lugar desértico, paisagem árida e desoladora, onde vive uma população em constante processo migratório, lugar de uma rica cultura popular e também um espaço de barbárie, misticismo e miséria? O sertão se apresenta sob diversos aspectos, despertando sensações e sentimentos, evocando imagens e apresentando-se como resultado de uma longa experiência sócio-histórica e ficcional. Este trabalho investiga a formação da identidade narrativa sertaneja, percorrendo assim uma trajetória que tem como característica central a multiplicidade de autores, gêneros e discursos que formam as veredas de um processo em contínua transformação.”

É assim que Jorge Henrique da Silva Romero resume sua tese de doutorado “Sertão, sertões e outras ficções: ensaio sobre a identidade narrativa sertaneja”, orientada pela professora Suzi Frankl Sperber e defendida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). Um diferencial nesta pesquisa é a sua apresentação em formato de ensaio. “É um formato muito pouco usual, que vai contra a corrente acadêmica, mas considerei uma boa estratégia para focalizar este espaço tão fugidio, que escapa a cada momento de uma classificação. A ousadia valeu a pena. Como o objetivo era trabalhar com o imaginário, ganhei inúmeras possibilidades em termos ficcionais”, justifica o autor.

Na opinião de Jorge Romero, existe um transbordamento do imaginário sobre o sertão, hoje geograficamente demarcado pelo Polígono das Secas, que compreende os Estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e norte de Minas Gerais. “O tema está presente em nossa história desde a vinda dos colonizadores portugueses. Raimundo Faoro, em “Os donos do poder”, afirma que o sertão era então ‘outro mar ignoto’, outro espaço a se conhecer. Sérgio Buarque de Holanda destaca as estratégias distintas da colonização espanhola e da lusitana: a espanhola entrou terra adentro, devastando e povoando o interior; a portuguesa fortaleceu os domínios no litoral e conservou intacto o sertão, até as entradas dos bandeirantes atrás de metais e pedras preciosas.”

O autor da tese lembra que o primeiro dicionário brasileiro, “Vocabulario portuguez e latino” (publicado entre 1712 e 1721), do padre Raphael Bluteau, já trazia a palavra sertão, ainda que grafada de diferentes formas: “certão”, “sertam”, “sertaão”. “A palavra existia mesmo antes da colonização, tanto que Caminha expressou assim seu assombro com a vastidão daquelas terras: ‘pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender os olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa’. A palavra também aparece relacionada a territórios africanos, conservando esta propriedade do desconhecido.”

Jorge Romero contou com a participação na banca examinadora do professor Berthold Zilly, que traduziu para o alemão “Os sertões”, de Euclydes da Cunha, e agora está traduzindo “Grandes sertões: veredas”, de Guimarães Rosa. “O fascínio pelo sertão fez com que o professor Zilly viajasse para o Brasil a fim de conhecer as terras de suas leituras. Ao chegar às comunidades perguntando onde ficava o sertão, a resposta era sempre: ‘é mais pra lá, é mais pra lá’. O que temos é um espaço de indeterminação, em que o sertão passa a ser o espaço do outro (de alteridade) e, via de regra, opondo civilização e barbárie – esta é a tônica quando se fala de litoral e sertão.”

Nascido em Fortaleza, mas de família do sertão, o pesquisador afirma que seu objetivo na tese foi justamente problematizar esta vastidão da região no imaginário e também no presente, percorrendo a historiografia e a literatura brasileira desde a “Carta de Caminha”. “Analisei mapas, imagens e cordéis. E, para viabilizar a ideia de um ensaio, recorri a autores fundamentais como Jean Starobinski, que diz: ‘O ensaio nunca deve deixar de estar atento à resposta precisa que as obras ou os eventos interrogados devolvem às nossas questões. Em nenhum momento ele deve romper seu compromisso com a clareza e a beleza da linguagem’. A clareza e a beleza foram preocupações presentes o tempo todo na redação do texto.”

Mitos civilizatórios

Na primeira parte da tese, Romero procura explorar aspectos do sertão presentes na história do Brasil, como o “mito da conquista” pelos primeiros exploradores, os bandeirantes. “Utilizo uma epígrafe de Walter Benjamin que resume bem essa questão: ‘Nunca houve um monumento da cultura que também não fosse um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura’. Transitando entre história e literatura, procuro mostrar que civilização e barbárie estão presentes neste movimento dos bandeirantes.”

