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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 01 de agosto de 2016 a 08 de agosto de 2016 – ANO 2016 – Nº 663Trilha própria (e inovadora)
Na música erudita, muitas mulheres brasileiras, profissionais da área, ainda encontram obstáculos para inserção nesse mercado e para serem reconhecidas. Trata-se de um domínio majoritariamente masculino e por isso elas precisam conquistar seu espaço com competência e determinação. A compositora mineira Maria Helena Rosas Fernandes conquistou o seu. Ao longo dos anos, ela foi estabelecendo o caminho que quis e não se deixou levar pelos movimentos musicais que ocorriam no Brasil a partir da década de 1970.
A compositora não construiu uma obra sobre a ideia pós-romântica e nem serial ou dodecafônica, embora tivesse experimentado um pouco de cada coisa e estudado com professores que defendiam determinadas correntes estéticas. Não se filiou ao nacionalismo de Mário de Andrade, personificado nas figuras de Camargo Guarnieri e Osvaldo Lacerda, nem tampouco foi pelo caminho do Grupo Música Nova, de vanguarda no âmbito da música erudita, que se sobressaiu também pelos Festivais Música Nova.
“Maria Helena traçou um caminho próprio e uma linguagem muito particular dentro da composição brasileira, desenvolvida e aprofundada a partir de sua segunda fase composicional, na qual planejou trilhar por caminhos individuais e inovadores”, constatou Juliana Abra na sua dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Artes (IA). O trabalho foi orientado pela docente do IA Lenita Nogueira e coorientado pela também docente do IA Denise Garcia.
O principal objetivo da mestranda foi elaborar um catálogo comentado musicalmente da obra completa da compositora (a partir de análises das partituras e entrevistas com a artista), definir fases composicionais dessa carreira e tecer considerações mais profundas das peças de amostragem de cada uma das fases, com vistas a aproximar o leitor dessa obra e demonstrar suas características.
O catálogo conta com 72 peças para diversas formações, incluindo óperas, peças orquestrais, peças para instrumentos solo, coro a capella e música de câmara. A mestranda pretende em breve publicá-lo para que seja melhor divulgado o trabalho de Maria Helena e para que todos os interessados tenham acesso a esse conteúdo.
Tecnicamente, o catálogo apresenta uma ficha catalográfica para cada composição (com título, ano da composição, formação instrumental, edição, localização do manuscrito, duração, estreia, premiações, gravações e outras informações) e comentários musicais, os quais podem tratar sobre a forma, a estrutura, o gênero, o material musical, a temática extramusical, as características do processo composicional, a rítmica e a instrumentação de cada peça.
Carreira
Juliana averiguou a riqueza da obra da artista, que vai se revelando em camadas. “Este material é complexo e necessita ser olhado cuidadosamente, pois cada peça se mostra uma obra completamente diferente, trazendo, em geral, algum tema extramusical em torno do qual se desenrola o processo composicional.”
A partir da análise dos objetos de pesquisa, a autora definiu três períodos distintos e suas caraterísticas na carreira da compositora. Na fase 1, chamada “Iniciação” (de 1970 a 1977), a artista começou a compor.
Na fase 2, intitulada “Experimentação” (de 1977 a 1982), inseriu elementos indígenas em suas composições, escrevendo para formações diferenciadas como sopros e percussão. Com sua primeira peça com elementos indígenas, Territórios e ocas (1977), a artista ganhou o 2º lugar no Prêmio Esso de Música Erudita no Rio de Janeiro, em 1979.
Na fase 3, denominada “Libertação” (a partir de 1983 até o momento), a compositora passou a trabalhar mais livremente e a fazer composições mais longas e complexas, quando comparadas às fases anteriores. Com essa tendência, foram compostas as óperas Marília de Dirceu, em 1994, com duração de 1h30min; e Anita Garibaldi, de 2011, de 1h06min, além de peças orquestrais como uma sinfonia (Sinfonia das águas cantantes, 2010) e um Piano Concertato (Encantada, 2013) e outras.
