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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 26 de setembro de 2016 a 02 de outubro de 2016 – ANO 2016 – Nº 670Entre a vilania e a mediação
Dissertação analisa as razões que fazem dos árbitrosde futebol vítimas da violência
“Sem árbitro não tem jogo, mas ninguém quer o árbitro ali no campo de futebol”, observa a professora de educação física Carla Righeto, que escolheu este polêmico personagem – vítima de violência tanto simbólica quanto física por parte de torcedores, jogadores, comissão técnica, dirigentes e mídia – como objeto da sua dissertação de mestrado. Hostilizado antes mesmo de entrar em campo, as suas interpretações e decisões no exercício da função são na maior parte das vezes compreendidas como de má-fé pelos contrariados. Daí, o título da pesquisa, “Árbitros: vilões e/ou mediadores do espetáculo?”, que foi orientada pela professora Heloisa Helena Baldy dos Reis, na Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp.
Carla Righeto foi atleta de handebol e, durante a graduação em educação física, além de participar dos Jogos Abertos e Regionais, fez um curso de arbitragem deste esporte. “Quando parei de jogar e já trabalhando na educação, a arbitragem foi uma maneira de permanecer no esporte de competição. Comecei apitando jogos de handebol de crianças e adolescentes, depois da Federação Paulista, do Campeonato Brasileiro e ainda tive oportunidade de atuar como árbitra internacional.”
A autora da dissertação conta que sempre se incomodou com a violência sofrida por árbitros em todas as modalidades esportivas. “Às vezes, você sinaliza uma infração e as duas equipes reclamam. Ao parar com a arbitragem, há quatro anos, tive vontade de buscar a origem desta postura em relação ao trabalho de arbitragem e o que leva a pessoa a se tornar um árbitro. O futebol foi uma escolha pessoal para fugir um pouco do âmbito do handebol. A mídia, por exemplo, ironiza ao rotular os árbitros como atletas frustrados, jogadores que não deram certo.”
No entanto, a ironia não cabe para os três árbitros da Fifa entrevistados pela autora, dois homens e uma mulher, cujos nomes são omitidos em respeito a norma do comitê de ética. “Na época da pesquisa, o Brasil tinha dez árbitros internacionais, três deles da Federação Paulista de Futebol, que escolhi por já terem passado por todas as experiências da profissão: campeonato regional, brasileiro e jogos internacionais. Todos possuem curso superior em educação física e apenas um deles não trabalha na área, é comerciante.”
Segundo Carla Righeto, os árbitros ouvidos se dizem apaixonados pela arbitragem e pelo futebol, que praticaram desde a infância, e foram influenciados por familiares e amigos para que se formassem e seguissem na profissão. “Um deles tinha um irmão árbitro e cresceu no meio esportivo. Outro caso é de um ex-jogador de futebol, que percebeu cedo que aquela carreira era para poucos e preferiu estudar; foi convidado por amigos para um curso de arbitragem, começou a apitar e acabou pegando gosto.”
O primeiro capítulo da dissertação traz o histórico do surgimento da figura do árbitro no futebol, depois que a Football Association da Inglaterra, nos idos de 1863, estabeleceu as primeiras regras para o esporte. “Por estas regras ainda não existiam os árbitros. Inicialmente eram os próprios capitães das equipes que, em caso de divergência, conversavam e resolviam a questão. Não era aceito que um gentleman cometesse uma ação deliberada sobre outro jogador.”
Carla Righeto segue explicando que a regra do impedimento viria a motivar a presença de uma pessoa (que ainda não era chamada de árbitro) em um ponto privilegiado para observar o posicionamento dos jogadores. “Mesmo assim, esse observador era apenas consultado, em caso de impedimento duvidoso. Quando o futebol começou a se desenvolver e profissionalizar, e com as premiações, as disputas se tornaram mais acirradas e os capitães deixaram de se entender. E então os árbitros entraram em campo para decidir sobre lances, penalidades e expulsões, em 1891.”
Ainda no primeiro capítulo, a professora trata do ingresso das mulheres na arbitragem e da violência particular que elas sofrem, relacionada à falta de oportunidades de trabalho em um universo tradicionalmente masculino. “Os homens, mesmo não sendo queridos, estão estabelecidos no futebol, as mulheres são os outsiders, na expressão de Norbert Elias. As mulheres ainda buscam espaço. A árbitra que entrevistei passou pelos mesmos cursos de formação, testes físicos e avaliações que os dois colegas da Fifa, mas apita apenas jogos do sub-21 masculino e não dos campeonatos principais.”
