Edição nº 668

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 09 de setembro de 2016 a 18 de setembro de 2016 – ANO 2016 – Nº 668

Identidades, territórios e afetos


Tenho me ocupado sobre as relações entre as construções identitárias e o domínio do documentário brasileiro na pesquisa e no ensino em todos os níveis. Desde os filmes cinemanovistas dos anos 1960 até a robusta produção televisiva do Globo Repórter dos cineastas, a questão identitária era definida pelo expediente da nação. Deslocamentos começaram a surgir em meados dos anos 1970, desde então as relações étnico-raciais, de gênero e sexualidade, as representações periféricas e os agenciamentos da subjetividade, notadamente, a emergência da primeira pessoa diversificaram e tornaram mais complexas as relações no campo das identidades.

Recentemente, passei a dirigir filmes, dei continuidade à investigação desses conceitos, interessando-me sobre a criação poética de trajetórias relacionadas ao negro. Com isso, ampliou-se a visão sobre o alcance e os limites dos filmes, numa outra perspectiva.

A convite de Grácia Navarro, em 2013, iniciei a realização de um documentário em que o motivo principal era o registro de uma peça de teatro sobre Exu, encomendada por Mestre Jahça, funcionário aposentado da Unicamp e que se identifica profundamente com essa divindade.

Do convívio com Jahça, emergiu uma rede de afetos e, assim, de forma intensa, brotou a vontade de lançar um olhar cinemático sobre a cidade de Campinas, sob o ponto de vista de homens e mulheres negras que edificaram um gigante território potente e diversificado.

“Diário de Exus”, filme que resultou desse trabalho, demonstra, em primeiro lugar, o meu modo de documentar, algo que aponta para um olhar em construção que define, pela imagem, os territórios negros da cidade.

Desse processo, com destaque para a dissertação “Danças populares brasileiras entre a tradição e a tradução”, defendida no IA, por Alessandro Oliveira, cheguei no grupo Urucungos, Puítas e Quijengues, e outro projeto em fina conexão com anterior começou a se esboçar.

Foi no Balaio das Águas do Ponto de Cultura Ibaô que começamos o processo de filmagem de “A Dança da Amizade”, filme que conta a história do Urucungos. À medida que a equipe ia se aproximando dos territórios e das pessoas, pudemos perceber a rede de comunidades que se forma em defesa de um vasto vocabulário religioso, cultural e artístico afro-brasileiro. As amizades foram se tecendo e isso eu penso que está em cada imagem do filme.

Além do registro do processo de documentação e da obsessão pela restituição dos momentos que compartilhamos, o filme revela também essa troca de afetos, de amizade e de conhecimento. N’A Dança da Amizade. Histórias de Urucungos, Puítas e Quijengues, o que o espectador vê é o transbordamento dessas relações. 

Voltando a 2013. Ali, comecei a filmar a Lavagem da Escadaria da Catedral de Campinas. Esse evento, organizado por Mãe Dango e Mãe Corajacy há 31 anos, é bastante representativo da força ancestral afro-brasileira na região. Nele, religiosos e praticantes da cultura negra em várias frentes descem, simbolicamente, a Rua 13 de Maio com água de cheiro e flores e ocupam a área externa frontal da Catedral.

A necessidade de dar um fechamento para essa fase de encontros entre mim e essa Campinas negra, incidiu-se na produção de mais um documentário. Mãe Dango convenceu-se de que sua história poderia ser narrada por mim e pela minha equipe e assim, está nascendo “A Mulher da Casa do Arco-Íris”, um documentário poético que completa minha Trilogia Negra. Provisoriamente, resulta desse processo, a importância de continuar narrando sobre a identidade, assumidamente como umas construções de vários níveis. No caso desses filmes, a moldura do território faz evocar memória, celebração, religiosidade, resistência política e arte.