Edição nº 673

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 24 de outubro de 2016 a 06 de novembro de 2016 – ANO 2016 – Nº 673

Estudantes com autismo sofrem
menos preconceito na rede pública

Apesar dos dados positivos, exclusão perdura e aumenta à medida que avança a idade de estudantes

 

As políticas públicas, leis e normas, especialmente as mais recentes, impactaram positivamente na inclusão escolar de alunos com deficiência. Jamais houve, na história do país, tantos alunos com Transtorno do Espectro Autista (TEA) matriculados no ensino fundamental. Mas o preconceito aos alunos ainda existe e é maior à medida que os anos escolares vão avançando, até o ensino médio. Outro dado é que as escolas particulares, em geral, são as que mais excluem as crianças e adolescentes com TEA. Essas considerações estão na pesquisa de mestrado desenvolvida por Robson Celestino Prychodco na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, no âmbito do programa “Saúde, Interdisciplinaridade e Reabilitação”. Todo o trabalho foi feito a partir da coleta de dados de entrevistas concedidas virtualmente, o que ainda é relativamente novo na metodologia de pesquisas acadêmicas.

“Nossa intenção foi elaborar um panorama do que está sendo a inclusão escolar para este grupo das crianças com TEA pelo olhar da política pública, e tentar buscar dados sobre o país inteiro. Ainda existem desafios e barreiras. Mas os dados da inclusão são positivos, especialmente para as crianças que frequentam a educação infantil. Tomara que não haja retrocesso nesse sentido”, pondera Robson. Por meio de convites em três das maiores comunidades relacionadas ao autismo no Facebook, o pesquisador conseguiu que mais de 200 mães, pais ou responsáveis se interessassem em responder a uma entrevista com quase 50 questões. Desse número, 90 participantes seguiram até o final da pesquisa.

O primeiro dado que chamou a atenção do pesquisador foi que a maior parcela de estudantes, cujos responsáveis participaram da pesquisa, se concentra na educação infantil. Grande parte dos responsáveis declarou estar satisfeita com o trabalho da escola e relatou que suas crianças ou adolescentes são tratados com respeito e igualdade de oportunidades no espaço escolar. A maioria também acredita que a escola é capaz de garantir a segurança do aluno com TEA, mostrando disponibilidade frente aos desafios da inclusão, e oferecendo conteúdos de utilidade para o estudante. Apenas doze responsáveis deixariam de levar a criança ou adolescente à escola comum, caso não houvesse determinação legal.

Os números da pesquisa também informam que, para a maioria dos responsáveis, o preconceito “nunca” ou “raramente” acontece no espaço de aprendizagem.

Alguns dos pontos negativos ressaltados por Robson se referem às famílias que solicitaram vagas na escola após o diagnóstico de TEA. Nesse caso, dentre 53 participantes, 21 alunos foram recusados, sendo que 8 tiveram que recorrer a outras instâncias para garantir a matrícula. A escola também não se preocupa tanto em informar sobre as adequações de conteúdo, ou sobre a metodologia utilizada. Dezessete participantes responderam que a escola vê o aluno com TEA “como um problema”, ou “como um doente que não deveria estar naquele espaço”, segundo 12 responsáveis. “Isso demonstra que ainda há, por parte de algumas escolas, dificuldade para a superação do modelo biomédico da deficiência. Este modelo entende a deficiência como uma experiência do corpo que deve ser enfrentada com tratamentos médicos. A cura é entendida como condição necessária para que essas pessoas possam exercer seus direitos e a sociedade estaria isenta de qualquer responsabilidade por atos e processos de discriminação, e por combatê-los, cabendo exclusivamente ao indivíduo a busca pela ‘normalização’ pelos meios médicos”, explica.

Os índices de satisfação são sempre mais altos nas escolas públicas. Robson ressalta que os mecanismos de exclusão da escola particular são mais incisivos que os da escola pública muitas vezes até por questões alheias à criança. O preconceito pode vir também dos outros pais que não querem que o filho conviva com a criança com deficiência. A orientadora da pesquisa, professora Zélia Bittencourt, dá alguns exemplos desses mecanismos: quando há uma festa ou um passeio, a escola exige que a família envie um acompanhante, a escola não prepara material adequado para a criança, ou permite que ela se mantenha à margem. “É um panorama geral, é claro que existem escolas particulares maravilhosas e escolas públicas horríveis também”, complementa.

