Edição nº 663

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 01 de agosto de 2016 a 08 de agosto de 2016 – ANO 2016 – Nº 663

Um por todos

Cadastro Único para programas sociais é analisado em dissertação

 


Os programas de transferência de renda ganham destaque no Brasil, a partir em 1991, com a inserção dessas políticas na agenda pública, quando o então senador paulista Eduardo Suplicy propôs a instituição de uma Renda Básica de Cidadania. Nesse mesmo tempo o professor Cristovam Buarque, então reitor da Universidade de Brasília, propunha a garantia de uma renda mínima às famílias que tivessem filhos matriculados na escola. Esse modelo de transferência, chamado de Bolsa Escola, foi implementado por ele na capital da República, quando governador de Brasília, em 1995, e acabou sendo adotado por vários municípios brasileiros.

Os programas sociais que se sucederam e foram implantados até o ano 2000 exigiram a criação de cadastros sociais pelos municípios e pelo governo federal para atender às atribuições a que estavam vinculados. A sua multiplicação levou à ideia de criar um cadastro social nacional que evitasse a duplicação de esforços e custos no cadastramento do mesmo público-alvo para fins semelhantes. Daí surgiu a ideia da elaboração e consolidação do Cadastro Único para atender a todos os programas de transferência de renda condicionada mantidos pelo governo federal.

Os detalhes da implementação e gestão desse cadastro são muito importantes no desempenho dos programas, pois as informações sobre renda, gastos, ativos, estrutura domiciliar, composição familiar, escolaridade e inserção no mercado de trabalho são fundamentais para seleção dos beneficiários.

O estabelecimento de um cadastro único permite também o acompanhamento das famílias registradas, enseja seu encaminhamento para outros programas e ações de proteção e promoção social e pode apoiar a gestão dos municípios em uma política social integrada e efetiva no atendimento às necessidades da população mais vulnerável.

Mas o Cadastro Único ainda enfrenta contestações de ordens técnicas e políticas. O debate, que ora se revela mais ou menos acalorado, é recorrente na academia, na imprensa, na sociedade civil e se estende hoje às redes sociais. Esta percepção levou a graduada em ciências sociais Luciana de Farias a elaborar dissertação que trata da relação do Cadastro Único com os programas sociais do governo federal. O trabalho considera que o cadastro deve ser compreendido como uma tecnologia viva e em constante construção. Ao mesmo tempo, é gerador de novos marcos legais e institucionais de políticas sociais e, ainda, fruto do comprometimento e trabalho de cadastradores e gestores municipais que atuam na ponta dos programas sociais.

O estudo sobre “Cadastro Único: uma infraestrutura para programas sociais”, apresentado ao Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp, contou com financiamento da Capes e foi orientado pelo professor Rafael de Brito Dias, do Programa de Pós-Graduação em Política Científica e Tecnológica do IG da Unicamp e docente da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA).

 

Resgate e contextualização

Embora com foco no cadastramento, a pesquisa se ateve ao desenvolvimento de programas sociais brasileiros que, a exemplo do Bolsa Família, necessitam de muita tecnologia da informação desde o cadastramento das famílias até a emissão do cartão para recebimento do benefício, estrutura construída ao longo do tempo, como mostra a dissertação.

Esse cadastramento teve início em 2001, no governo FHC, por ocasião da implantação, pelo governo federal, dos programas Bolsa Escola, vinculado ao Ministério da Educação, e Bolsa-Alimentação, mantido pelo Ministério da Saúde, quando surge o desafio de selecionar os beneficiários. A elaboração desses cadastros independentes foi confiada aos municípios. Alguns deles como Brasília, Campinas, Ribeirão Preto, Boa Vista, Vitória, Salvador, já dispunham de infraestrutura para elaborá-los face aos programas sociais que mantinham, mas nos mais de cinco mil restantes ela teve que ser montada.

Com efeito, como desde meados da década de 90 já existiam programas de renda mínima e bolsa escola, a ideia do governo federal ao encampá-los era unificá-los, mantendo o desenho de programas destinados às famílias, pois era muito custoso para os municípios realizar cadastramentos diferentes para esses dois programas. Por iniciativa da Secretaria de Estado de Assistência Social do governo FHC, surgiu a ideia, apoiada pelos municípios, de criar um cadastro unificado.

A proposta não foi muito bem recebida pelos ministérios envolvidos que, por interesses políticos, pretendiam manter a visibilidade dos seus respectivos programas. A Secretaria conseguiu, entretanto, a unificação dos cadastros desses programas criando um formulário único que visava atender às suas necessidades de informações. Nesse processo de padronização dos cadastros foi delegado à Caixa Economia Federal a criação e manutenção do software que operacionalizava o cadastramento, pois a instituição bancária já era a responsável pelos pagamentos dos beneficiários e emissão dos cartões específicos correspondentes aos programas.