Emoções reprimidas
A autora buscou o referencial teórico para a dissertação na sociologia do esporte, principalmente na teoria do processo civilizatório de Norbert Elias, segundo a qual os seres humanos, a fim de conviver em sociedade, reprimem as suas emoções. “Para Elias, as atividades miméticas, como as esportivas e artísticas, oferecem um espaço para extravasar as emoções, mesmo que através de reações descontroladas, mas dentro de um limite aceito socialmente: se você chora no trabalho, os colegas estranham; mas se chorar no cinema ou gritar em jogo de futebol, não. Já o exagero vem da falta de autocontrole, da estrutura social brasileira com grandes diferenças sociais e da formação da criança e adolescente.”
Considerando que as raízes e causas da violência contra árbitros estão relacionadas à violência presenciada diariamente na sociedade, Carla Righeto procurou entender o sentimento que os entrevistados têm a respeito. “Os árbitros interpretam essa violência como falta de diálogo e respeito, incompreensão do trabalho de arbitragem, exposição a situações constrangedoras, tentativa de denegrir sua imagem. Um deles me contou que são atacados verbalmente no aeroporto, restaurante, entrada de hotel e, por vezes, quando viajam no mesmo voo com dirigentes ou torcedores.”
A professora observa que os três entrevistados, por serem árbitros da Fifa, contam com melhor assessoria na chegada ao estádio e atuam em jogos mais importantes, com transmissões de TV. “Qualquer atitude antidesportiva contra o árbitro ficará registrada, podendo-se enquadrar o jogador ou dirigente agressor. Já foram insultados em hotéis e restaurantes, mas não sofreram agressão física na carreira, embora tenham colegas que saíram com escolta policial do estádio porque o time da casa perdeu. Ao que parece, o lugar mais seguro para esses árbitros acaba sendo o campo de jogo.”
O trabalho de jornalistas e comentaristas recebe duras críticas dos entrevistados, por se beneficiarem de recursos tecnológicos que os árbitros não dispõem para destacar erros e contribuir para a violência com comentários que consideram desumanos. “Os árbitros acusam a mídia de ser ‘torcedora’, mas acham que o nível está melhorando com o surgimento de jornalistas ‘sérios’ e esperam que ela se torne mais informativa e se atualize sobre as regras. Acham também que a mídia acaba incitando a violência, por exemplo, ao anunciar jogos como ‘guerras’, deixando os ânimos à flor da pele.”
Carla lembra que nos campeonatos profissionais da CBF e FPF, os jogos não se realizam se o policiamento não estiver presente. “Os árbitros têm os policiais como parceiros, bem como a Justiça Desportiva, mas ainda veem a impunidade como um agravante para que atitudes violentas continuem a ocorrer. Há casos em que se sabe de onde partiu a violência – de jogador, comissão técnica, dirigente, torcedor. Porém, existem relatos de jogadores que agrediram o árbitro e foram condenados pelo TJD, mas os clubes entraram com recurso e a punição aos atletas foi reduzida de um ano para três jogos.”
Profissionalização
De acordo com a autora da dissertação, a profissão de árbitro de futebol foi reconhecida e regulamentada por lei de outubro de 2013 e, desde então, estudam-se propostas para que a profissionalização de fato aconteça. “Os três entrevistados dedicam a maior do seu tempo à arbitragem, por conta da necessidade de se deslocar para a realização dos jogos. Um deles é comerciante autônomo e os outros dois trabalham na área de educação física, mas possuem horários maleáveis. Não têm vínculo empregatício com a FPF nem com a CBF e isso significa que, em caso de lesão física, ficam sem salário ou cobertura médica, quando a maior parte de seus ganhos vem da arbitragem.”
Carla Righeto não perguntou sobre o rendimento dos árbitros da Fifa, mas sabe que há dois anos girava em torno dos R$ 3 mil por partida. “Quem ganha salário mínimo faz as contas: dois jogos por semana, 24 mil por mês, é um rendimento que impressiona. Mas, dentro de campo, vemos um técnico que ganha 500 mil e jogadores com salários médios de 200 mil, enquanto a torcida xinga o árbitro, que não tem a certeza de trabalhar toda semana e, se cometer erro grave, vai para a geladeira. Quem quer errar diante de tantas câmeras no estádio e depois ler as críticas nos jornais?”
Publicação
Dissertação: “Árbitros: vilões e/ou mediadores do espetáculo?”
Autora: Carla Righeto
Orientadora: Heloisa Helena Baldy dos Reis
Unidade: Faculdade de Educação Física (FEF)