O pesquisador atenta que a questão dos mitos civilizatórios é bastante perceptível nos mapas dos séculos 16 e 17, dando o exemplo do conhecido mapa de Reinel (1519), confeccionado a mão. “Nele, o litoral descrito é em detalhes, enquanto o interior traz figuras de dragão, animais exóticos e indígenas – elementos míticos com os quais cartógrafos representavam o desconhecido e o perigoso. Há gravuras em que o mar também é preenchido com essas figuras.”

No mapa “Brasilia Barbarorum” (Brasil Bárbaro), acrescenta Jorge Romero, elaborado pelo cartógrafo alemão Georg Seutter em 1740, o litoral é igualmente descrito em detalhes, enquanto um vazio representa o sertão, indicando vastas extensões e ausência de civilização. “Ao ser inserido no interior das fronteiras portuguesas, o sertão adquiria um sentimento de pertença e um status de território à espera da integração pelo colonizador. É um espaço que Euclides da Cunha vai preencher com a narrativa de uma guerra entre a civilização e este Brasil bárbaro; para isso, vai ter que descrever esse outro tipo humano, completamente diferente do homem do litoral.”

Hércules-Quasímodo

“Dualidade Hércules-Quasímodo” é o título da segunda parte da tese, em que o autor introduz o elemento da “identidade narrativa”, conceito do filósofo Paulo Ricoeur que o ajudou a lidar com a imensa quantidade de obras e interpretações sobre o sertão. “Por exemplo, em ‘Os sertões’, Euclides da Cunha utiliza uma metáfora belíssima sobre dois sentimentos em relação ao sertanejo: primeiro, ele descreve o homem da caatinga, Hércules-Quasímodo, montado em seu cavalo como se formasse a imagem de um centauro, um corpo metade homem e metade cavalo, desgracioso e fatigado na sua imobilidade; de repente, um novilho escapa e o sertanejo se transforma em figura titânica, acossando o boi fugitivo. Esta metáfora oferece duas dimensões: uma de rebaixamento, do corpo torto e desengonçado, e outra da idealização, presente em folhetos de cordel com a imagem de Lampião como herói.”

Romero considera que Euclides da Cunha consegue oferecer uma síntese de toda a literatura sobre este espaço exótico, unindo a sua própria experiência no sertão. “Alguns escritores voltaram-se para esses lugares recônditos para mostrar a seus concidadãos, da república das letras, que existia um outro Brasil. Desde José de Alencar com ‘O Sertanejo’, passando por Taunay com ‘Inocência’, até as obras regionalistas tratando da fome e da seca, como ‘A fome’ de Rodolfo Teófilo e ‘Os retirantes’ de José do Patrocínio; e mesmo a literatura de viagem, que vai ser tema do livro ‘O Brasil não é longe daqui’, de Flora Süssekind, pensando a importância desse estilo de narrativa para a constituição do sistema literário brasileiro.”

Microfísica poiética

Na última parte da tese, o autor apresenta a sua noção de “microfísica poiética”, tomando como referência a “microfísica do poder” de Foucault, sobre a horizontalização do poder – que não está localizado em um lugar, visto que existe uma teia de relações de poder. “‘Poiesis’, aqui, é o conceito fundamental que se refere à cri(ação), sugerindo a atividade sempre reveladora, onde narrativas diversas encontram espaço privilegiado para aflorar. A ‘microfísica poiética’ pressupõe um movimento sempre aberto à incorporação de novas produções artísticas.”

Por esta noção, esclarece Jorge Romero, o sertão deixa de ser território do letrado, como no século 19, e sim um território primordialmente da obra de arte. “Antes, conhecíamos o sertão apenas através dos seus representantes, como Alencar, Taunay, Patrocínio e Euclides. Com a ‘microfísica poiética’ introduzi outros elementos a partir de Guimarães Rosa e Patativa do Assaré [Antônio Gonçalves da Silva], que tratam de sertões diferentes: ‘Grande sertão: veredas’ é um sertão do norte de Minas, de jagunços, em que temos um sertanejo como narrador, explorando muito bem as contradições metafísicas e sociais ali presentes; e a obra de Patativa do Assaré é o sertão cearense, das contradições políticas por conta do seu esquecimento, mas não na perspectiva centralizada do letrado da cidade e sim do próprio sertanejo.”

Publicação

Tese: “Sertão, sertões e outras ficções: ensaio sobre a identidade narrativa sertaneja”
Autor: Jorge Henrique da Silva Romero
Orientadora: Suzi Frankl Sperber
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)