Aleppo, a cidade que é palco dos maiores conflitos na guerra civil síria, dispara para o mundo, via redes sociais, o retrato do horror. Crianças órfãs imploram para deixar a cidade em segurança, moradores gravam mensagens de despedida, pais pedem autorização para sacrificar as filhas. Notícias, verdadeiras ou falsas, são compartilhadas e “viralizam” no mundo virtual chegando aos grandes veículos da imprensa. As redes sociais são usadas por todos os lados envolvidos para criar histórias que sustentem suas posições políticas.
A análise do comportamento das mídias sociais na guerra da Síria foi feita, a pedido do Portal da Unicamp, pelo professor aposentado da Unicamp Mohamed Habib, que é presidente do Instituto da Cultura Árabe, e também pelo docente da Puc-Campinas Tarcisio Torres Silva, que defendeu doutorado na Unicamp sobre ativismo e o uso da imagem em redes de comunicação digital.
A cidade da Aleppo, ao norte da Síria, é a maior do País e foi tomada por rebeldes ou terroristas, contrários ao regime do presidente, ou ditador, Bashar al-Assad. Nota-se, na escolha das palavras usadas para definir as partes, as contradições das narrativas construídas para relatar a guerra. Rebeldes ou terroristas? Presidente ou ditador?
De acordo com Tarcísio Silva, há, em geral, uma narrativa muito forte “que coloca como o lado certo das coisas o lado dos rebeldes, e o governo sírio como um governo autoritário que massacra as pessoas”.
Imagens de crianças são difundidas à exaustão. “Desde o afogamento do menino Aylan na Turquia, as crianças e pessoas frágeis em situação de grande vulnerabilidade têm aparecido muito em imagens de grande impacto que colaboram para que a guerra tome a dimensão global”, afirma. Um exemplo é o perfil da menina Bana Alabed no Twitter. Com sete anos de idade Bana fazia postagens diárias mostrando como seria viver em meio aos bombardeios.
Além das crianças, também protagonizam o que seria uma “narrativa” da guerra nas mídias sociais, os ativistas, que aparecem desta vez, de maneira muito diferente do período pesquisado por Tarcisio na Revolução Verde no Irã (2009) e Primavera Árabe (2010-2011). Como não há órgãos de imprensa cobrindo diretamente os conflitos em Aleppo, a mídia corporativa ocidental se apoia exclusivamente nos depoimentos de pessoas que aparecem como ativistas.
“O ativismo nesses ambientes mudou, surgiram pessoas que, de certa maneira, se profissionalizaram nisso. Eu identifiquei alguns perfis de pessoas bastante ativas que se colocam como civis, pessoas comuns, mas na verdade tem um número muito grande de seguidores e são muitas vezes apoiados pelo governo americano”, salienta.
Para o pesquisador, o tipo de informação disseminada é muito focada no indivíduo que vira a câmera para si e começa a transmitir uma verdade a partir da própria vivência. “Cresceu o interesse no perfil do sujeito que produz conteúdo, pela fala individual, não institucionalizada, por aquilo que é mais próximo de mim, mais íntimo”.
Os donos desses perfis falam um inglês fluente, enquanto há informantes que só falam árabe. “Esses fatores levam a um questionamento da legitimidade dessas narrativas. Jornalistas mais críticos alertam que a questão humanitária, que é a de respeitar a vida, está sendo infringida dos dois lados, portanto pintar só o governo sírio como aquele que massacra e os rebeldes como os que estão cuidando dessas vidas não é bem verdade”.
Mohamed Habib lamenta que hoje as redes sociais tenham um comportamento tão diferente de quando começaram, com a promessa de dar voz a quem não era ouvido. “Hoje a maior parte das redes sociais está sendo tão manipulada quanto a própria sociedade civil pela grande mídia. O espaço de soberania e autonomia das redes sociais está ficando cada vez mais limitado e com posturas autoritárias, mesmo do ocidente capitalista, que fica vigiando, espionando, acompanhando, monitorando e ameaçando tirar do ar e punir, sob pretexto de garantir a segurança nacional”.
O professor da Unicamp acredita que o verdadeiro prejuízo da guerra civil da Síria não está sendo divulgado e mostrado para o mundo “devido aos interesses das duas grandes potências que estão em disputa: Rússia, apoiando o governo; e Estados Unidos, apoiando os rebeldes”. Mohamed enfatiza que civis, crianças e todo o patrimônio histórico e cultural sírio, que pertence a humanidade, está sendo destruído e “se transformando em pó”.
Mohamed, que já visitou Aleppo algumas vezes, afirma que os sírios são grandes artesãos, com um potencial de desenvolvimento que está se perdendo. O professor fez uma retrospectiva histórica para lembrar como a situação do país chegou a esse ponto. Segundo ele, as duas grandes potências da Guerra Fria, Rússia e Estados Unidos, disputam o Oriente Médio por conta de seus recursos energéticos e a Síria acabou sendo o último país sob o controle soviético, socialista. ”
“A maior parte dos grupos de guerrilha que entraram na Síria para tentar tirar Assad do governo foi financiada pelos EUA. São jovens procurados em várias partes do mundo”, observa. Do outro lado a Rússia defende o Estado sírio, fornecendo apoio militar. “Aleppo é a vítima, mas quem é o culpado por isso? Deixo para cada leitor tirar sua conclusão”.
Utopia
O professor Mohamed acredita que as mídias sociais deveriam passar por um controle participativo da sociedade. “O mundo está em metamorfose aguda, vivemos uma polarização muito alta, com as classes oprimidas, em todas as partes do planeta, que já ultrapassaram o limite mínimo da dignidade humana”.
Ele diz que a Síria já está num saldo negativo há um bom tempo. “O que sobrou lá foram alguns cacos. Precisamos parar esse crime que está acontecendo para que o país comece a se levantar. No entanto isso parece impossível porque há um projeto do novo mapa do Oriente Médio que tem que parar”.
Mohamed imagina que a sociedade civil precisa se levantar pacificamente, no mundo todo, e dizer um basta. “A única saída é um grito mundial, civil e pacifista para que os países dominantes parem de interferir nos países mais fragilizados. Um grito que seja tão forte e que chegue ao ponto das pessoas começarem a recusar produtos dos países que agridem aos direitos humanos, por exemplo. É uma utopia, e eu estou vivendo há 75 anos baseado em sonho e utopias, infelizmente”.