Edição nº 649

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 11 de março de 2016 a 20 de março de 2016 – ANO 2016 – Nº 649

Estudo questiona educação bilíngue


Mundo globalizado, educação bilíngue e uma promessa de futuro. As vantagens deste tipo de ensino, voltado para crianças e adolescentes, são enumeradas nas páginas da internet das escolas especializadas. Afirmações como “o ensino infantil bilíngue é uma forma de educação globalizada, que amplia as oportunidades para a criança descobrir caminhos para a sua realização pessoal no futuro”, ou “no mundo globalizado em que vivemos, o inglês se tornou pré-requisito para uma vida sem fronteiras” estão nos sites de várias escolas.  O tema despertou o interesse e os questionamentos de André Coutinho Storto em sua dissertação de mestrado intitulada “Discursos sobre bilinguismo e educação bilíngue: a perspectiva das escolas”, defendida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) Unicamp.

André é professor de inglês e fez a pesquisa em sites de escolas bilíngues particulares em inglês na capital paulista. O objetivo foi tentar investigar como a educação bilíngue é entendida pelas instituições. “Acima de tudo é uma dificuldade avaliar o desempenho dessas escolas, uma vez que não existe regulamentação específica ou monitoramento da educação bilíngue no país”, disse. Ele analisou os textos extraídos de websites buscando elementos que se repetiam, para definir três recortes da pesquisa: a inserção dos estudantes no mundo globalizado, a distinção entre bilinguismo e educação bilíngue e o trânsito entre línguas entre falantes bilíngues.

As escolas bilíngues, que vêm se popularizando no país, têm como objetivo desenvolver a proficiência em duas línguas, que podem ser o português e o inglês ou qualquer outro idioma, por meio do ensino de conteúdos curriculares em ambas as línguas. O problema, segundo o pesquisador, é que muitas escolas partem de uma concepção de línguas como “entidades autossustentáveis e autônomas”, algo que deve ser adquirido pelos alunos, ao invés de encará-las como um recurso comunicativo que se transforma e se molda às necessidades e às práticas dos falantes. Ainda se acredita que os falantes bilíngues são a somatória de “dois falantes monolíngues perfeitos”, o que se traduz em um grande equívoco, conforme o pesquisador. “Na própria elaboração do currículo as línguas já são separadas: num período fala-se português, em outro, inglês. Mas a prática mostra que falantes bilíngues podem transitar entre as línguas sem mantê-las separadas dessa forma rígida. Há uma alternância de códigos”. Em comunidades de falantes bilíngues, quando a interação ocorre em ambientes menos “regulamentados”, afirma André, a troca de línguas é constante, até mesmo sem que os interlocutores se deem conta.

Em todo o mundo existem, segundo a pesquisa, menos de 200 países, mas estima-se que o número de línguas faladas oscile entre 6.500 e 7.000. Na maioria dos países se fala bem mais que uma só língua. “As imigrações, diásporas, enfim, a intensificação dos fluxos humanos através das fronteiras geográficas e a disseminação global do inglês são fatores que favorecem o trânsito entre as línguas, misturando-as. O bilinguismo é um fenômeno comum, corriqueiro e sempre foi apagado pelo monolinguismo do ‘Estado nação’ e sua máquina administrativa”, complementa o autor da dissertação.

André observa que a ideia de língua que temos é a de uma construção histórico-social que foi sendo consolidada ao longo dos séculos. “Parto da perspectiva teórica que tem uma concepção de língua pautada nas práticas discursivas e não naquela que é construída de forma dissociada dos falantes e suas práticas”, ressalta. Assim o bilinguismo pode ser compreendido como algo bem mais complexo porque compreende uma série de práticas discursivas que não são mediadas pelas “línguas nacionais padrão” ensinadas nas escolas.

Daí outro equívoco que é tomar como sinônimo os termos bilinguismo e educação bilíngue, como fazem os sites das escolas. “O bilinguismo não é uma prerrogativa da educação bilíngue. Não se pode considerar bilíngues somente os falantes que estudaram em escolas bilíngues, esquecendo-nos de que há milhões de falantes bilíngues no mundo que jamais participaram de um programa de educação bilíngue”. André acrescenta na dissertação que programas educacionais bilíngues podem levar ao desenvolvimento de habilidades bilíngues em seus alunos, desde que estejam “intimamente relacionadas às práticas sócio-discursivas nas quais os alunos se engajam, especialmente fora do âmbito escolar”.

Novamente as frases dos sites chamam a atenção quando são usados os termos “globalização” ou “mundo globalizado”. Uma escola é apresentada como “um centro de educação que mune os alunos com ferramentas para atuarem criticamente no mundo globalizado de maneira integral e responsável em dois idiomas”, outra incentiva a participação no atual “mundo globalizado”, uma terceira “visa à formação de pessoas conscientes, críticas e preparadas para participar do mundo globalizado atual”.

O pesquisador achou curioso o fato de o termo “mundo globalizado” aparecer com muito mais frequência do que “globalização”. “Essa ideia de ‘incluir a criança’ no mundo globalizado é falsa, uma vez que elas já estão globalizadas, são os filhos da globalização que nasceram num mundo digital. Tento dissociar essa ideia da escola como mecanismo de inserção. Não é necessário estar em uma escola bilíngue para estar inserido no mundo globalizado”.

Outra questão levantada por André é que talvez o termo “globalização” seja menos utilizado por remeter a um processo enquanto “mundo globalizado” já representa o que está acabado, fechado. O termo “globalização” também traria conotações negativas por lembrar que existem os que estão à margem, os excluídos, pelos próprios processos de globalização, dos benefícios que ela traz.

Para o autor da dissertação qualquer língua é um instrumento de construção do mundo e as escolas bilíngues tem seu lugar à medida que “todos os envolvidos na elaboração, implementação e desenvolvimento destes programas estejam atentos não só às mudanças relacionadas aos usos das línguas na modernidade tardia como à constituição híbrida das identidades e habilidades dos falantes bilíngues”.

Publicação 

Dissertação: “Discursos sobre bilinguismo e educação bilíngue: a perspectiva das escolas”
Autor: André Coutinho Storto
Orientadora: Terezinha de Jesus Machado Maher
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)