Dentre essas fases, se destacaram a segunda e a terceira, que incluíram composições com influências da música indígena e temas extramusicais como elementos condutores do processo composicional. “A obra da compositora é singular e rica, porque parte de elementos tipicamente brasileiros para compor uma obra original. Ela tem, por exemplo, obras sobre elementos indígenas (cantos, rituais, lendas), a natureza (paisagens, cantos de pássaros) e fatos históricos”, situou.
De acordo com a pesquisadora, Maria Helena se destacou pela música de câmara, ou seja, aquela executada por um pequeno número de músicos. Apesar disso, até o momento, sua peça mais tocada é o Ciclo no 1 (1977), para piano-solo.
Uma contribuição da compositora foi a doação de uma cópia de toda sua obra para o meio acadêmico, em 2015, a pedido de Juliana, que agora está sob a guarda do Centro de Documentação de Música Contemporânea (CDMC) da Unicamp. Considerando a dificuldade de acesso às obras de compositores contemporâneos, disponíveis geralmente somente em acervos pessoais, esta é uma colaboração que enriquece o acervo da Unicamp e facilita o acesso à sua obra.
“Maria Helena é detentora de uma obra incrível, com amplo material a ser tocado, ouvido, estudado, interpretado e divulgado. É uma compositora única e corajosa, visto que não se importou em vender sua produção ou participar de grupos fechados. Antes, fez da sua obra sua maneira de ver o mundo e de expressá-lo em sons”, pontuou a mestranda. “Esse trabalho abre caminho para pesquisas futuras e auxilia a localização e o contato com a obra.”
Talento
Maria Helena nasceu em 8/7/1933 em Brazópolis, MG. Morou em Campinas, onde trabalhou como professora de música em várias instituições e como estudante do IA em cursos de extensão. Desde 2002, reside em Poços de Caldas-MG com seu marido, Cláudio Fernandes.
A artista começou a tocar o piano de sua mãe ainda criança. Depois estudou em alguns conservatórios mineiros. Fez o curso superior de piano no Conservatório de Música do Rio de Janeiro e também o curso superior de Composição e Regência da Faculdade Santa Marcelina, em São Paulo.
Foi aluna de grandes nomes da música brasileira como Osvaldo Lacerda, H. J. Koellreutter, Almeida Prado, Souza Lima. Sempre se dedicou à música. Sua carreira composicional foi premiada no Brasil e no exterior. Aos 82 anos, continua ativa, realizando suas composições e divulgando sua obra. Além de compositora brasileira de música erudita e pianista, é regente e professora.
Foi idealizadora e organizadora dos Encontros Internacionais de Mulheres Compositoras. Como pesquisadora na área de música indígena brasileira, tem ministrado palestras no Brasil, Alemanha, Itália, Estados Unidos, Argentina. Suas peças estrearam em Festivais Música Nova, Bienais de Música Contemporânea Brasileira e Concursos Latino-Americanos e também foram gravadas por músicos brasileiros como Luciana Soares e Sylvia Maltese.
Entre as suas premiações, sobressaem o 1º Prêmio Governador do Estado da Bahia, Salvador, por Dawawa Tsawidi (1979); 2º lugar no Prêmio Esso de Música Erudita, no Rio de Janeiro (1979), pela peça Territórios e ocas (1977); 1° prêmio no III Concurso Latino-Americano de Composição, Montevidéu, Uruguai (1988) por Nakutnak (1987); 1º lugar no Prêmio Nancy Van de Vate Internacional Composition Prize for Opera, Viena, Áustria (2006) com a ópera Marília de Dirceu (1994). Recebeu a comenda Carlos Gomes (2010) e o prêmio da Associação dos Críticos de Arte de São Paulo (2013), em música erudita, pelo conjunto de sua obra.
Seu trabalho é citado em vários livros da História da Música do Brasil e também na Aaron Cohen International Encyclopedia of Women Composers, USA (1987), e no New Grove Dictionary of Women Composers. É membro da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea e da International Honour Committee da Fondazione Adkins-Chiti Donne in Musica, Roma, Itália.
Publicação
Dissertação: “Maria Helena Rosas Fernandes: catálogo comentado da obra completa e fases composicionais”
Autora: Juliana Abra
Orientadora: Lenita W. M. Nogueira
Coorientadora: Denise H. L. Garcia
Unidade: Instituto de Artes (IA)