Já no governo Lula, com a criação do Ministério do Desenvolvimento Social e Controle à Fome, a que se vinculou o recém-criado Programa Cartão Alimentação, partiu-se para a criação de um cadastro único que tinha como complicador a inexistência à época de uma rede de informações. O desencadeamento de grandes conflitos políticos decorrentes da implantação de programas sociais do governo Lula, adensados pelo sistema precário de comunicação, o que suscitava suspeitas de fraudes, levou o governo à unificação dos programas sociais em um único com a criação do Bolsa Família, que juntava o Programa Cartão Alimentação, o Bolsa Alimentação e o Bolsa Escola.

O programa Bolsa Família impunha a necessidade de elaboração de um novo questionário de cadastramento e, de 2005 a 2007, desenvolveram-se os estudos para viabilizá-lo. Como havia muitos problemas a serem enfrentados, partiu-se então para amplos estudos que envolveram discussões, negociações e inclusive análises de experiências já desenvolvidas em outros países e levaram ainda a uma parceria com o IBGE para que o questionário estivesse em consonância com os critérios dos censos e do Programa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) por ele aplicados.

A negociação para elaboração do questionário para cadastramento envolveu vários organismos governamentais como o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, a que estava vinculado o Bolsa Família; o Ministério da Educação, responsável pelo controle da condicionalidade da criança frequentar a escola; o Ministério da Saúde, por causa da obrigatoriedade das vacinações das crianças e da exigência do pré-natal das mães; a Caixa, encarregada pela implantação e administração do software que permite a emissão dos cartões destinados ao pagamento dos beneficiários. O estudo foi também submetido a outros ministérios que pretendessem utilizar o cadastro. Para a autora, o Cadastro Único, vigente hoje, constitui um grande censo da pobreza no Brasil.

Com sua implantação, a partir de 2011, a Caixa teve que mudar o software que vinha utilizando pois, a partir daí, não era mais possível trabalhar off-line, com os municípios encaminhando os arquivos locais mensalmente. A proposta de um sistema on-line exigiu, entretanto, a adequação técnica dos municípios e até as instalações de antenas de comunicação via satélite, em parceria com o Sistema de Proteção da Amazônia, voltadas exclusivamente para as atividades do Cadastro Único nos municípios que ainda não tinham acesso à internet. Esse processo, que passou a atender os mais diferentes rincões do país, se completou em 2014.

O emprego da ficha única de cadastramento permitiu cadastrar o maior número possível de famílias, resolver problemas decorrentes de mudanças de município dos beneficiários, evitar a duplicidade de informações e possibilitar a atualização periódica de dados.

Para resgatar todas as nuances que envolviam conflitos entre órgãos, que esbarravam em problemas tecnológicos, e detalhar historicamente a evolução desse sistema de cadastro, a pesquisadora entrevistou atores nele envolvidos nos governos FHC, Lula e Dilma, além de representante da Caixa, para, enfim, delinear parte do que precisa ser melhorado. O Cadastro Único, que atende hoje 30 programas sociais brasileiros e não se restringe apenas ao Bolsa Família, seu maior cliente, contribui ainda para o delineamento de programas desenvolvidos pelas prefeituras dos municípios brasileiros.

 

Importância

Para Luciana “a pesquisa revela que o Cadastro Único foi construído segundo uma trajetória de negociações na administração de conflitos que não deve ser ignorada hoje pelos municípios e ministérios que o utilizam. Os conceitos sociológicos de família e de pobreza foram construídos com base em ideias e negociações envolvendo posicionamentos políticos diferentes que culminaram em pontos consensuais. Então qualquer governo que pretenda mudar essa trajetória não pode deixar de levá-la em consideração”.

A autora destaca ainda o caráter social e tecnológico do estudo, afirmando que nada é puramente social ou puramente tecnológico, mas envolve aspectos sociais e tecnológicos. Embora o cadastro estruture de forma mais objetiva e mais padronizada os aspectos sociais, foi feito segundo concepções de pessoas. Ele constitui um campo de atuação para a área de tecnologia da informação ao possibilitar o desenvolvimento de pesquisas que apontem como realizar auditorias mais baratas, mais rápidas e eficientes, garantindo a privacidade das famílias cadastradas.

Em síntese, Luciana considera que a área das ciências sociais, envolvendo análise de políticas públicas, exige muita tecnologia aplicada e mostra como o sistema de informação que está por trás consegue mapear os conflitos entre visões e interesses diferentes. E acrescenta: “O Cadastro Único conseguiu incorporar muito bem o desafio que sempre foi posto de que a pobreza é multidimensional e que exige um trabalho envolvendo diversas frentes, diversos ministérios articulados, o que não é trivial. O cadastro resulta de negociações entre diversas forças envolvidas e que passaram a trabalhar juntas. Hoje ele é levado em conta sempre que um setor de governo de todos os níveis da administração - federal, estadual e municipal - se propõe a um novo programa social, eliminando a necessidade de se criar uma nova base de dados e isso é o que, de acordo com minha pesquisa, caracteriza o Cadastro Único como uma infraestrutura para programas sociais”.

 

Publicação

Dissertação: “O Cadastro Único: uma infraestrutura para programas sociais”

Autora: Luciana de Farias

Orientador: Rafael de Brito Dias

Unidade: Instituto de Geociências (IG)

Financiamento: Capes