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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 04 de março de 2016 a 11 de março de 2016 – ANO 2016 – Nº 648Uma história do jogo do bicho
O livro Leis da sorte, da historiadora Amy Chazkel, é uma genealogia e uma arqueologia fundamentais do jogo do bicho no Brasil. A autora traz à tona uma série de questões centrais para compreender a conturbada história da vida pública no Rio de Janeiro. Questões, aliás, de uma notável atualidade: a relação entre os projetos urbanísticos e a especulação imobiliária; a tensão entre os grandes negócios e a economia informal na cidade; a intervenção da polícia nas formas de existência e de sobrevivência das classes populares, e a ilegalidade rotineira da ação policial.
As páginas iniciais do livro, sobre as “origens do jogo do bicho”, seguem a história de como esse jogo saiu dos muros do zoológico, escapando das mãos do seu progenitor, o Barão de Drummond, e invadindo a cidade do Rio de Janeiro. Esse começo permite ao leitor pensar a complexa interação entre o empreendedorismo privado – atrelado às transformações urbanas da Belle Époque carioca – e as políticas do governo municipal, abordando o complexo dilema entre a proibição e a regulamentação de atividades frequentes e visíveis na vida pública urbana (tensão presente tanto no jogo clandestino como na prostituição).
O livro continua com uma análise das “regras do jogo”, ou seja, dos códigos explícitos e implícitos que regulavam sua existência nos espaços da cidade. Regras que se constroem nos encontros e disputas entre a codificação penal, o funcionamento concreto da justiça criminal e a ação cotidiana da polícia. A partir de 1895, explica a autora, a polícia prendia pessoas envolvidas com o jogo do bicho. Muitos eram detidos, alguns tinham dinheiro para pagar fianças, outros permaneciam algum tempo na Casa de Detenção, mas quase nenhum era efetivamente condenado pelos juízes. Essa evidência empírica é certamente resultado de um trabalho muito sério, que coteja os volumes encadernados dos Registros de Sentenças Criminais do Arquivo Nacional e os livros manuscritos de entradas na Casa de Detenção do Arquivo Público do Estado.
Talvez o mais interessante desse capítulo não seja tal evidência em si, mas a forma com que a autora a interpreta. Fugindo da ideia de que a lei “fracassava”, Chazkel explica a maneira pela qual a lei era praticada e a ilegalidade ambivalente do jogo do bicho. E a lei não era praticada só pelos juízes: seus usos estratégicos se estendiam desde os policiais até os comerciantes, bicheiros e banqueiros. Os policiais usavam a criminalização do jogo para pedir dinheiro aos bicheiros em troca de proteção e estes podiam também usá-la para punir um intermediário que não cumprisse com suas obrigações. Assim, a lei que punia o jogo do bicho tinha efeitos e usos estratégicos que iam muito além do suposto “fracasso” na sua aplicação.
Leis da sorte tem ainda muito a dizer sobre questões fundamentais da vida pública urbana do Rio de Janeiro e avança na direção de uma história do pequeno comércio popular e do mercado informal. A notável capilarização do jogo do bicho acompanha a própria onipresença do mundo do comércio varejista. A conexão entre o jogo do bicho e o comércio de rua era de uma intimidade absoluta. As inquietações morais com o jogo do bicho não surgiram porque ele fosse um tipo de jogo, mas porque era uma modalidade de comércio. A primeira campanha geral contra o jogo do bicho (1913) refletia a própria geografia moral do comércio no Rio de Janeiro: a grande presença, por exemplo, de imigrantes portugueses entre as detenções policias revela que a perseguição seletiva espelhava conflitos sociais existentes, como a hostilização do comerciante português.
Especulação imobiliária, grandes empreendimentos urbanos e pequeno comércio varejista; vendedores ambulantes, policiais perseguindo práticas das classes populares e construindo redes de ilegalidade: todos, temas de enorme relevância histórica e atual. Além de ser um grande aporte para a história das práticas ilegais, da polícia e da justiça criminal no Brasil, o livro de Amy Chazkel sugere outra forma de pensar a monetarização da vida social e econômica na Primeira República, na qual o dinheiro já não era apenas um demolidor de vínculos e significados sociais, como para a sociologia clássica. A autora propõe compreender um paradoxo: a monetarização da vida carioca, longe de padronizar o comércio e a economia, inventou novas formas de improvisação, como o jogo do bicho. O dinheiro e, em particular, a circulação de valores em forma de papel, em vez de fazerem a vida do povo mais enfadonha, “deram às pessoas algo com que brincar”.
Diego Galeano é professor do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Formado em sociologia na Universidad Nacional de La Plata, Argentina (2004), é doutor em história social na Universidade Federal do Rio de Janeiro (2012).
SERVIÇO
Título: Leis da sorte — O jogo do bicho e a construção da vida pública urbana
Autora: Amy Chazkel
Editora da Unicamp
Páginas: 360
Área de interesse: História
Preço: R$ 86,00
www.editoraunicamp.com.br