Uma questão polêmica que repercute nos resultados que diferenciam as redes públicas de ensino das escolas particulares, tem relação com as leis 12764, de 2012 – que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista – e a Lei Brasileira de Inclusão, de 2015. A lei 12764 reconhece o TEA como deficiência e prevê que, em casos em que houver necessidade, o estudante terá direito a um acompanhante especializado. Nesse ponto é que as escolas particulares por vezes tentam barrar o aluno, cobrando que o serviço seja pago pela família, enquanto as públicas não oferecem resistência à lei. “A família não pode ser cobrada em um centavo a mais na mensalidade e, se houver a recusa da matrícula, o diretor da escola pode ser responsabilizado civil e administrativamente” enfatiza o pesquisador.

Outro dado da pesquisa relaciona a percepção de sucesso escolar à idade do aluno. “Quanto mais velho é esse aluno, pior é a satisfação parental com relação à escola e à inclusão. Isso acontece por vários motivos. Um deles é a acomodação das expectativas. Quando a criança é pequena, a família tem uma expectativa sobre ela que vai se modificando conforme as manifestações do transtorno aparecem com mais intensidade”. Como na educação infantil, as escolas estão mais preparadas e embasadas para atender a diversidade, conforme Robson apurou, as coisas tendem a mudar no futuro, quando essas crianças alcançarem as próximas etapas da escolarização, “uma vez que alunos expostos à diferença por meio da deficiência têm maiores chances de desenvolver um olhar mais sensível às diferenças”.


 

Apoio

As famílias das crianças mais velhas com TEA não tiveram a sorte que aquelas que descobriram o transtorno em tempos de rede social. A intensa busca por informação nas redes sociais virtuais foi o que contribuiu, de acordo com Robson, para que a maior parcela de estudantes, cujos responsáveis participaram da pesquisa, se concentrasse na educação infantil. Além disso, a rede favorece a construção de laços entre as pessoas, reduzindo a sensação de isolamento. “Essas famílias vivem situações muito difíceis e muitas vezes só quem já passou por aquilo sabe entender, sem julgamentos ou preconceitos. Há uma similaridade de situações”, observa.

A interação nas redes sociais aumenta a sensação de suporte das famílias, até mesmo para questões práticas como a indicação de medicamentos. A rede comporta uma heterogeneidade de gente que favorece as discussões e troca de informações. “São pessoas com filhos já adultos e mães que acabaram de receber o diagnóstico da criança. Todos estão nas redes buscando conhecimento, qualidade de vida e procurando entender as coisas que muitas vezes na escola, na sociedade, nas terapias ou tratamentos, elas não conseguem”. O pesquisador cita o exemplo de um adolescente com TEA severo que precisa fazer a barba e sua mãe não sabe como ajudar. Nesse caso, os/as mais experientes postam vídeos de como constroem essa atividade com seus filhos.

A consequência desse processo é o empoderamento das famílias. O termo que já ficou conhecido significa “mais poder” de argumentação, sobretudo. As famílias deixam de ter posturas passivas, chegam na escola e não querem que o filho seja excluído. Da mesma forma no posto de saúde, essa família questiona os medicamentos que são indicados para a criança com TEA. “Não significa que esta avaliação ou este conhecimento esteja correto e que vá se sobrepor às palavras dos profissionais. O conteúdo que circula nas redes nem sempre é fidedigno. A questão é ter condições de argumentar”, enfatiza.  Robson destaca a ação efetiva das moderadoras dos três grupos pesquisados, que não permite que o foco das discussões seja desviado. De acordo com a pesquisa, hoje a internet e a participação nas redes sociais virtuais são as principais fontes de informação sobre o TEA.

Mas se as políticas públicas avançaram, qual a razão de ainda haver grupos que não reconhecem os avanços? “Ainda existe um descrédito pela percepção ruim das pessoas em relação às políticas públicas, o que é muito ruim, uma lacuna na percepção das pessoas. Essa sensação, de fragilidade da norma, é quebrada quando você olha no coletivo, olha os dados do grupo e percebe que muitas vezes a pessoa pode não estar entendendo, mas foi beneficiada com a garantia de um direito”.

A orientadora da pesquisa, a professora Zélia Bittencourt, complementa que é preciso dar crédito ao processo civilizatório. “É uma questão cultural hoje você respeitar o diferente, é um sinal de mudança da própria sociedade”. Segundo a docente, a deficiência traz a percepção da diferença tão importante para gerar as mudanças no comportamento da sociedade.

 

Publicação

Tese: “Inclusão escolar e políticas públicas na percepção de membros de redes virtuais do Facebook, responsáveis por alunos com transtornos do espectro autista”

Autor: Robson Celestino Prychodco

Orientadora: Zélia Zilda Lourenço de Camargo Bittencourt

Unidade: Faculdade de Ciências Médicas (FCM)